Privilégio e Divisão da Classe ou A Propósito do Burkini



A imagem de dois polícias armados de espingarda a obrigar uma mulher muçulmana a despir o seu burkini em plena praia correu mundo, não pelas melhores razões. Aparentemente, avultam as pessoas que consideram  normais duas coisas extremamente perigosas: primeiro, que a civilização burguesa ocidental (sim, é relevante marcar, porque aparentemente a malta anda esquecida, o carácter de classe da cultura dominante no ocidente) e o seu corpo de valores e crenças tem legitimidade para ser sobreposto, ao das «civilizações inferiores». Segundo, que a melhor metodologia para «civilizar» os «primitivos», cegos que são para a cultura e a luz do progresso, é a multa do fiscal e o casse-tête da polícia. A única diferença entre estes raciocínios e os do «fardo do homem branco», o selvagem longínquo cuja educação e civilização, na época da corrida às colónias, era usado como pretexto para a invasão e a rapina, é que agora o tal «selvagem» é um imigrante magrebino, asiático, africano, ou de outro lado qualquer, que deambula pelas praias do Sul de França ou pelas ruas de Inglaterra. Mas não deixa de ser uma pobre alma perdida, que precisa da generosa ajuda do ocidente evangelizador, para sair das garras do atavismo e do estádio metafísico do desenvolvimento. Se revelar inflexibilidade, e, verdadeiramente, ingratidão perante tão nobre propósito, a pedagógica pancada policial ali estará para o educar melhor.

O mais chocante é o pormenor, que de pormenor tem muito pouco, de esta ser uma luta lançada contra um (pretenso) símbolo da opressão feminina no Islão, em nome da libertação da mulher do seu estatuto de subalternidade. Faria rir, se não fosse tão infamante, esta pretensão do aparelho repressivo do Estado burguês de libertar seja lá o que for, quanto mais agora as mulheres muçulmanas, a quem, nos arames farpados da costa europeia, nas «pateras» onde elas vêm apinhadas com filhos que morrem no mar,  nos centros de acolhimento que pouco devem aos campos de concentração, nos bairros sociais dos subúrbios, e nos gabinetes das repartições públicas, destrata com toda a sorte de perfídias, vexames, agressões e rebaixamentos que conceber se pode. Mas o mais curioso nesta discussão é precisamente a tese de que a mulher muçulmana precisa do concurso da polícia branca, europeia, e já agora masculina, para poder confrontar aquilo que a oprime (sendo escusado dizer que a tal polícia europeia, masculina, e branca, sabe muito melhor do que a mulher muçulmana aquilo que a oprime): a admissão da livre vontade na adesão ao código de vestuário islâmico, ou alternativamente admissão da possibilidade de essa ruptura, a ter de se operar, ser obra das próprias mulheres muçulmanas, surge como um discurso em mandarim perante uma plateia que só fala português. Discurso esse que tem mais de parecido com a justificação de Bush para a invasão do Afeganistão do que muitos gostariam de admitir.

Ou seja, tudo na foto em questão revela o que de mais abstruso o pensamento hegemónico ocidental inventou: a evangelização libertadora do selvagem sem civilização, a libertação feminina a golpes de bastão, a igualdade sob pena de multa, a «integração» coerciva numa sociedade tolerante. Quanto aos que considerem estranho que a liberdade seja uma coisa tão repressiva e autoritária, é a cereja em cima do bolo, revelam uma mentalidade eivada de pensamento politicamente correcto que expõe o «nosso» modo de vida às agressões de uma comunidade islâmica sanguinária e semi-animalesca, em permanente tensão para bater em alguém,

Pouco há a dizer sobre a função social que esta divisão entre pobres de tez escura e véu na cabeça e pobres de pele clara e francês escorreito, entre pobres que vivem nos bairros sociais e pobres que vivem nos quarteirões sem estigma, entre pobres que ganham mais por terem barba e pobres que ganham menos por serem mulheres, entre pobres que podem apanhar um táxi às quatro da manhã e pobres perante os quais o taxista mete o táxi prego a fundo. Ela é um dos elementos mais poderosos do melhor aliado de que o capitalismo dispõe na luta de classes: a desunião dos sectores explorados da sociedade, a sua divisão e o seu asco, em torno da conservação de privilégios que, quanto mais triviais, melhor. Mais importante que fazer coro com os desafios ao «politicamente correcto» dos Paulos Portas e dos Marinhos Pintos deste mundo, fundamental é abandonar a naturalização da sociedade burguesa como «o nosso modo de vida», a repressão policial como «a protecção dos cidadãos», a fascização da sociedade como «a nossa segurança», a segregação chauvinista da classe como «eles se quiserem que se adaptem ao nosso [porque o burguês nos ensinou que era nosso, na escola e nos jornais dele] modo de vida». E sim, fazê-lo é aderir ao politicamente correcto: é aderir ao que, politicamente, corresponde aos interesses da unidade da classe, da sua organização, e da luta pelo socialismo. Estando correcto por isso. E estando errado o oposto.

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