Por Catarina Casanova
“Os meus
pensamentos e esforços têm em conta a preocupação com os deveres do presente e
do futuro mais próximo, e apenas me preocupo com as perspectivas para além
desse futuro na medida em que me providenciam uma linha de conduta adequada ao
contexto actual.” (Bernstein 1899:7)1
À espera do dinheiro do testamento de Engels,
como refere no seu livro Socialismo Evolutivo (1899)1, Bernstein
atrasou a publicação das suas teses revisionistas. E quando o fez, tornou-se o
“pai” da social-democracia moderna, isto é, uma doutrina que se propunha
instituir um conjunto de reformas graças às quais, pelo alargamento dos
direitos políticos e económicos dos trabalhadores, e um maior acesso à
propriedade de títulos accionistas de grandes empresas por estes, a riqueza social
se distribuiria sem que a burguesia tivesse de ser expropriada pela força.
Bernstein chega a afirmar (op. cit.) que não
se coloca em questão a necessidade da classe trabalhadora “ganhar o controlo do
governo”, numa formulação em que nada leva a crer que a violência
revolucionária seja crucial. De facto, Bernstein não considera a violência
política como a consequência de uma guerra entre classes antagónicas cujos
interesses materiais são opostos e não podem de nenhuma forma ser conciliados.
A violência para Bernstein é nada menos que um “cataclismo social”, e uma
tentativa de forçar a ultrapassagem de “importantes períodos do desenvolvimento
das nações”. A solução que o autor (1899) aponta para a classe trabalhadora é
que o “desenvolvimento social”, entendido como “a luta pelos direitos políticos
do homem trabalhador”, haveria de trazer a sociedade socialista sem
“catástrofes súbitas”, as quais, por sinal, achava contrárias ao “interesse da
social-democracia”. Sobre este último ponto, já falarei.
As teses de Bernstein encaixam plenamente na
corrente do evolucionismo linear e determinista, e por isso negam os mais
básicos princípios do materialismo dialéctico. A sociedade, na perspectiva de
Bernstein (op. cit.), está “condenada” a um determinado percurso evolutivo, que
conduz em linha recta ao socialismo. A tarefa dos trabalhadores não é
organizarem-se para tomar os céus de assalto, como Marx disse a propósito da Comuna
de Paris, mas, modestamente, remover os obstáculos jurídicos a essa evolução,
através de um tarefismo exigindo direitos e liberdades dentro da legalidade
burguesa em que, na frase proverbial, “o movimento é tudo, o objectivo final é
nada”. Idealmente, este “movimento” haveria de “ganhar o Estado da burguesia”,
por métodos pacíficos, claro está. A este propósito, uma célebre polémica opôs
Bernstein e Kautsky ao próprio Engels, que em 1895 os acusou de deturpar as
suas ideias numa introdução - escrita nesse mesmo ano de 1895- à edição
francesa da Luta de Classes em França
de Marx (1850), dando a entender que Engels defendia a via pacífica para o
socialismo, é esclarecedora sobre as posições de Bernstein (sobre Kautsky, a
polémica com Lenine diz tudo2).
É
previsível que Bernstein considerasse um “cataclismo social” uma acção violenta
que comprometesse os “interesses da social-democracia” (1899). É, de resto, esclarecedor
que Bernstein separe os interesses da social-democracia dos da classe para a
qual, aparentemente, a social-democracia teria surgido como corrente de
pensamento. Bernstein é o primeiro a dar à estampa uma contradição de que
Lenine falaria em inícios do séc. XX, entre os dirigentes da burocracia
operária e a classe operária ela mesma. Recordamos uma vez mais esta muito
importante passagem: O carácter relativamente «pacífico» do período de 1871 a 1914 alimentou
o oportunismo primeiro como estado de espírito,
depois como tendência e finalmente como grupo
ou camada da burocracia operária e dos companheiros de jornada pequeno-burgueses
(Lenine, 1916:4)3. A possibilidade de apresentar, sem
desassossegos particularmente grandes, as suas ideias “socialistas”, de
circular pela Europa, de conviver com patronos abastados do SPD (Bernstein foi
secretário particular de um, em Zurique), de beneficiar de uma certa aura
intelectual e, no fim de contas, até de chegar ao parlamento burguês (o
Reichstag) e lá discutir amigavelmente, com os políticos da burguesia, o tal
“alargamento dos direitos políticos” dos trabalhadores que dizia representar,
torna a ideia de uma revolução um verdadeiro cataclismo – desde logo, na vida
pessoal de Bernstein. E este foi um problema comum aos dirigentes do SPD deste
tempo: a tutela do movimento operário, a sua direcção burocrática, e a sua cooptação
pelo institucionalismo, determinou que adoptassem perspectivas políticas
pequeno-burguesas. Não é por acaso, como
Lenine notou, que em determinada altura a própria pequena burguesia (os tais
“companheiros de jornada”) começa a olhar o SPD com simpatia e respeito.
Não é necessário um esforço particularmente grande para
reconhecer quer estas posições quer este processo nos partidos eurocomunistas
do nosso tempo. Designadamente, nas apreciações que implicam a vitória
eleitoral e o exercício do poder através de um Estado burguês que, ao que
parece, se haveria de metamorfosear em Estado socialista no dia em que um
Governo dos trabalhadores o dirigisse. Tal tese, refutada desde Marx na Crítica
do Programa de Gotha (1875)4 e por toda a prática histórica do
séc. XX, é a que mais ilusões tem gerado entre os trabalhadores, e a que mais
veementemente deve ser denunciada sempre que esta surja entre os seus
dirigentes. Perante tal desvio de direita, a única solução é a do combate
aberto entre os trabalhadores e os que, representando-os, se aburguesaram.
De
réplicas de Bernstein, como vimos, os partidos comunistas não precisam. Bem
pelo contrário: todos os comunistas têm o dever de os denunciar aos
trabalhadores e aos militantes que neles, muitas vezes, vão inocente, mas
cegamente, confiando.
1 Bernstein, E. 1899 (1911), Evolutionary Socialism: A Criticism and
Affirmation. New York: B. W. Huebsch.
2Lenine, V.
1918. A Revolução Proletária e o
Renegado Kaustky (http://dorl.pcp.pt/images/classicos/t28t044.pdf)
3Lenine,
V. 1916. O Oportunismo e a Falência da II
Internacional (http://www.dorl.pcp.pt/images/classicos/lenine_oportunismo2internacional.pdf)
4Marx, K. 1895. Crítica
do Programa de Gotha (http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/gotha.pdf)
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