POEMA

CELA 1


Aqui estou neurasténico
como um cão
danado a lamber a salgada
crosta das velhas feridas.

E em que língua
e com que rosto
aos meus filhos órfãos de pai
eu vou dizer que se esqueçam?


José Craveirinha

Salário ou emprego?

Manuel Ferreira Leite (MFL) em entrevista à SIC Notícias afirma que o aumento do salário mínimo para 450€ foi imprudente. Porquê? MFL responde dizendo-nos que aumentando 5,6% o salário mínimo também, por inerência, aumentará o desemprego. E está a informação dada: ora se escolhe aumentar o salário, ora se legisla de modo a baixar a taxa de desemprego. As duas coisas juntas é que nem pensar. Mas, como como todos sabemos - e MFL também por experiência própria enquanto membro governativo, opte a maioria PS (com D ou sem D) por legislar tendo em vista o aumento do salário ou o decréscimo da taxa de desemprego (porque, como nos informou MFL, as duas coisas simultaneamente são impossíveis), as suas tendências reais contrariam sempre aquilo que nos apregoam: ou o aumento do salário é insuficiente face à subida da inflação, ou o aumento dos postos de trabalho é inferior ao número de despedimentos. E assim se confirma que é sempre possível alternar o governo e suas políticas, sem alterar os resultados destas...

POEMA

MINHA MAIS QUERIDA


Minha mais querida
Mais do que nunca
é necessário
amar.
Mas amar bem.
Amar muito.
Amar sempre mais.
Amar sim como só eu te amo.
Amar mais do que é preciso.
Amar muitas vezes desesperadamente.
Amar sempre tanto
tanto...
tanto...
tanto quase como quem delira.

Ou então meu amor
amar acima de tudo
e além de todos
mas amar sempre mais do que a raiva
mil vezes raivosa de quem na prisão
nos odeia!


José Craveirinha

ELES ESTÃO COM MEDO

Mário Soares e Manuel Alegre marcaram encontro no DN de terça-feira.
Razão: a «crise financeira» e a «esquerda».
Dizem, no essencial, o mesmo, por vezes quase pelas mesmas palavras.
Em ambos os casos, trata-se de textos de desbragada auto-promoção: na brilhante síntese de Alegre, ficamos a saber que, em relação à «crise» como em relação à «esquerda», ambos tiveram «razão antes de tempo» - já que, em devido tempo, previram a «crise» e ensinaram à «esquerda» o que deveria fazer.
Só que ninguém os ouviu - e agora, é isto...

Ouçamo-los, assumindo-se como gurus da «esquerda»:
«Mas onde está a esquerda?» - pergunta Alegre.
E responde: «Talvez algo de novo possa surgir da vitória de Obama».
E Soares: «Obama é sem dúvida uma esperança».
E Alegre: «Uma nova esquerda só poderá nascer de rupturas das diferentes esquerdas consigo mesmas».
E Soares: «É necessário repensar a esquerda (...) se quisermos vencer a crise e substituir o sistema».

Aqui, impôs-se-me uma pausa, de modo a tentar refazer-me do sobressalto que me assaltou face à revolucionária postura soarista: «substituir o sistema», disse ele!
Substituir o sistema capitalista? - perguntei-me.
Soares, dando sinais de me ter ouvido, respondeu: (Sim), «não se trata de destruir o capitalismo financeiro para refundar outro capitalismo», nem «de proceder à mudança necessária para que tudo fique na mesma»; trata-se, isso sim, proclamou Soares, de... «manter a economia de mercado introduzindo-lhe regras éticas e jurídicas»...
Entendi-te: as «regras éticas e jurídicas» são... «a mudança necessária para que tudo fique na mesma»...

Mas a total convergência de ideias (e de preocupações...) entre Soares e Alegre - sobre a «esquerda» e sobre a «crise» - atinge o clímax quando se debruçam sobre... o futuro.
Isto é: a «crise» é grave e comporta perigos graves, entre eles o de poder despertar ideias... más...
E isso preocupa - e de que maneira! - os dois intrépidos críticos do «capitalismo».
Por isso, avisam, previnem e alertam contra essas ideias más.
Diz Soares: «substituir o sistema capitalista», sim, mas nunca por nunca ser «restabelecendo o dogmatismo da cartilha marxista, na leitura que dela fizeram Lenine, Estaline e Mao...».
E diz Alegre: (substituir o sistema capitalista), sim, mas nunca por nunca ser «para a mirífica repetição da revolução russa de 1917».

E tudo isto me leva a pensar que eles estão com medo... de alguma coisa...
E tudo isto confirma que com anticapitalistas destes... o capitalismo pode dormir descansado.

Crise? Qual crise?!?

"A Jerónimo Martins (JM) registou um aumento de 38,1 por cento nos lucros para os 121,4 milhões de euros, nos primeiros nove meses deste ano. Estes aumento supera previsões dos analistas, que apontavam para resultados líquidos de 111,9 milhões de euros."

Parafraseando o outro: "os números não enganam..."

Crise? Qual crise?!? - Cartoon

POEMA

NÃO SEI SE É UMA MEDALHA


Alguma vez
um cigarro aceso sentirá o delicioso
sabor de te fumar de repente
o ombro direito?

Pois
sobre isso eu juro
que tudo é pura mentira.

Juro
que nunca um cigarro LM
apagou sua idiossincrásica boca de lume
no calor escuro da minha omoplata.

E também juro
que nunca plagiei um cinzeiro moçambicano
sentado a cheirar o bafo da própria cinza
com o subchefe de brigada Acácio
um deus fantasmagórico envolto
na especial nuvem de tabaco
mistura de Virgínia com pele.

E também confesso
que se esta invenção tivesse acontecido
muito provavelmente seria em mil novecentos
e sessenta e seis à tarde numa certa Vila Algarve
enquanto pela duodécima vez
eu abanava a cabeça
e dizia: - Não sei!

Por acaso
a mancha desta mentira está.
Não sei se é uma medalha.
Mas não sai mais.


José Craveirinha

BRANQUEAMENTOS...

Anteontem, o DN anunciou um novo livro da historiadora Irene Flunser Pimentel (IFP) : «Biografia de um Inspector da PIDE - Fernando Gouveia e o Partido Comunista Português» - e entrevistou a autora.
Ontem, segundo me disseram, IFP foi entrevistada na RTP a propósito desse livro.
Hoje, o JN, traz notícia destacada sobre a mesmo assunto.
E não tenho dúvidas de que o livro vai ser objecto de muitas mais notícias, entrevistas e outras prosas laudatórias - tal como aconteceu com a anterior obra de IFP, «A História da PIDE» (a que já aqui fiz referência)

Não li, ainda, esta Biografia e, portanto, não vou pronunciar-me sobre ela.
Li a entrevista da autora ao DN e é sobre ela que aqui deixo um breve apontamento.
É curioso que a primeira pergunta do entrevistador tenha sido a seguinte: «Não receou que esta Biografia de um Inspector da PIDE se transformasse num branqueamento dessa polícia política?».
E é ainda mais curiosa a resposta da entrevistada: «Claro que sim», logo acrescentando que não faz «a defesa de Fernando Gouveia», embora admita que «fazer uma biografia de alguém é sempre enaltecê-la um pouco»...
Bom, fico-me por aqui e aguardo a saída do livro.
Recordo, entretanto, que IFP integra a corrente historiográfica (chamemos-lhe assim...) que tem vindo a proceder a uma poderosa operação de branqueamento do fascismo, sustentada na tese segundo a qual em Portugal não existiu fascismo...
Recordo, ainda, que na sua «História da PIDE», IFP revelou uma não ocultada admiração e um indisfarçável fascínio pelo pide Fernando Gouveia...

Entretanto, o Público de hoje anunciou o lançamento, até final deste ano, de um novo livro de IFP: uma «fotobiografia do cantor e compositor José Afonso».
E perante esta notícia confesso-me impressionado com a versatilidade e a multiplicidade de apetências de que IFP dá prova...
Com efeito, passar do Inspector da PIDE ao ZECA, não é apenas passar da besta ao GÉNIO, é também passar do fascista ao RESISTENTE ANTIFASCISTA, do carrasco à VÍTIMA.
A não ser que esta «fotobiografia» seja também uma operação de branqueamento - neste caso de auto-branqueamento...

POEMA

AMOR A DOER


Beijos.
Carícias.
Este infinito sentimento
no recíproco amor homem e mulher
para jamais nos esquecermos de vez
do amor dos amores mais amados
o amor chamado pátria!

Mordaças.
Palmatoadas.
Calabouços.
Anilhas de ferro nos tornozelos.

E no infinito amor a doer
também o infantil beijo dos filhos
a magoada ternura incansável da esposa
um cobertor grande e um pequeno para os quatro
e numa tábua despregada no chão
escondido o jornal a falar do Fidel.

E nem que nos caia em cima o argumento
de cigarro na boca e lúgubre revólver em cima da mesa
não mostraremos o papel guardado na tábua do soalho
ali a fazer do amor escondido
o futuro de um povo.


José Craveirinha

Como deixar de viver! Perdão: como poupar.

A SIC em reportagem especial ensina-nos a poupar cerca de 500€ mensais. Deduzo que só o poderá fazer quem receber para cima dos 1000€. Mas tomemos como exemplo uma pessoa que vive sozinha, e que tem como ordenado 1000€ mensais (aproximadamente o ordenado de um técnico superior). E tentaremos descobrir o que tem que fazer para poupar esses tais 500€ mensais. Para começar, diz-nos o repórter da SIC, tem que tomar o pequeno almoço em casa: poupando assim os 2€ do galão, sandes de fiambre e café. Ao final do mês poupar-se-iam cerca de 40€. Ao almoço repete-se as operações: aqueles 2 dias semanais em que, por simples preguiça ou prazer, se almoçava fora também vão ter que desaparecer: todos os dias se terá que levar almoço de casa. Para lanchar? Poupe-se os 2,1€ correspondentes ao bolo e sumo de laranja, está claro. Fumar? Está fora de questão, 3,3€ diários que se poupa. Para encher os carros com gasolina, acorra às grandes estruturas comerciais, poupando 2,5€ por cada 50€, diz-nos o repórter empurrando-nos, vá-se lá imaginar a coincidência, para as outras empresas dos seus patrões (Continente, neste caso). Como vêem, é simples: deixando todos os pequenos prazeres do dia-a-dia para trás, consegue-se poupar cerca de 500€ mensais. Ainda bem que respirar não paga taxa, senão até da vida nos sugeririam que abdicássemos...

POEMA

UM HOMEM NUNCA CHORA


Acreditava naquela história
do homem que nunca chora.

Eu julgava-me um homem.

Na adolescência
meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.

Agora tremo.
E agora choro.

Como um homem treme.
Como chora um homem!


José Craveirinha

Adeus à brisa - Possidónio Cachapa (documentário)

Gostei de o ouvir. Falava sobre o novo mundo que há-de vir - mais cedo ou mais tarde. Tão certo como ele o poder dizer. O mundo onde o "homem será irmão do homem", onde as lágrimas dos homens ficarão esquecidas no passado. Como vos escrever esta ténue alegria de um coração devassado pela esperança alheia? Era sexta-feira, chovia fora do cinema. O Urbano falava-nos do sol, através do seu "adeus à brisa". Apetecia-me saltar para dentro do ecrã, dar-lhe um abraço: prometer-lhe a construção do mundo que há-de vir, onde o "homem será irmão do homem".

POEMA

OS DOIS MENINOS MAUS ESTUDANTES


- Zeca-e-Stélio!
- Mamã!
- São horas da escola.
- !!!

- Vocês não ouvem? São horas.
- Não queremos ir à escola, mamã.
- O quê? Não vão à escola? Vão, sim-senhor!
- Não vamos à escola, mamã.
- Mas não vão à escola porquê? Não estudaram, não é?
- É a sôra professora, mamã.
- É a sôra profesora o quê?
- !!!

- Olhem amanhã é dia de visita e vou queixar ao vosso pai.
- Não vai queixar, mamã.
- Queixo, sim, vocês vão ver.
- A sôra professora chama... a sôra professora cha...
- A sôra professora não chama nada. Vou queixar.
- A sôra professora chama-nos filhos de um turra, mamã.
- !!!

-Está bem, mamã, não chore.
Não chore, mamã. Nós vamos à escola, mamã.


José Craveirinha

O MEU REGRESSO A MARX...

A crise actual do capitalismo - provavelmente a mais grave e profunda em toda a sua história - tem suscitado múltiplas referências a Marx - e ao que tem vindo a ser designado por «regresso a Marx».

É claro que «regressa a Marx» quem dele se afastou, quer arrumando-o na prateleira dos «ultrapassados» ou «desactualizados», quer pelo receio (leia-se: medo) de - em tempo de «triunfo definitivo do capitalismo», do «fim da história», etc... - irritar os donos da nova ordem imperialista decorrente do fim da União Soviética e da comunidade socialista do Leste da Europa.

E é claro que, para os que não desistem da construção de uma sociedade liberta de todas as formas de opressão e exploração - a sociedade socialista e comunista - Marx constituiu, constitui e constituirá, sempre, uma referência fundamental.
Isto porque, como sabemos, está ligada a Marx, e tem o seu nome, a visão do mundo mais avançada, autênticamente científica, que armou a humanidade e a classe mais revolucionária, o proletariado, com um instrumento de conhecimento e transformação do mundo;
está ligada ao nome de Marx a transformação do socialismo de utopia em ciência e a fundamentação teórica profunda da queda inevitável do capitalismo e da vitória do comunismo;
está ligado ao nome de Marx o aparecimento do movimento comunista internacional e dos primeiros partidos revolucionários da classe operária, que fizeram suas as ideias do comunismo científico;
está ligada ao nome de Marx a transformação do movimento expontâneo dos operários contra o jugo do capital numa luta de classe consciente pelo derrubamento do capitalismo e pela reorganização revolucionária da sociedade em bases socialistas.

E é porque tudo isto - e certamente muito mais - está ligado a Marx e apresenta hoje tão grande validade como a que apresentava no seu tempo, que temos vindo a assistir ao surgimento de um conjunto de alertas e prevenções em relação... ao pensamento de Marx - especialmente, como não podia deixar de ser, no que diz respeito à formação e ao desenvolvimento do marxismo na sua estreita ligação com a luta de classe do proletariado visando a liquidação do capitalismo e a construção do socialismo.
E esta é, obviamente, uma outra forma - bem ajustada à realidade da crise actual do capitalismo... - de «afastar» Marx, fingindo que não...

Em entrevista recente, o historiador Eric Hobsbawm, sublinhando a necessidade de voltar a ler Marx (de «regressar a Marx»...), alerta e previne a dada altura:
«Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda enquanto não se compreender que os seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, nem como descrições de uma situação real do mundo capitalista de hoje, mas sim como um caminho para compreender a natureza do desenvolvimento capitalista».
(e, em abono da sua tese, remete o leitor para ... os rascunhos de Marx não publicados no seu tempo: os «Grundrisse», que são resumos dos fundamentos da sua crítica da economia política, e que, porque só publicados nos anos setenta, «não fizeram parte do largamente dogmatizado corpus do marxismo ortodoxo do socialismos soviético». Pois... Ao que parece, para Hobsbawm, os rascunhos valem mais do que a Obra publicada...)

Estou em crer que esta visão de Marx e do seu pensamento, contradizem... Marx e o seu pensamento.
Em resumo: é como se Marx tivesse dito, não o que disse, mas qualquer coisa do género: O que importa é explicar o mundo e não transformá-lo...

Assim, depois de ler esta entrevista, vou regressar a Marx, que é como quem diz: vou regressar às boas companhias...
Para já relendo, por exemplo, a Crítica ao Programa de Gotha - sem dúvida um dos principais documentos programáticos do comunismo científico, no qual Marx desenvolve as suas ideias sobre o carácter do período de transição do capitalismo para o socialismo, sobre o papel e a evolução do Estado e sobre as duas fases do desenvolvimento da sociedade comunista...

POEMA

INCLANDESTINIDADE


Eu jamais movi um dedo na clandestinidade.
Mas militante de facto sou.

Por acaso até nasci
numa grande e próspera colónia.

Depus flores na estátua do sr. António Enes
recitei versos de Camões num tal «dia da raça»
e cheguei a cantar uma marcha chamada «A Portuguesa».

Cresci.
Minhas raízes também cresceram
e tornei-me um subversivo na genuína ilegalidade.

Foi assim que eu subversivamente
clandestinizei o governo
ultramarino português.

Foi assim!


José Craveirinha

COINCIDÊNCIAS

José Rodrigues dos Santos (JRS) é jornalista, professor de Ciências da Comunicação e romancista - pelo menos.

Como jornalista celebrizou-se aqundo da épica «maratona televisiva», no decorrer da qual, a partir dos estúdios da RTP, foi falando, falando, falando... sobre o bombardeamento de Bagdad, executado pela aviação dos EUA, na primeira Guerra do Golfo, em Janeiro de 1991.
Era a tal «guerra em directo» dada pelas televisões de todo o mundo, não sei se se lembram... Guerra estranha, essa, e estranho «directo, esse: 10 horas de bombardeamentos ininterruptos e, mortos, nem um - porque, como JRS não se cansou de nos dizer, era uma «guerra cirúrgica», que não atingia pessoas...

Como professor de Comunicação, não conheço as prendas de JRS, mas não hão-de andar longe do seu mérito enquanto jornalista várias vezes premiado - mas guardo na memória este momento: num telejornal, após a passagem de uma pequeníssima peça em que o secretário-geral do PCP informava sobre o número de adesões ao Partido no último ano, JRS, com aquele sorriso e aquela piscadela de olho habitual, comentou: «o secretário-geral do PCP não disse quantos militantes saíram do PCP nesse período...» - comentário digno de um grande jornalista, logo de um grande professor de Comunicação...

Como romancista, JRS é um caso sério: o seu primeiro romance (A Ilha das Trevas) foi publicado em 2002; e A Vida num Sopro, o seu sexto e último (até ver...) acaba de sair.
Todos êxitos de livraria. E todos, mais o seu autor, com torrencial presença nas muitas revistas do jet-set e da socialite...

6-romances-6, em 6 anos: é obra! - a confirmar que escrever romances é fácil e rápido: é preciso é apanhar-lhe o jeito e JRS, sem dúvida, apanhou-lhe o jeito.
Ele próprio o diz: «Sinto-me à vontade em qualquer género, o que importa é que eu e o leitor tenhamos prazer».
Daí que as cenas de sexo - nas suas múltiplas vertentes... - abundem na obra do prolífero romancista.
No romance Codex 632, diz uma das personagens: «Quando um dia for casada e tiver um filho, vou fazer uma sopa de peixe com o leite das minhas mamas» - declaração de intenções que expressa luminarmente a fogosa imaginação criadora do autor e que, certamente, está na origem da decisão já tomada de o romance ir passar a filme nos EUA.
E estou em crer que igual destino terá o mais recente trabalho do consagrado romancista, no qual - leio num jornal de hoje - «testemunhamos uma cena amorosa num curral em que "os gemidos de Amélia misturavam-se com os grunhidos dos porcos"».


Em entrevista ao DN de hoje, o grande escritor chileno Luís Sepúlveda (O Velho que Lia Romances de Amor...), diz a dada altura:
«Há escritores que não estão interessados na literatura, escrevem apenas para entrar nesse jet-set e aparecer nas revistas».

Coincidências...

POEMA

CONSENSO


Amiga:
No febril conluio dos mútuos póros
nossos lábios sussurram-se
as respectivas músicas
de Amor
e só!

Mas
nos ofegantes muros das penitenciárias
nem uma Sofia Loren
nem uma Gina Lolobrígida
nem uma tal Ava Gardner
e nem tu minha amiga
com todas as vossas ferramentas de prazer
nos boicotam o irredutível consenso deste sofrimento
habitando sem pagar renda esta moradia
de quatro paredes
uma porta de ferro
e uma espécie de janela com persianas de varões.

E no sofrimento deste prédio
nós os presos e os que não foram presos
conseguimos o seguinte consenso:
- Voz de prisão aos carcereiros!


José Craveirinha

O GRANDE VENCEDOR

Muito tem sido escrito e dito, nos média portugueses, sobre as eleições presidenciais nos EUA.
Estou em crer, mesmo, que o espaço e o tempo dedicados a essas eleições pede meças às eleições presidenciais em Portugal...
É claro que tudo o que tem sido dito e escrito sobre a matéria vai no sentido da super-valorização, bem explícita, daquele que é, segundo os média dominantes nacionais e internacionais, o modelo supremo de democracia: «a livre América!»

Também sobre a história dos democraticíssimos processos eleitorais naquele país, muito tem sido escrito e dito.
Todavia sem quaisquer referências às golpaças eleitorais - falcatruas, chapeladas & outras americanices - que amiúde por lá se verificam e que, em vários casos, têm tornado presidentes dos EUA, os candidatos menos votados.
Percebe-se: se se diz que os EUA são «a democracia mais avançada do mundo», não se pode dizer a verdade sobre o que lá se passa...

Os célebres «debates» entre os dois candidatos, constituem um dos temas que mais entusiasmam os comentadores e analistas de serviço: os «debates» são o supra-sumo democrático-eleitoral, os momentos maiores do grande confronto entre os candidatos - e, por isso, têm influência decisiva no resultado final.
Ora, a verdade é que só uma incomensurável vontade de mostrar serviço é que pode levar seja quem for a designar por«debates» aqueles encontros de candidatos na televisão.
É claro que o cenário meticulosamente montado - ao vivo, com audiência em estúdio, etc. - e, especialmente, a repetição exaustiva de que se trata de um «debate», faz com que a generalidade das pessoas aceite a representação como tal.

Mas, na realidade, os dois candidatos não debatem nada - rigorosamente nada - nem um com o outro, nem qualquer deles com o chamado «moderador», nem ninguém com a audiência em estúdio.
Cada candidato responde às perguntas lidas pelo «moderador» e as respostas de cada um não podem, sequer, ser contestadas pelo outro (aliás, há quem diga que as «perguntas»... «parecem ter sido escritas depois das respostas»)
Então, os famosíssimos «debates» - momentos maiores da campanha eleitoral - não passam de uma sucessão de depoiamentos feitos em directo e sobre os quais ninguém se pronuncia.
Escusado será dizer que as regras do «debate» são previamente acordadas com os dois candidatos.

Depois, «ganha» o que «diz melhor». O que é «mais simpático». O que, na sua representação, mais se aproxima daquilo que, em cada momento, «está a dar»...
Mas no final, seja qual for o candidato eleito, o grande vencedor é sempre o grande capital.

POEMA

O MEU PREÇO


Eu cidadão anónimo
do País que mais amo sem dizer o nome
se é para me dar de corpo e alma
dou-me todo como daquela vez em Chaimite.
Dou-me em troca de mil crianças felizes
nenhum velho a pedir esmola
uma escola em cada bairro
salário justo nas oficinas
filas de camiões carregados de hortaliças
um exército de operários todos com serviço
um tesouro de belas raparigas maravilhando as praias
e ao vento da minha terra uma grande bandeira sem quinas.

Se é para me dar
dou-me de graça por conta disso.

Mas se é para me vender
vendo-me mas vendo-me muito caro.

Ao preço incondicional
de quanto me pode custar este poema.


José Craveirinha

FACTOS E PROPAGANDA

Os factos dizem que a pobreza aumenta no nosso País.
Sócrates diz que diminui.

Esta discordância entre os factos e a propaganda não teria importânciade maior se não estivessemos a falar de pessoas - seres humanos!- que passam fome, e se essa fome não fosse uma das muitas consequências da política de direita praticada por Sócrates.
Assim, as manifestações de optimismo alvar do primeiro-ministro assumem uma expressão não apenas de descarada falsidade mas também de profunda hipocrisia e desrespeito pelos cidadãos.

Mas vamos aos factos:
Segundo dados ontem divulgados, nos primeiros nove meses deste ano o número de pessoas extremamente necessitadas que recorreu aos pedidos de ajuda, aumentou 20% em relação a igual período do ano de 2007.
Alimentos e roupas são das necessidades mais sentidas.

Acresce que:
entre os que agora procuram ajuda, encontram-se muitos que, ainda não há muito tempo, ajudavam com donativos vários;
no conjunto dos que se vêem forçados a pedir ajuda, cresce a percentagem de idosos e jovens;
muitos desses necessitados são pessoas que têm trabalho - mas cujos salários não dão para comer.

Estes são os factos. Incontestáveis.
E bem elucidativos da situação criada pelo Governo de Sócrates e pelos que o antecederam ao longo dos últimos 32 anos.

Até quando?

POEMA

CALABOUÇO


I
Aqui
onde nem um pide nos ouve
a gritar no dialecto nacional dos oprimidos
os mais fantásticos sonhos

construímos
com o invisível material da esperança
a realidade universal dentro
do povo lá fora!

II
Pátria:
por causa de nós os dois
o único alguém a cheirar o cheiro
do seu próprio medo
é o carcereiro.

Pátria:
o nosso próprio receio
leva-nos ao cúmulo da fúria
mas ao carcereiro o próprio medo
fabrica para toda a polícia
o auge do desespero.


José Craveirinha

A FARSA

De há muito que deixei de frequentar televisões. Todas: as privadas e as que se dizem públicas; as nacionais e as internacionais.
Minto: às vezes passo por lá: em dias de futebol (vejam bem!) ou para ver um filme em que estou interessado.
Quanto aos telejornais, aos debates & outros lixos, esses estão, por regra, excluídos.

No entanto, anteontem, ao passar à porta da SIC-Notícias, algo me despertou a curiosidade: um senhor sorridente falava de uma coisa a que chamava «o ciclo natural».
Parei, fiquei à porta, espreitei.

A minha curiosidade redobrou: cá em baixo, em jeito de rodapé, uma longa legenda informava sobre o que estava ali a passar-se:

«Em análise - PSD sobre o Orçamento do Estado.
Maior partido da oposição endurece crítica ao Governo»

Refreei a vontade de disparar o comando contra o aparelho de televisão, desabafando uma rajada de... protestos contra esta coisa de os média dominantes chamarem ao PSD «o maior partido da oposição» - e para me acalmar demonstrei a mim próprio que:
1 - o PSD é tanto oposição à política do actual Governo PS, como o PS foi oposição à política de anteriores governos PSD;
2 - que PS e PSD andam há mais de 32 anos, alternando-se na aplicação da mesma política de direita comum aos dois: ora agora governas tu, e eu finjo que sou oposição; ora agora governo eu, e tu finges que és oposição; e
3 - que os média dominantes têm desempenhado, ao longo desses mais de 32 anos, um papel fundamental na propagação da farsa do «maior partido da oposição» - farsa com a qual têm vindo a iludir segmentos vastíssimos (e decisivos) do eleitorado nacional.


Mais calmo, passei os olhos e os ouvidos pelo «debate»: Henrique Monteiro (Expresso); Ana Sá Lopes (DN); Rui Tavares (Público) e Maria João Avilez (PSD), discutiam a tal coisa do «ciclo natural» - não na modalidade real (ora agora governas tu , etc, etc) mas na modalidade... natural, ou seja propagando a tal farsa...
E garanto-vos: do que vi e ouvi, em relação ao essencial, este plural painel de comentadores afinava todo pelo mesmo diapasão.

Antes de a farsa acabar, bati com a porta da SIC-Notícias e fui rever o «Cinema Paraíso».

POEMA

AFORISMO


Havia uma formiga
compartilhando comigo
o isolamento
e comendo juntos.

Estávamos iguais
com duas diferenças:
ela não era interrogada
e por descuido podiam pisá-la.

Mas aos dois intencionalmente
podiam pôr-nos de rasto
mas não podiam
ajoelhar-nos.


José Craveirinha
(Cela 1)

«ESTES PUBLICITÁRIOS SÃO UNS EXAGERADOS»

A frase em epígrafe (muito em voga em finais dos anos 60) veio-me à memória ao ler as notícias sobre o assalto à casa de Miguel Sousa Tavares (MST), no passado fim-de-semana.
A primeira dessas notícias foi dada ontem, com manchete de primeira página, pelo 24 Horas.
Hoje, o Público e o DN desdenvolvem o tema - e é notícia grande.
Segundo relato do próprio MST, o gatuno entrou pelo telhado e levou o seu computador portátil - e apenas isso - onde se encontravam fragmentos de dois livros iniciados há uns meses e a que o escritor pensava dar continuidade a breve prazo.

Confesso que fiquei surpreendido pela publicidade dada ao caso: mesmo entendendo o que tal roubo deve significar para o escritor em causa, espanta-me o alarido criado em torno da ocorrência.
Espanta-me mais ainda, o tom dramático utilizado pelo escritor («Roubaram-me o meu coração e o meu cérebro»...) e pelo seu editor, nas considerações que produziram sobre o caso.
Espanta-me sobretudo a ideia por ambos lançada de que se trata de um roubo cirúrgico, fruto de uma conspiração tendo como alvo a futura obra literária de MST - já que, tanto o escritor como o editor «não estão preocupados com o destino dos rascunhos» roubados, isto é, não lhes parece que o gatuno avance para «um edição ilegítima» dos textos, ou sequer para a sua «publicação na Internet»...
Daí a tese comum aos dois de que o roubo é «um acto direccionado para prejudicar o trabalho» de MST.
«Tenho inimigos, haverá pessoas que gostariam que eu não escrevesse mais sobre alguns assuntos»: disse MST - ao que parece sem corar...
Também falando com ar sério, e igualmente sem corar, o editor vê no roubo «um atentado censório à liberdade de expressão e criação de um autor»...

Aqui chegado, pensei para mim: tudo isto é estranho, muito, muito estranho...
E por mais voltas que dê à cabeça não consigo entender o que é que levaria um indivíduo ( ou vários) a pensar que roubando parte de dois textos de um determinado autor o impediriam de continuar a escrever sobre alguns assuntos»...
E muito menos entendo que interesse teria o tal indivíduo (ou indivíduos) em impedir MST de continuar a escrever...
E não entendo de todo como é que um gatuno letrado como este parece ser, dá mostras de tão grande iliteracia...

Entretanto, veio-me à memória uma entrevista dada à Visão pelo editor de MST, uns meses após a publicação do romance «Equador».
Nessa entrevista, ele contava-nos que, antes mesmo de o livro estar escrito, já tinha assegurado, através de sábia operação de marketing, que a edição da obra viria a atingir os 100 mil exemplares...
E tudo isto me leva a pensar que, no caso deste roubo, o mais provável é estarmos perante idêntica operação publicitária - e que, se assim for, é caso para dizermos que «estes publicitários são uns exagerados»...

POEMA

EU PRESTIDIGITADOR EMÉRITO


Dia de minha visita.
Eu a dizer trivialidades à Maria
e ela a compreender nas entrelinhas.

O Stélio de um lado
o Zeca do outro
e uma vigilante
dupla de gajos
de serviço.

Mas eu prestidigitador emérito
fazia chegar ao seu destino
tesouros de sigilo
em papelinhos
dobrados.

Se um dos execráveis gajos
por acaso me tivesse interceptado
restaria alguém para contar
isto?


José Craveirinha

POR ISSO LÁ ESTÁ...

Não vão longe os tempos (é tudo relativo, não é verdade?) em que Durão Barroso - de punho cerrado, rosto severo e voz estridente ... e, diga-se em abono da verdade, um bocadinho histérica - proclamava que «O imperialismo norte-americano é um tigre de papel!» e exigia «morte ao capitalismo, já!».
Como estamos lembrados, estes gritos de guerra eram acompanhados de outros, não menos guerreiros - regra geral bem mais assanhados até - contra aquilo que, para ele e para os seus colegas de revolução gritada, constituía, afinal, o inimigo a abater, o inimigo principal: o PCP, pois claro - que brindavam, no mínimo, com disparos deste género: «morte aos revisionistas!», «morte aos sociais-fascistas».

Entretanto, o tempo foi passando e Barroso foi com o tempo...
Começou por abichar umas migalhas debaixo da mesa do poder, foi comendo as ditas e engraxando os sapatos dos que lhas forneciam e foi-se afeiçoando ao lugar.
Um dia, um dos donos estalou os dedos e assobiou, e o fiel Barroso saíu de debaixo da mesa, todo sorridente, limpando migalhas da boca e da camisa, lambendo os beiços e desfazendo-se em jeitos e olhares de gratidão canina.
Foi então que percebeu que tinha o futuro assegurado. E sentou-se. Não à mesa, porque a ela nunca terá lugar, mas no respectivo banquinho, suficientemente baixo para se ver que continuava sentado aos pés do dono.

Pronto, estava lançado: adeus revolução, já; qual imperialismo, qual carapuça...
E, como estava previsto, foi primeiro-ministro. E cumpriu - durante o tempo que lhe foi pedido executou à maneira a política de direita seguindo estritamente as ordens do dono.
Depois, foi mandado às Lages com a tarefa de servir as bebidas aos três criados dos patrões maiores e, mais uma vez, cumpriu: serviu. Serviu bem.
Tão bem que foi promovido e partiu, com guia de marcha, para a Europa.
E lá está.

Agora, atrelado ao colega francês (o baixinho...), viajou até à Casa Grande em funções «europeias»...
Objectivo da visita: propor ao Chefão... o que o Chefão lhes disse para proporem quando os chamou lá: uma conferência para acabar com a crise do capitalismo...
E vai haver conferência.
Não para acabar com a crise do capitalismo, mas, como decretou o Chefão, para acabar com a crise do «capitalismo democrático» - que soa melhor e dá mais jeito...
Foi o que o Barroso quis ouvir.
E agora, quem o quiser ver e ouvir, vê-o e ouve-o feliz a dar vivas a este «capitalismo democrático»... nascido da actual crise do capitalismo.

Mas, voltando ao princípio: do Barroso de antanho, o que resta?
O essencial: o Barroso da Comissão Europeia é, no mínimo, tão anticomunista como era o Barroso da revolução, já!
Por isso lá está.

POEMA

TEMPO DE RUSGAS


I

Era tempo de rusgas.
Havia ordens terminantes
mas era preciso não andar desarmado.

A revista nas estradas era intensa.

Bem armado
passei sem licença de porte de arma
minha mão comprimindo no bolso
as coronhas de três poemas.

II

Os que não são poetas
ignoram o que é estarmos em reclusão
armados de conluios até aos dentes.

E na sua imprevidência
não sabem que um poema detido
mesmo de cor na cabeça
também é uma forma
dialéctica
de lhes armar o cerco.

III

Sou daquela raça
dos revolucionários mais perfeitos.
A raça dos homens ao natural
que amam o amor sem as mil
fictícias boas maneiras
burguesas.

Raça
dos revolucionários mais puros
no amor à beleza feminina
na adoração pelas crianças
no respeito pela velhice
no ódio à mendicidade.

Raça de revolucionários cheios de defeitos
e apenas uma pequeníssima qualidade:
Mesmo inseridos em molduras de alvenaria
com uma força de segurança no exterior
não compramos o Amor
e não nos vendemos!


José Craveirinha
(In Cela 1)

«DEIXEM O PAÍS, OCUPANTES!»

«Deixem o país, ocupantes!»: eis a palavra de ordem central da manifestação que juntou dezenas de milhares de pessoas, em Bagdad.
Os manifestantes protestavam contar o acordo entre os governos dos EUA e do Iraque, que prevê «a presença das forças norte-americanas» - isto é: a continuação da ocupação militar - até 2011.
Diz a notícia que os manifestantes queimaram bandeiras norte-americanas e efígies do Bush e da Condoleezza - carrascos do povo iraquiano.

Aparentemente, trata-se de mais uma manifestação, igual a tantas outras que, com frequência, se realizam por todo o mundo e nas quais se protesta contra a injustiça e se exige justiça.
Neste caso, contudo, sendo isso é muito mais do que isso: estamos a falar
de um país destruído, esfacelado, devastado pela força bruta do imperialismo norte-americano;
de um povo que viu serem assassinados centenas de milhares de inocentes: seus filhos, pais, mães, irmãos, familiares, vizinhos, amigos;
de um país e de um povo que, apesar da barbárie a que foram submetidos, nunca deixaram de lutar pela sua independência, pela liberdade, pela justiça.
E isso é algo que merece ser destacado e valorizado.

Já sabíamos, até por experiência própria, que a luta, sempre necessária, é sempre possível - seja qual for a situação existente.
Mas é estimulante ver essa verdade confirmada por um povo e um país invadidos, ocupados, massacrados, há vários anos pelo mais poderoso e mais bárbaro país do mundo.

Tudo isto a mostrar-nos que a vitória final será do povo iraquiano.

POEMA

SÓCIO GRANDE + SÓCIOS PEQUENOS


Havia no ar sornice e expectativa;
Não tinha chegado ainda o senhor Tota.
Todos falavam por falar, todos esperavam o senhor Tota.

«As reuniões não se fizeram para dormir.
É preciso fomentar as vendas da loja três.
Então as obras na loja quatro,
são as obras de Santa Engrácia?
E o senhor, o senhor que é que lá está a fazer?
E o senhor, o senhor com os seus cabelos brancos
o que é que vendeu nesta viagem?
Fez o que pôde, não!,
é preciso fazer sempre mais do que se pode.
A mercadoria é de terceira, mas não é boa?,
os senhores é que não sabem vender...
Os senhores é que não a querem vender...
E assim, onde é que isto tudo vai parar?»

O senhor Tota já tinha chegado.

- Senhor Tota, é necessário substituto para a loja oito.
O rapaz coitado só tem um rim
e a acartar, a acartar, tem o outro doente.
Pediu-me para lhe pedir, bem... agora era preciso...
precisava de algum dinheiro para a estreptomicina...
bem, é claro, trata-se de uma vida...

«Mas em que é que ele se meteu?
É a fazenda que tem bacilos?
Não se estejam a rir, é claro que não tem bacilos,
mas isto aqui também não é nenhum saco roto;
O senhor não sabe? O senhor agora que é sócio não sabe?
Então se sabe por que é que não lhe disse?»

Bem, o rapaz é ainda muito novo:
e assim, só com um rim, a acartar, a acartar...
O senhor Tota compreende, sim, os fardos são pesados...
Está bem, senhor Tota, pronto está bem...
Não é nada comigo,
eu ainda tenho os dois, por enquanto...

«Por enquanto?
Não, o senhor não compreende as minhas intenções.
Não é com esmolas que se derruba a miséria;
Deprimir, humilhar o homem nosso semelhante
é deprimir e humilhar a nossa própria dignidade.
E a esmola humilha que a dá e quem a recebe.

Estamos aqui para tratar de negócios
mas sempre lhe direi:

Isto está caótico!
Está tudo caótico!!
São precisas vastas reformas, reformas integrais.
Não se trata agora da estreptomicina
nem do rapaz, coitado, também tenho pena dele
(ele não acarta assim tanto como diz...)
mas como sabe o negócio vai mau.

Um remédio a mais, um remédio a menos, não conta.
O que é necessário, o que é fundamental,
são hospitais, hospitais, muitos hospitais...
Percebe?
Muitos hospitais!!!»

O rapaz morreu.

O senhor Tota ainda não morreu.


Francisco Viana

O QUE ESTÁ A DAR

Parece que Ingrid, a Santa, estava tão certa de que iria ser premiada com o Nobel da Paz que já tinha escrito o discurso de agradecimento...

Enganou-se.
E este engano mostra como a Santa anda desfazada da realidade.
Atirada para o estrelato pelos interesses conjugados dos EUA e do regime narco-fascista da Uribe, Ingrid deslumbrou-se. E pensou que era verdade... o que não o era.

Se, em vez de se imaginar outra vez catapultada para as primeiras páginas da santidade, olhasse para a situação concreta actual, ter-se-ia apercebido que a questão Kosovo passara a ocupar um lugar relevante na situação política mundial e que o reconhecimento da mascarada de independência dessa região da Sérvia passara a ser um objectivo maior para os EUA - e para o capitalismo internacional.
E teria, então, compreendido a naturalidade (a inevitabilidade...) de o Prémio Nobel da Paz ser atribuído a alguém ligado a esse acto ilegal, prepotente e criminoso.
Como de facto aconteceu: o ex-presidente da Finlândia, Martti Ahtisaari, foi Prémio Nobel pelo papel decisivo que desempenhou na golpaça que conduziu à declaração unilateral da independência do Kosovo e à legalização da entrega do poder aos criminosos e narcotraficantes que compõem o governo liderado precisamente pelo chefe desses criminosos narcotraficantes.

Console-se Ingrid com o reconhecimento de que o Nobel da Paz também ficaria bem entregue se ela tivesse sido a laureada - e console-se com a ideia de que o apoio que prestou ao regime do facínora Uribe justificava e mais do que justificava tal paga...
Mas fique-se por aí: pelos prémios de consolação.
Porque neste momento concreto o Martti Ahtisaari é que estava a dar...
E o que está a dar é que é...

(Mas guarde o discurso: mais tarde ou mais cedo pode vir a precisar dele para agradecer um qualquer outro prémio da família deste Nobel dito da Paz...)

POEMA

LIVRE ARBÍTRIO


Dentro dum tosco barco
puseram-me a navegar
nas águas da absurdidade.

Sou livre de ser ou estar
- mas, estranha fatalidade -
ou vou no barco
ou charco...


Francisco Viana

A FRASE

O Super-Homem é um símbolo dos EUA: nascido em Krypton, mas desde menino naturalizado norte-americano, ele é o todo-poderoso e implacável destruidor de todos os eixos do mal existentes na Terra.

Deus - o outro grande símbolo ianque - também é norte-americano naturalizado: não é por acaso que todos os presidentes dos EUA se dizem investidos de poder divino - e é em nome desse poder que fazem o que fazem por este mundo fora...

No entanto, estou em crer que, entre os dois, o Super-Homem é o preferido pela generalidade dos norte-americanos: ele é o rosto do Bem e da Justiça contra o Mal e a Injustiça; é, essencialmente, o herói - heroi individual e, por isso, invencível; é o salvador; é, enfim, o ideal... norte-americano...

Assim se explica que entre o Super-Homem e Deus, os ianques optem sempre, nos momentos cruciais, pelo primeiro.
Foi o que fez, agora, o provável futuro Presidente dos EUA, Obama.
Eis a frase:
«Contrariamente aos rumores, não nasci numa manjedoura, nasci em Krypton. E fui enviado para salvar a Terra».

E em verdade vos digo: ele fingiu que estava a ironizar, mas estava a falar a sério.
Ó se estava!...

POEMA

CONFIDÊNCIA


Absorto, chegou-se ao pé de mim
e disse:
«sabe, não sei se o patrão tem culpa ou não de ser patrão;
mas a sarna também não tem culpa nenhuma de ser sarna
e é uma chatice!»


Francisco Viana

A chegada do Magalhães

Muito se falou sobre o computador Magalhães, anunciado com alta pompa e circunstância como uma "invenção" portuguesa promovida pelo Governo liderado pelo Mui Ilustre Engenheiro José Sócrates.

A comunicação social, subserviente do poder dominante, não desmascarou esta tecnológica farsa, pois este "Magalhães" já existe desde 2006 e foi baptizado como CLASSMATE PC um PC de baixo custo destinado a países do chamado Terceiro Mundo.

Mas acabei de receber uma imagem histórica que altera tudo, afinal o Magalhães já está entre nós há tanto tempo...

SEM SURPRESA

Foi grande - e suscitou, na altura, muitas interrogações - o frenesim que se apossou do Governo português em torno da questão do Kosovo.
Porquê esta pressa?, porquê esta urgência? - perguntou muita gente, sem encontrar resposta para a pergunta.
Pois bem: está agora tudo explicado.

Foi assim: a Sérvia tinha apresentado na ONU uma proposta no sentido de o Tribunal Internacional de Justiça se pronunciar sobre se a declaração unilateral de independência do Kosovo está de acordo com o Direito Internacional.
Antes da votação dessa proposta, os donos disto tudo (EUA & Cia) - receando que, como veio a acontecer, a proposta fosse aprovada pela Assembleia Geral da ONU - deram ordens a vários governos para que fizessem o que lhes competia: reconhecer a ilegalidade.
O Governo José Sócrates/PS foi um dos que obedeceram.
Prontamente.
Fielmente.
Subservientemente.
Rasteiramente.
Vergonhosamente.

E, pior do que tudo, sem surpresa...

POEMA

DE CADA VEZ QUE UM GOVERNO...


De cada vez que um governo necessita de segredos,
por segurança do Estado, ou para melhor êxito
de negociações internacionais,
é o mesmo que negar,
como negaram sempre desde que o mundo é mundo,
a liberdade.

Sempre que um povo aceita que o seu governo,
ainda que eleito com quantas tricas já se sabe,
invoque a lei e a ordem para calar alguém,
como fizeram desde que o mundo é mundo,
nega-se
a liberdade.

Porque, se há algum segredo na vida pública,
que todos não podem saber, é porque alguém,
sem saber, é o preço do negócio feito.
E se há uma ordem e uma lei que não inclua
mesmo que seja o último dos asnos ou dos pulhas
e o seu direito a ser como nasceu ou fizeram,
a liberdade
é uma farsa,
a segurança
é uma farsa,
a ordem
é uma farsa,
não há nada que não seja uma farsa,
a mesma farsa representada sempre
desde que o mundo é mundo,
por aqueles que se arrogam ser
empresários dos outros
e nem pagam
decentemente senão aos maus actores.


Jorge de Sena

VISÕES DA VISÃO & Cia.

São muitas e muito diversificadas as expressões assumidas pelo anticomunismo por esse mundo fora, ao longo dos tempos.
Nuns casos, ele manifesta-se pela força bruta - através de perseguições, prisões, torturas, assassinatos; noutros caos, pela força democrática - através de uma ofensiva permanente e intensa, feita em nome da democracia e da liberdade, e baseada na mentira, na calúnia, na deturpação, manipulação e viciação de factos e de dados.
Dispondo de armas poderosas - onde avulta a comunicação social propriedade do grande capital - o anticomunismo influencia segmentos vastíssimos da sociedade, divulgando as mentiras tantas vezes quantas as necessárias para que sejam aceites como verdades, semeando preconceitos, enfim, criando obstáculos poderosos à luta e ao avanço dos comunistas e do seu projecto transformador.

No caso de Portugal, pode dizer-se que, de uma forma geral, o anticomunismo assumiu todas as suas expressões e facetas.
O que é natural, na medida em que o nosso País viveu 48 anos sob uma ditadura fascista; dois anos num processo revolucionário inovador, criativo e impetuoso; e 32 anos (até ver) sob uma ditadura do grande capital (ou democracia burguesa) - e nesses três períodos o PCP ocupou sempre, sempre, aprimeira fila da luta.

O anticomunismo é sempre estúpido. Mas é sempre perigoso - mesmo quando se exibe pela via da imbecilidade, do primarismo, da incultura, da insolência alvar.
Um exemplo: a revista Visão tem uma rubrica intitulada «mais&menos», onde semanalmente regista, em duas colunas, o «positivo» e o «negativo» em relação a pessoas, casos, situações.
Esta semana, Jerónimo de Sousa é um dos visados. Na coluna do «menos», obviamente...

Porquê?: porque, segundo a visão da Visão, a actual «crise não é apenas a crise do capitalismo, que o diga Jerónimo de Sousa: o PCP parece estar com falta de liquidez e já faz uma espécie de peditório».

Este naco de prosa - donde emerge, inequívoco, um insanável conflito entre o autor e a Língua Portuguesa - seria apenas ridículo, se não fosse perigoso.
Na realidade, a patetice vertida é uma repetição (mais uma) de igual patetice vertida noutros média nos últimos dias.
Ridícula mas perigosa. Porque de tanto repetida se vai instalando como verdade absoluta.

26 anos depois, ADRIANO PRESENTE!

há vinte e seis anos morreu Adriano.

daqui o meu simples obrigado, ao homem que mais força me dá, através da música, na minha formação de comunista.


Porque

Adriano Correia de Oliveira

Composição: Sofia de Melo Breyner

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

De ramo em ramo


De ramo em ramo

O branco do linho ou dos muros
do sul,
o carmim matutino,

o claro azul mediterrâneo, o limão
húmido ainda,
o laranja, o verde das oliveiras

prateado, o amarelo exausto
de glória, o violeta adormecido
da flor que lhe dá nome,

o ocre do trigo ceifado
o negro quase
materno da terra lavrada,


é nos olhos que são ave
de ramo em ramo concertada.

Eugénio de Andrade


foto: rua de Beja, Junho de 2008

POEMA

A NOSSA HUMANIDADE


Quando não deixarmos tudo nas mãos dos políticos
e os despojarmos de todas as auréolas míticas,
quando afirmarmos, convictos, que somos todos iguais
e ninguém nos diga que o axioma é falso,
quando resolvermos os problemas sentados a uma mesa
e, recusando a violência, aceitarmos o diálogo,
quando nos unirmos todos, se é um doido quem manda,
e o internarmos, decididos, em menos de uma semana,
quando as pessoas souberem de facto amar o seu próximo,
seja negro ou chinês, esquimó ou argelino,

então teremos alcançado o privilégio
da plena humanidade e verdadeira democracia.


Francesc Vallverdú

AS VOLTAS QUE UM PRÉDIO DÁ....

História danada, esta - mas verídica.
A Administração dos CTT - em tempo da gerência de Carlos Horta e Costa - vendeu um prédio, em Coimbra, por 14,8 milhões de euros.
Quem o comprou foi uma empresa chamada Demagre (do holding MGPlus SGPS).

A Demagre, no mesmo dia em que comprou o prédio, vendeu-o: por 20 milhões de euros.
E quem o comprou foi uma empresa chamada ISAF (do BES).
Já repararam, certamente, que estamos perante homens de negócios, gente que sabe negociar, gente pragmática: em duas simples operações - toma lá 14,8 milhões e dá cá o prédio; dá cá 20 milhões e toma lá o prédio - a Demagre arrecadou mais de cinco milhões de euros.
É obra!

Mas a história não termina aqui.
Com efeito, ou porque não precisasse do prédio, ou por quaisquer outras desconhecidas razões, a ISAF resolveu alugar o dito.
E quem é que o tomou de aluguer, quem foi?
Exactamente: a Demagre!
Vejam bem as voltas que um prédio dá!

Ora, ao contrário do que se possa pensar, a caminhada deste prédio - recapitulando: CTT/ Demagre/ISAF/Demagre - não termina aqui.

Não termina, não: é que a Demagre - que, pelos vistos não precisava do prédio - mal acabou de o tomar de aluguer... sub-alugou-o.
A quem?: a vários interessados - entre os quais se encontram... os CTT!
A confirmar que o bom filho a casa torna.

E, garanto-vos, que esta história - obviamente filha da política de direita - não acaba aqui.
Este prédio tem pés para andar...

POEMA

NUNCA OUVI UM ALENTEJANO CANTAR SOZINHO


Nunca ouvi um alentejano cantar sozinho
com egoísmo de fonte.

Quando sente voos na garganta
desce ao caminho,
da solidão do seu monte,
e canta
em coro com a família do vizinho.

Não me parece pois necessária
outra razão
- ou desejo
de arrancar o sol do chão -
para explicar
a reforma agrária
no Alentejo.

É apenas uma certa maneira de cantar.


José Gomes Ferreira

XVIII CONGRESSO



"2.4.5.6 A realização de uma profunda alteração fundiária que concretize, nas actuais condições, uma reforma agrária nos campos do Sul que liquide a propriedade latifundiária a par da racionalização fundiária pelo livre associativismo no Norte e Centro." (das teses)

e eu chorei. e eu chorei rebentando de alegria. é bonito ver o sonho em letras!




Foto: Beja, Capital da FUTURA reforma agrária

POEMA

PROFECIA


Quando o palhaço, a quem os barões do carvão
deixam fazer de Chefe na nossa terra, tiver feito
de Chefe tempo bastante,
vai empreender no Continente todo
o papel de Chefe.

Quantos mais canhões tiver
mais ameaças vai soltar.
vai julgar: eles receiam a guerra, mas
um dia há-de ele ter a sua guerra.

Há-de berrar: a velha França
está cansada e quer sossego.
E virão contra ele esquadras de tanques da França.
Há-de berrar: para o povo inglês de merceeiros
a guerra é cara de mais.
E virá contra ele o ouro do Transvaal
e de ambas as Índias.
Há-de berrar: a América
fica muito longe, não tem exército.
E virá contra ele muito próximo
o exército da vasta América que constroi cidades
que têm cem andares.
Há-de berrar: só a União Soviética
espera por nós.
E hão-de vir contra ele os aviões
dos povos soviéticos, quatro vezes consecutivas.
Há-de berrar: os nossos amigos italianos
hão-de vir ajudar-nos.
E não virá ninguém.

E a Alemanha, que na última guerra
ganhou as batalhas todas menos a última,
nesta guerra, tirante a primeira,
há-de perdê-las todas.


Brecht

20 MIL MILHÕES

Ao longo dos anos (já lá vão 32!), tem-nos sido dito que «O Estado não tem dinheiro».
É claro que tal afirmação significa, rigorosamente, isto: «O Estado não tem dinheiro para melhores salários, reformas e pensões; para a Saúde; para o Ensino...» - ou, dito de outra forma: «O Estado não tem dinheiro para nada que tenha a ver com a melhoria das condições de vida de quem trabalha e vive do seu trabalho».

Para outros destinos, é evidente que o Estado tem dinheiro. Muito. O que for necessário.
É o que Sócrates acaba de demonstrar ao anunciar que o Estado vai disponibilizar 20 mil milhões de euros para os banqueiros, ou, como dizem os jornais, «para restabelecer a confiança no sistema financeiro».
20 mil milhões!: muito dinheiro tem este Estado!

Pronto, os portugueses podem dormir descansados: a Banca está salva.
O pesadelo continua.

POEMA

JOEIRA!


Até quando te calarás, povo?
Até quando te quedarás irresoluto?
Até quando te verei receoso?
Até quando serás ingénuo?
Até quando escutarás
os pregadores
que exploram
a tua inefável candura?
Mestres e guias infalíveis...?
Há-os de voz potente
e de botas ferradas;
há-os mais suaves,
até angélicos
e muito sábios...
Há os que usam, com palavras demasiado escolhidas,
a tua língua.

Joeira, povo,
com uma peneira finíssima,
e esfrega a pele
nos cardos que te rodeiam
até que a dor se torne insuportável,
até sentires a dor soar
como um clarim de combate.


Félix Cucurull

PREOCUPAÇÃO COMOVENTE...

Chega a ser comovente a preocupação manifestada pelo Público com a «situação financeira do PCP».
Há dias, em extensa peça, uma jornalista deu-nos conta das conclusões sobre a matéria a que chegou após ter treslido as Teses do XVIII Congresso - conclusão que exemplarmente resumiu assim, mais coisa menos coisa: a situação financeira actual é insustentável e o PCP vai despedir funcionários.

Vejamos agora, em resumo, o que sobre a matéria dizem as Teses:
1 - a fonte de receitas básica e essencial do PCP radica nas quotizações, nas contribuições dos militantes e dos eleitos, nas inicativas várias de angariação de fundos (de que a Festa do Avante é a mais relevante) - enquanto que outros partidos (PS, PSD, CDS/PP e BE) vivem sobretudo do financiamento do Estado;
2 - a Lei de Financiamento dos Partidos - reforçando fortemente o financiamento do Estado e penalizando gravemente as inicativas partidárias - veio criar grandes dificuldades ao PCP (que vive sobretudo das suas receitas próprias) e veio facilitar a vida aos partidos que vivem essencialmente à custa do Estado - e que, por isso, a revogação dessa lei antidemocrática constitui um objectivo da luta dos comunistas;
3 - apesar da evolução positiva nas receitas e no esforço para conter ou diminuir as despesas, as contas do Partido, entre 2004 e 2007, apresentaram resultados negativos;
4 - isso criou uma situação insustentável que exige a definição de medidas adequadas e a concretização dessas medidas - e as Teses apontam, a seguir, e propõem ao colectivo partidário, um vasto conjunto de medidas, uma das quais é «a gestão, contenção e mesmo redução de despesas, particularmente daquelas que sendo custos de estrutura não implicam directamente com a acção política, designadamente a diminuição do peso relativo de funcionários sem tarefas de organização, de modo a contribuir para o equilíbrio financeiro indispensável à sustentabilidade do Partido e à manutenção da sua intervenção política».

Como se vê, é grande a diferença entre a tresleitura das Teses feita pelo Público e o que as Teses realmente dizem - tão grande que bem se pode dizer que o Público... leu outras teses...

O PCP já esclareceu o Público sobre o assunto, já lhe disse que, como pode ler-se nas Teses, a «diminuição do peso relativo de funcionários sem tarefas de organização» não significa «despedir funcionários» - que, pelo contrário, tal proposta consagra, isso sim, a possibilidade do aumento do número de funcionários que têm tarefas de organização.
O Público - sem reconhecer que tinha errado - publicou parte do esclarecimento do PCP - o suficiente, diga-se, para qualquer leitor atento perceber que o jornal tinha errado...

Nisto tudo o que mais me espanta - e me comove... - é esta preocupação do jornal da Sonae precisamente com a situação financeira do PCP - parecendo nada se preocupar com a sua própria situação financeira...
É que, como é sabido, o Público vive uma situação financeira que só é sustentável porque a Sonae despeja para lá milhões de euros todos os anos - disso dependendo, exclusivamente, o tempo de vida do jornal...

Quanto ao PCP - que depende de si próprio: dos seus militantes, da sua qualidade de partido da classe operária e de todos os trabalhadores - o colectivo partidário comunista saberá definir as medidas necessárias para resolver os problemas existentes, e sairá do XVIII Congresso em condições de, também financeiramente, fortalecer o Partido.

POEMA

ENQUANTO


Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar nas artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e mães,
asndarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das casas;
enquanto isto acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA.


António Gedeão

ESTA CAMBADA

Em resposta ao «silêncio e conivência do Governo no caso dos voos da CIA», o Grupo Parlamentar do PCP apresentou, ontem, uma proposta visando interditar, a partir de agora, o espaço aéreo português a voos que tenham Guantánamo como destino.
A proposta foi rejeitada: PS, PSD e CDS - os partidos da política de direita - votaram contra.

Os argumentos utilizados são curiosos.
«Os EUA são um aliado histórico», «argumentou» o PSD.

«O PCP não tem nenhuma prova da passagem de prisioneiros de Guantánamo por Portugal», «argumentou» o CDS.

«Está em curso uma investigação pela Procuradoria Geral da República, pelo que a proposta do PCP iria pôr em causa os compromissos internacionais de Portugal, designadamente com a NATO», «argumentou» o PS.

Trata-se, como se vê, de responder a alhos com bugalhos, utilizando «argumentos» que nada têm a ver com a proposta do PCP - na qual, sublinhe-se, o que está em causa não é saber se sim ou não passaram por aeroportos portugueses aviões com presos para Guantánamo: mas sim, impedir que tal aconteça (ou volte a acontecer) no futuro.

«Argumentando» como o fizeram e votando como votaram, o PS/PSD/CDS - com particulares responsabilidades, neste caso, para o partido do Governo - o que fizeram foi... dar luz verde aos EUA para (continuarem a) utilizar os aeroportos portugueses para transportar presos para o campo de concentração de Guantánamo.
O que torna legítimo concluir:
1 - que os aviões que já por cá passaram o fizeram com autorização dos governos PSD/PS - embora sem estes terem a coragem de o assumir; e
2 - que essa autorização continua - embora cobardemente disfarçada...

Estamos, assim, perante um vulgar caso de cobardia política, típico de quem optou por uma atitude de abjecta subserviência ao imperialismo norte-americano, em frontal desrespeito pela Constituição da República Portuguesa e pela independência e a soberania nacional.
E é esta gente - esta cambada - que está no poder há 32 anos...

POEMA

PARÁBOLA

Num caroço de mentira
trouxe a verdade escondida
pus o caroço na terra
nasceu verdade fingida

Não faltou água dos olhos
ao viço desta palmeira
que frutos daria o ramo
da maligna sementeira

Se do sal que nela morde
um sabor amargo sobra
é coisa que vai no rasto
que ficou depois da cobra

Lá em cima onde a verdade
tem a franqueza do vento
negam ninhos as raízes
porque é outro o seu sustento

E o tronco tão levantado
sobre o caroço partido
não é tronco mas é homem
alto firme e decidido


José Saramago

OITO PALAVRAS

O «provedor do leitor» é um dos muitos filhos da modernidade democrática, que é uma senhora fértil em demonstrar a Portugal e aos portugueses que tudo o que de mau lhes acontece é inevitável, democrático e moderno - por isso, bom.
Assim, a tarefa destes «provedores» é a de demonstrarem a existência... do inexistente, a saber: os direitos do leitor na comunicação social dominante.

Por isso, como se esperava e a realidade tem evidenciado, os provedores dos leitores são, de facto, autênticos provedores dos directores; ou seja: provedores dos média dominantes; ou seja: provedores da política de direita; ou seja: provedores dos patrões...
E há que reconhecer que cumprem exemplarmente essas múltiplas e complementares funções, certamente fazendo jus ao que, para o efeito, recebem.


Ora acontece que o «provedor dos leitores» do Diário de Notícias - Mário B. Resendes - entendeu agregar a essa sua função a de «promotor da leitura».
E passou a «recomendar» livros aos leitores - direito que, obviamente, lhe assiste, tanto quanto a mim me assiste o direito de, pelo menos, desconfiar das recomendações de tal «promotor».
Que livros nos recomenda, então, o «promotor da leitura»?: em primeiro lugar, os que ele próprio «apreciou»; em segundo lugar, os que, presumivelmente, vai apreciar, ou seja: os livros que «seguiram na mala de férias» - e, agora e em terceiro lugar, os «lançamentos de Outono».

E é assim que o «promotor da leitura», promove: numa peça intitulada «Livros, livros e mais livros», ele informa-nos que neste Outono «a maior expectativa vai, obviamente, para o último de António Lobo Antunes, O Arquipélago da Insónia» (e depois seguem-se outras expectativas, designadamente os livros de Marques Mendes, Miguel Veiga, Paulo Teixeira Pinto, etc, etc...)

Também neste caso, não nego ao «provedor/promotor» o direito de considerar que o novo livro de Lobo Antunes é «a maior expectativa» deste Outono - e certamente sê-lo-á para ele e para muitos outros apreciadores do autor em causa.
O que (não) surpreende é que, falando o «promotor» de «livros, livros e mais livros» - e aconselhando um dezena deles - não tenha incluído, ao menos no décimo primeiro lugar... o novo livro de José Saramago, A Viagem do Elefante, cujo lançamento foi já anunciado.

E é caso para perguntar: que raio de critério é o deste «promotor da leitura» que o leva a ignorar a publicação de um novo livro do (até agora) único escritor da Língua Portuguesa a quem foi atribuído o Prémio Nobel?
E é caso para responder: o critério é da família do que o «promotor da leitura» utiliza enquanto «provedor dos leitores» e é simples, muito simples...
Tão simples que oito palavras chegam para o explicar: José Saramago é membro do Partido Comunista Português.


POEMA

NOS RAMOS DOS SALGUEIROS


E como poderíamos nós cantar
com o pé estrangeiro sobre o peito,
abandonados os mortos pelas praças
na dura erva gelada,
o balido impotente das crianças,
o uivo negro da mãe que tropeçava contra o filho
crucificado no poste telegráfico?

Nos ramos dos salgueiros, como um voto,
também as nossas cítaras pendiam
levemente oscilando ao triste vento.


Salvatore Quasimodo

AMÉN

Enquanto a televisão italiana prossegue a transmissão, em directo, da maratona de leitura da Bíblia, iniciada no domingo pelo Papa Bento XVI, este mesmo Papa não se poupa a esforços para levar por diante o processo de beatifificação do seu antecessor Pio XII.
Nesse sentido, o Papa actual, bem acolitado, tem vindo a proceder a uma operação de branqueamento das posições de Pio XII por ocasião da II Cuerra Mundial.
Ontem mesmo, na missa com que assinalou os 50 anos da morte de Pio XII, afirmou: «Rezamos para que prossiga a causa da beatificação do servo de Deus».

São muitos os que se manifestam contra e a favor desta beatificação.
Em causa está o papel desempenhado por Pio XII face ao nazi-fascismo e aos crimes por este cometidos.
Para os defensores da beatificação - o rabino da Comunidade Israelita de Lisboa, por exemplo - «o Papa Pio XII não foi, de modo nenhum, o Papa dos nazis. Ele salvou muitos judeus da morte».

Para outros - o rabino-chefe israelita de Haifa, por exemplo - «não deveria ser beatificado ou ser considerado como modelo quem não levantou a voz contra o Holocausto, ainda que, de maneira secreta, tenha tentado ajudar-nos».

Para o historiador John Cornwell - autor do livro «O Papa de Hitler» - Pio XII «foi o Papa ideal para o horrível plano de Hitler».

É possível que Pio XII - a que os seus próximos chamavam «O alemão» - tenha feito todas as bondades que os seus defensores apontam, nomeadamente «encorajar o acolhimento de judeus em casas religiosas».
Mas é certo e sabido que nunca Pio XII - «servo de Deus» lhe chama Bento XVI - fez ouvir a sua voz, directamente, condenando, ou sequer, criticando o nazismo e os seus crimes.
Como é certo, sabido, o papel desempenhado por Pio XII, directamente, na organização da fuga, no final da Guerra, de milhares de criminosos nazis para a Argentina, o Paraguai, o Brasil, a Espanha...
Como num dos seus livros relata Simon Whisental (o célebre «caçador de nazis»), muitas foram as pistas que seguia e que acabavam precisamente no Vaticano...

É certo e sabido, também, que Pio XII era, em primeiro lugar e acima de tudo, anti-comunista - e que, para ele, o nazismo se apresentava como a grande oportunidade de liquidar os comunistas.
Vendo frustrados os seus desejos, intensificou o seu pontificado reaccionário e anticomunista.
E, logo nas primeiras eleições na Itália após a Guerra, proibiu o voto no Partido Comunista Italiano - que havia estado na primeira linha da resistência ao nazi-fascismo...

Por tudo isto, é certo e sabido... que «O Papa de Hitler» vai ser, mais dia menos dia, beatificado.
Amén.