POEMA

CARTA DUM CONTRATADO


Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta que dissesse
deste anseio
de te ver
deste receio
de te perder
deste mais que bem querer que sinto
deste mal indefinido que me persegue
desta saudade a que vivo todo entregue...

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta de confidências íntimas,
uma carta de lembranças de ti,
de ti
dos teus lábios vermelhos como tacula
dos teus cabelos negros como diloua
dos teus olhos doces como maconde
dos teus seios duros como maboque
do teu andar de onça
e dos teus carinhos
que maiores não encontrei por hí...

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
que recordasse nossos dias na capopa
nossas noites perdidas no capim
que recordasse a sombra que nos caía dos jambos
o luar que se coava das palmeiras sem fim
que recordasse a loucura
da nossa paixão
e a amargura
da nossa separação...

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
que a não lesses sem suspirar
que a escondesses de papai Bombo
que a sonegasses a mamãe Kieza
que a relesses sem a frieza
do esquecimento
uma carta que em todo o kilombo
outra a ela não tivesse merecimento.

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta que ta levasse o vento que passa
uma carta que os cajús e cafeeiros
que as hienas e palancas
que os jacarés e bagres
pudessem entender
para que se o vento a perdesse no caminho
os bichos e plantas
compadecidos do nosso pungente sofrer
de canto em canto
de lamento em lamento
de farfalhar em farfalhar
te levassem puras e quentes
as palavras ardentes
as palavras magoadas da minha carta
que eu queria escrever-te amor...

Eu queria escrever-te uma carta...

Mas ah meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é
meu bem
que tu não sabes ler
e eu - Oh desespero! - não sei escrever também!

António Jacinto

6 comentários:

Crixus disse...

Se o Agualusa não consegue ver a beleza de poemas como este, deve ter uma vida muito infeliz.
Um abraço

Fernando Samuel disse...

crixus: talvez o que mais incomode o Agualusa é saber que o António Jacinto (1924/1991) foi um lutador pela libertação da sua pátria e, por isso, esteve preso no Campo de Concentração do Tarrafal de 1960 a 1972 - altura em que foi enviado para Lisboa, em regime de liberdade condicional, tendo fugido para Angola (onde foi integrar a luta de libertação)em 1973. E foi ministo da Cultura de Angola aós a libertação...

Um abraço.

Justine disse...

Impossível não nos emocionarmos com este retrato pungente dos contratados.
Um dos grandes poemas de sempre.

GR disse...

Emocionei-me no fim deste tão doce poema.
Como é possível ter tido uma vida tão agrilhoada e escrever com esta felicidade, um poema tão…afectuoso?

Pobre Agualusa, não entende “o que custou a Liberdade!”

GR

Fernando Samuel disse...

justine: este poema de António Jacinto era de leitura inevitável nos nossos convívios antifascistas...
Um beijo amigo.

Fernando Samuel disse...

gr: António Jacinto é, de facto, um grande poeta. Talvez Agualusa não goste dos temas que a sua poesia aborda, mas então... culpe quem deve ser culpado: o fascismo que prendeu o poeta durante 12 anos...