POEMA

POEMA DO AUTOCARRO


Quantos biliões de homens! Quanto gritos
de pânico terror!
Quantos ventres aflitos!
Quantos milhões de litros
de movediço amor!
Quantos!
Quantas revoluções na cósmica viagem!
Quantos deuses erguidos! Quantos ídolos de barro!
Quantos!
até eu estar aqui nesta paragem
à espera do autocarro.

E aqui estou, realmente.
Aqui estou encharcado em sangue de inocente,
no sangue dos homens que matei,
no sangue dos impérios que fiz e que desfiz,
no sangue do que sei e que não sei,
no sangue do que quis e que não quis.
Sangue.
Sangue.
Sangue.
Sangue.

Amanhã, talvez nesta paragem de autocarro,
numa hora qualquer, H ou F ou G,
uns homens hão-de vir cheios de medo e sede
e me hão-de fuzilar aqui contra a parede,
e eu nem sequer perguntarei porquê.

«Mas...»

Não há mas.
Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal.

«Mas eu só faço o bem, eu só desejo o bem,
o bem universal,
sem distinguir ninguém»

Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal.

Eles virão e eu morrerei sem lhes pedir socorro
e sem lhes perguntar porque maltratam.
Eu sei por que é que morro.
Eles é que não sabem porque matam.

Eles são pedras roladas no caos,
são ecos longínquos num búzio de sons.
Os homens nascem maus.
Nós é que havemos de fazê-los bons.

Procuro um rosto neste pequeno mundo do autocarro,
um rosto onde possa descansar os olhos olhando,
um rosto como um gesto suspenso
que me estivesse esperando.
Mas o rosto não existe. Existem caras,
caras triunfantes de vícios,
soberbamente ignaras
com desvergonhas dissimuladas nos interstícios.
O rosto não existe.

«Procura-o»

Não existe-

«Procura-o.
Procura-o como a garganta do emparedado
procura o ar;
como os dedos do homem afogado
buscam a tábua para se agarrar»

Não existe.

«Vês aquele par sentado além ao fundo?
Vês?
Alheio a tudo quanto vai pelo mundo,
simboliza o amor.
Podia o céu ruir e a terra abrir-se,
uma chuva de lodo e sangue arrasar tudo
que eles continuariam a sorrir-se.
Não crês no amor?»

?

«Não ouves?»

?

«Não ouves?»

«Não crês no amor?»

Cala-te, estupor.

Tenho vergonha de existir.
Vergonha de aqui estar simplesmente pensando,
colaborando
sem resistir.

Disso, e do resto.
Vergonha de sorrir para quem detesto,
de responder pois é
quando não é.
Vergonha de me ofenderem,
vergonha de me explorarem,
vergonha de me enganarem,
de me comprarem,
de me venderem.

Homens que nunca vi anseiam por resolver o meu problema concreto.
Oferecem-me automóveis, frigoríficos, aparelhos de televisão.
É só estender a mão
e aceitar o prospecto.
A vida é bela. Eu é que devia ser banido,
expulso da sociedade para que a não prejudique.

Hã?
Ah! Desculpe. Estava distraído.
Um de quinze tostões. Campo de Ourique.


António Gedeão

(Este Poema do Autocarro encerra o ciclo de poesia de António Gedeão.
O próximo Poeta será José Gomes Ferreira, visita frequente do Cravo de Abril mas cuja presença está sempre justificada pela qualidade da sua poesia - desta vez também por que este é o ano do 110º aniversário do seu nascimento)

O NECESSÁRIO PONTAPÉ

Dois apontamentos sobre o dia de ontem:


1 - A Espanha viveu ontem um dia memorável.
Não me refiro ao facto de a sua selecção de futebol ter vencido e eliminado a selecção portuguesa no jogo realizado na Cidade do Cabo.
Refiro-me, sim, a um acontecimento muito mais relevante do que esse e que é o seguinte: o Metro de Madrid esteve parado, completamente parado!, durante todo o dia, por efeito de uma greve de protesto contra as medidas anti-laborais e anti-sociais do Governo de Zapatero (medidas que, aliás, são no essencial as mesmas que o Governo de Sócrates tem vindo a levar à prática).
O facto é tanto mais significativo quanto esta foi a primeira vez que uma greve paralisou totalmente o Metro da capital espanhola - razão pela qual os comentadores a denominam de «greve histórica».
Por isso, aqui fica a saudação do Cravo de Abril aos trabalhadores do Metro de Madrid.

2 - Comentando a derrota da selecção portuguesa de futebol frente à sua congénere espanhola, Rui Madeira (Administrador do Teatro Circo de Braga) disse, entre outras coisas, que Portugal perdeu «e se calhar ainda bem» - e explicou porquê: «Assim podemos voltar a concentrar-nos na crise, nas portagens das SCUT, nos cortes na cultura».
Não está mal visto, não senhor.
A propósito: dia 8 temos aí à nossa espera a jornada de luta da CGTP, óptima oportunidade para nos concentrarmos na crise e nas suas coinsequências todas - e para darmos o necessário pontapé na política de direita.

POEMA

AMOSTRA SEM VALOR


Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.
Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível;
com ele se entretém
e se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,
sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,
que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,
não pesa num total que tende para o infinito.

Eu sei que as dimensões impiedosas da Vida
ignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,
nesta insignificância, gratuita e desvalida,
Universo sou eu, com nebulosas e tudo.


António Gedeão

LÁ COMO CÁ

Diz o Diário Económico que a taxa de desemprego em Espanha atingiu os 20,5%.
Para isso muito contribuíram os 1,3 milhões de trabalhadores despedidos no ano de 2009 - dos quais cerca de meio milhão foram despedidos sem justa causa, ou seja por decisão tomada pelos patrões à margem da lei e de acordo apenas com os seus interesses particulares.

Perante isto, entendeu o governo de Zapatero - o maior amigo de Sócrates na Europa - apresentar ao Parlamento uma proposta de reforma das leis laborais - uma proposta carregada de «modernidade», como não podia deixar de ser...

A proposta foi aprovada e, a partir de agora, tudo será diferente.
Diferente como?
Assim: com a nova legislação vai ser «mais fácil e mais barato despedir, reduzindo os custos para os patrões».

Como se vê, é simples.
E não há como um governo «socialista» para governar ao sabor dos interesses do grande capital.
Lá como cá.

POEMA

TROVAS PARA SEREM VENDIDAS
NA TRAVESSA DE S. DOMINGOS


O repórter fotográfico
foi ver a fuzilaria.
Ganhou o prémio do ano
da melhor fotografia.

Notícias não confirmadas
informam, de origens várias,
que as tropas revolucionárias
recentemente cercadas
acabam de ser esmagadas
com perdas extraordinárias.

Na redacção do jornal
corre tudo em sobressalto.
A hora é sensacional.
Toda a gente dormiu mal,
gesticula e fala alto.

Passageiros recém-chegados
do lugar da revolução
viram dúzias de soldados
prontos a ser fuzilados
e muitos já arrumados
e amontoados no chão.

Agora que se anuncia
já estar regulado o tráfico,
inda mal rompera o dia
foi ver a fuzilaria
o repórter fotográfico.

Vá lá, vá lá, felizmente,
felizmente que ao chegar
inda havia muita gente
que estava por fuzilar.

Numa ridente campina
de papoilas salpicada,
um sol de lâmina fina
cortava a densa neblina
da metralha disparada.

Berrando como vitelos
a malta dos condenados
avançava aos atropelos
e arrepanhava os cabelos
com gestos alucinados.

O repórter já suava,
não tinha mãos a medir;
ora a máquina carregava,
apontava e disparava,
ora no chão se agachava,
pulava e gesticulava
com afanosa presteza.
Há empregos, com franqueza,
nem haviam de existir.

A um tipo de mãos nojentas
que aos berros sobressaía
gritando frases violentas,
focou-o mesmo nas ventas
no momento em que caía.

Mas o melhor não foi isso.
O melhor foi uma velhota
que pôs tudo em rebuliço.
Rápida como um rastilho,
em convulsivos soluços,
foi estatelar-se de bruços
sobre o corpo do seu filho.

- Meu menino, meu menino!
Valha-me a Virgem Maria!
Que vai ser o meu destino
sem a tua companhia?
Mataram-me o meu menino!
Filho do meu coração!
Que vai ser o meu destino
sem a tua protecção?!

Nunca uma cena de horror,
uma tragédia tão viva,
tão grande e expressiva dor,
alguém teve ao seu dispor
defronte de uma objectiva.

Era uma face crispada,
um olhar perdido e louco,
uma boca de xarroco
em lágrimas ensopada.

Foi uma sorte, realmente.
Um desses casos notáveis,
bestiais e formidáveis
que acontecem raramente.

Aquelas faces crispadas
correram pelo mundo inteiro
nas revistas ilustradas,
em tiragens esgotadas
que deram muito dinheiro.

Com aquele sentido humano
da justiça e da harmonia,
o repórter, todo ufano,
ganhou o prémio do ano
da melhor fotografia.


António Gedeão

PALAVRAS PARA QUÊ?

Dizem os jornais que Mário Soares recusou pronunciar-se sobre o candidato que apoiará nas eleições presidenciais.
Fê-lo, certamente, naquele tom categórico e definitivo que lhe é habitual, género: não digo nada sobre o assunto, nem uma palavra, assunto arrumado...
Também como é seu hábito, de imediato começou a pronunciar-se sobre o que jurara não se pronunciar- sempre recusando pronunciar-se, obviamente...

«O mais importante num político é o respeito pelos outros»: começou por dizer, qual Frei Tomás...
E como, por acaso, tinha ali mesmo ao seu lado um candidato às presidenciais, Soares - sempre recusando pronunciar-se sobre o candidato que apoiará... - proclamou: «Fernando Nobre dedicou toda a vida aos outros sem pedir nada em troca».
Depois, e ainda continuando a recusar pronunciar-se sobre o candidato que apoiará, acrescentou que o exemplo de «respeito pelos outros» dado por Fernando Nobre «não tem paralelo».

A terminar, Soares, categórico e definitivo, como é seu hábito, recusou pronunciar-se sobre o candidato que apoiará nas eleições presidenciais...


Palavras para quê?: é um homem de palavra em acção...

POEMA

AMADOR SEM COISA AMADA


Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.

Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.

Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
Sou amador da existência,
não chego a profissional.


António Gedeão

CARLOS PATO

UM NOME E UM EXEMPLO A FIXAR


Carlos Pato
nasceu em São João dos Montes, Vila Franca de Xira, em 21 de Dezembro de 1920.
Oriundo de uma família antifascista - era irmão de Octávio Pato, que viria a ser um destacado dirigente do PCP - Carlos Pato, aos 17 anos de idade, aderiu ao PCP - integrando, logo a seguir, o Comité Local do Partido e, um pouco mais tarde, o Comité Regional do Ribatejo.
Paralelamente à actividade partidária, participou intensamente no movimento associativo do concelho e fez parte do «Grupo Neo-Realista de Vila Franca».
Foi duas vezes preso pela PIDE.
Na última dessas prisões, em 1949, foi submetido a brutais torturas, incluindo 111 horas consecutivas de «estátua».
Após uma cruel agonia, resultante das torturas e da recusa da polícia fascista em lhe facultar tratamento médico, viria a sucumbir às 6H35 do dia 26 de Junho de 1950, no Reduto Norte do Forte de Caxias - faz hoje precisamente 60 anos.
Tinha 29 anos de idade.

O seu funeral, que a PIDE quis ocultar, constituiu uma expressiva manifestação de pesar e de protesto da população do concelho de Vila franca de Xira.
Uma manifestação que Alves Redol descreveu assim, no Prefácio ao livro «Alguns Contos», de Carlos Pato, publicado um ano após a sua morte, por iniciativa de um grupo de amigos:

«Só quem viu mulheres e meninos do povo levarem-te raminhos de flores silvestres, numa homenagem que nunca conheci igual, e os teus amigos, e os teus companheiros de trabalho, e uma população inteira, todos sofrendo a essa separação, numa angústia que estava mais no nosso sangue do que nos rostos torturados por esse golpe, é que saberá compreender e testemunhar que chorámos um Homem. Um Homem de que nos cumpre honrar o exemplo de dignidade e a lição de coerência»

Sobre Carlos Pato, escreveu José Gomes Ferreira:

Volta-te e olha para a terra.
- a carne da tua sombra
de flores acesa.

Céu para quê?

O céu é para os que esperam.
E tu morreste por uma certeza!


E Carlos de Oliveira:

Mais vivo porque sofreste,
a morte não veio, foi-se.
A eternidade constrói-se
na beleza com que viveste.


E Sidónio Muralha:

Largos versos irrompem do teu silêncio de granito.
E tu vives inteiro em cada grito,
tu que foste maior que todas as poesias.


(Esta tarde, a Comissão Concelhia de Vila Franca de Xira do PCP prestou homenagem a Carlos Pato, com uma sessão no Clube Vilafranquense - em que interveio Armindo Miranda, da Comissão Política do PCP - seguida de uma romagem ao Cemitério de Vila Franca de Xira)

TELHADOS DE VIDRO

Manuel Alegre arrancou ontem, em Setúbal, com a sua pré-campanha.
Na presença de 223 pessoas, o candidato do PS/BE, desferiu um forte ataque ao actual Presidente.

«Um Presidente da República não pode nunca dizer que um país vive uma situação insustentável» - proclamou Alegre, repetindo, por palavras suas, a ideia de Sócrates sobre o assunto.
E por que é que um PR não pode dizer o que Cavaco disse?
Alegre, sempre na linha do pensamento socratista, explicou: «Ao Presidente da República não cabem palavras de depressão, nem palavras que desmobilizem os portugueses, mas palavras de confiança».
No que lhe diz respeito, Alegre reconhece que «Portugal está de facto numa situação difícil», considerando, no entanto, que «o termo insustentável cria dificuldades ao próprio país».

«Difícil»?
«Insustentável»?
Estou em crer que essa é uma questão irrelevante para a imensa maioria dos portugueses sobre os quais caem - difíceis e insustentáveis - as consequências da política que os partidos de Alegre e de Cavaco - ora um; ora outro; ora os dois de braço dado - têm vindo a praticar há 34 anos.


A dada altura, elevando o tom do ataque a Cavaco Silva, o candidato de Louçã/Sócrates perguntou, acutilante: «O que fez ele para impedir que a situação fosse insustentável?» - e, garantindo que não tem «memória curta», lembrou que Cavaco foi primeiro-ministro durante dez anos...
Bem lembrado, sem dúvida.
Só que, como muito bem diz a sabedoria popular, quem tem telhados de vidro não deve atirar pedradas...
E a verdade é que Cavaco, se quisesse, podia perguntar com igual acutilância: «O que fez ele para impedir que a situação fosse difícil?»- e, provando que também não tem «memória curta», lembrar que Alegre está ligado, há 34 anos, à política que conduziu Portugal à situação «difícil» ou «insustentável» em que se encontra.

POEMA

PARA ALÉM DA TRAFARIA


- Minha mãe, haverá mundo
para além da Trafaria?

- Não sei, meu filho. Não sei.
Tudo aquilo que sabia
já no meu sangue te dei.

- Que serras são estas, mãe,
que não nos deixam ver nada?

- São rugas que a Terra tem.
Não maces a tua mãe.
Deixa-me estar descansada.

- Ó mãe, que rio é aquele?
Onde nasce e onde morre?

- Ó filho, é Deus que o impele.
Entretem-te a olhar para ele.
É um rio. Tem água. Corre.

- Quando eu for crescido, mãe,
quero saber e entender.

- Ó filho, o supremo bem
é cada qual, com o que tem,
resignar-se e agradecer.
Deus faz tudo pelo melhor.
Não se engana nem se esquece.
De todo o mal, o maior,
seria sempre peor
se Deus assim o quisesse.
Ninguém foge ao seu destino.
Está tudo determinado.
Não penses com desatino.
Dorme, dorme, meu menino,
um soninho descansado.


António Gedeão

BASTA FAZER AS CONTAS

No ano de 2008, havia em Portugal 10 400 milionários (indivíduos com fortunas superiores a um milhão de dólares).
No ano de 2009, esse número subiu para 11 000 - mais 600, portanto, o que corresponde a um aumento de 5,5%.

Assim sendo, também o número de pobres vai aumentando: segundo a Eurostat, existem em Portugal cerca de 2,5 milhões de pobres, dos quais mais de 200 mil em situação de miséria extrema.

Posto isto, basta fazer as contas e encontraremos a resposta à pergunta formulada há mais de um século por Almeida Garrett:

«E eu pergunto aos economistas, aos políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria (...) para produzir um rico?»

POEMA

ESTATÍSTICA


Quando eu nasci havia em Portugal
(em Portugal continental
e nas ridentes,
verdes e calmas
ilhas adjacentes)
uns seis milhões e umas tantas mil almas.
Assim se lia
no meu livrinho de Corografia
de António Eusébio de Morais Soajos.
Hoje, graças aos progressos da Higiene e da Pedagogia,
já somos quase dez milhões de gajos.


António Gedeão

COINCIDÊNCIAS

Juan Manuel Santos foi eleito presidente da Colômbia, numas eleições em que mais de 57% dos eleitores se abstiveram e, dos que votaram, 750 mil recorreram ao voto em branco.
Por coincidência, Juan Manuel Santos era ministro da Defesa do Governo do narco-fascista Uribe.


As eleições foram organizadas por uma empresa privada: a Unión Temporal Disporel, a qual «controlou todo o processo eleitoral»: «fabricou os boletins de voto e os demais materiais eleitorais, transportou os formulários e boletins para as assembleias de voto e, depois, recolheu os boletins».
Por coincidência, Juan Manuel Santos é um dos principais accionistas dessa empresa.

Por coincidência, Juan Manuel Santos, no seu discurso pós-eleições, declarou que vai prosseguir a política de Álvaro Uribe - que ele considera ser «o melhor presidente em dois séculos de República».

Por coincidência, no decorrer da campanha eleitoral foi assassinado mais um dirigente sindical - elevando para 31 o número de sindicalistas assassinados este ano na Colômbia.

Por coincidência, Juan Manuel Santos foi notificado pela justiça equatoriana - e pedida a sua extradição - pela sua responsabilidade, enquanto ministro da Defesa de Uribe, no assassinato de 25 pessoas, em Março de 2008, na sequência de um bombardeamento da força aérea colombiana sobre o Equador.

Por coincidência, a Colômbia é o mais fiel e incondicional aliado dos EUA no continente americano.

Por coincidência, a Colômbia é considerada, pelos EUA, como um modelo de democracia.

POEMA

COMO SERÁ ESTAR CONTENTE?


Como será estar contente?
Lançar os olhos em volta,
moderado e complacente,
e tratar com toda a gente
sem tristeza nem revolta?
Sentir-se um homem feliz,
satisfeito com o que sente,
com o que pensa e com o que diz?
Como será estar contente?

Deve haver qualquer mecânica,
qualquer retesada mola
que se solta e desenrola
no próprio instante preciso,
para que um homem de carne,
de olhos pregados no rosto,
possa olhar e rir com gosto
sem estranhar o som do riso.

Na minha tosca engrenagem,
de ferrugenta sucata,
há qualquer mola de lata
que não se distende bem,
qualquer dessorada glândula
ou nervo que não se enfeixa,
qualquer coisa que não deixa
deflagrar essa girândola
de timbres que o riso tem.

Não ter riso e não ter casa,
nem dinheiro nem saúde,
não se conta por virtude
que a miséria é ferro em brasa.

Mas ter casa, ter dinheiro,
ter saúde e não ter riso,
flagelar-se o dia inteiro
como se o sangrar primeiro
fosse um tormento preciso,
tê-lo sempre forte e vivo,
espantado a todo o momento,
isso sim, será motivo
de grande contentamento.


António Gedeão

«A CRISE TOCA A TODOS»

«A crise toca a todos»: eis uma frase repetida todos os dias por todos os governantes do mundo capitalista.
E enquanto isto dizem, vão aumentando o desemprego, aprovam leis que facilitam ainda mais os despedimentos, roubam nos salários e nas reformas, aumentam o custo de vida, enfim, aumentam a exploração de quem trabalha e vive do seu trabalho.

Entretanto, e porque estas medidas incidem sobre a imensa maioria dos cidadãos de cada país, a ideia de que «a crise toca a todos» generaliza-se como verdade absoluta - verdade que todos podemos confirmar, aliás...
Senão vejamos: experimente cada um de vocês olhar para as pessoas que conhece (familiares, amigos, vizinhos, colegas de trabalho):
entre essas pessoas há alguma que não seja «tocada» pela «crise»?
Não há, pois não?:
então, está confirmado: «a crise toca a todos»...


É claro que do outro lado desta imensa maioria brutalmente flagelada pela «crise», há uma imensa minoria, também «tocada pela crise», mas neste caso, pela varinha mágica da crise: são os ricaços, os multimilionários, os senhores do grande capital, cujas fortunas aumentam, aumentam, aumentam sempre...

E os dados não deixam margem para dúvidas: de acordo com um estudo publicado há dias pelo Boston Consulting Group (BCG), «a riqueza em mãos privadas atingiu no ano passado 111 biliões e 500 mil milhões de dólares, o que representa um aumento de 11,5 por cento em relação a 2008».

Estou em crer que se o BCG fizesse as contas até ao fim, concluiria que os aumentos das fortunas da imensa minoria, correspondem, mais coisa menos coisa, ao resultado da exploração da imensa maioria acrescido dos roubos praticados à pala da «crise»...

E como (sempre segundo o estudo do BCG) o aumento dessas fortunas «irá continuar a progredir até 2014, a um ritmo de 6 por cento ao ano», preparemo-nos para o que aí vem - e para os continuar a ouvir dizer, todos os dias, que «a crise toca a todos»...

Preparemo-nos, especialmente, para dar o nosso contributo no sentido de tornar mais forte a luta contra «crise».
Tendo sempre presente que onde está «crise» deve ler-se: capitalismo.
E tendo sempre o socialismo no horizonte.

POEMA

CHUVA NA AREIA


Terça-feira,
quarta-feira,
quinta,
sexta,
tanto faz.
Ou desta ou doutra maneira,
domingo ou segunda-feira,
nenhuma esperança me traz.

Que eu nem sei bem pelo que espero.
Se aprender o que não sei,
se esquecer o que aprendi,
se impor meu sou e meu quero
se, num ti que eu inventei,
nenúfares boiar em ti.

Que esta coisa que se espera
é no dobrar de uma esquina.
Um clarão que dilacera,
a explosão de uma cratera,
vida, ou morte, repentina.


António Gedeão

O DIÁRIO DA MANHÃ VOLTOU

Relembro: o Diário da Manhã era órgão oficial do fascismo salazarista.

Recordo: Diário da Manhã é o título escolhido por António Ribeiro Ferreira (ARF) para uma rubrica por ele assinada no Correio da Manhã.

Insisto: o título da rubrica condiz plenamente com o conteúdo reaccionário, ultradireitista, fascista, das prosas que ARF ali verte.

Concluo: o Diário da Manhã voltou.

Ontem, ARF disparou duas rajadas raivosas: uma sobre José Saramago, outra sobre os que criticaram a ausência de Cavaco Silva no funeral do Prémio Nobel.

Sobre Saramago, ARF alerta os seus correligionários: «é preciso não esquecer que o homem sempre defendeu os massacres cometidos pela União Soviética, as piores ditaduras e nunca esteve ao lado da liberdade» - e há que reconhecer que nenhum escriba do Diário da Manhã fascista desempenharia melhor o papel de sentinela vigilante da defesa do regime.

Quanto aos que criticaram Cavaco por não ter ido ao funeral... se me permitem, abro aqui um parêntesis para fazer uma confissão: pela primeira vez, estive de acordo, digamos assim, com uma atitude de Cavaco; ou seja: gostei de não o ver no funeral de José Saramago - tanto quanto não gostei de ver outros que, hipócrita e oportunisticamente, lá foram...
Voltando à prosa de ARF. Escreve ele, dirigindo-se aos que criticaram o Cavaco: «Vivemos num País de homens e mulheres livres. Gostem ou não. Se não gostarem têm bom remédio. Comam menos. E deixem-nos em paz» - assim escreviam também, e também no Diário da Manhã, os ARF's nascidos, criados e alimentados no País de homens e mulheres livres que Salazar chefiava.

Uma coisa é certa: o Diário da Manhã voltou.
Que mais nos irá acontecer?

POEMA

ANTI-ANNE FRANK


Esta criança esquálida,
de riso obsceno e olhares alucinados,
nunca apertou nas mãos a fria face pálida,
nunca sentiu, na escada, as botas dos soldados,
nunca enxugou as lágrimas que aniquilam e esgotam,
nunca empalideceu com o metralhar de um tanque,
nem rastejou num sótão,
nem se chama Anne Frank.

Nunca escreveu diário nem nunca foi à escola,
nem despertou o amor dos editores piedosos.
Nunca estendeu as mãos em transes dolorosos
a não ser nos primores da técnica da esmola.

Batem-lhe, pisam-na, insultam-na, sem que ninguém se importe.
E ela, raivosa e pálida,
morde, estrebucha, cospe, odeia até à morte.

Pobre criança esquálida!
Até no sofrimento é preciso ter sorte.


António Gedeão

UMA CONQUISTA DE ABRIL

«SARAMAGO, A LUTA CONTINUA!»: gritavam muitas pessoas, hoje, no Cemitério do Alto de São João.
Algumas dessa pessoas, levantavam o braço, não de punho fechado, como é hábito, mas empunhando um livro: A Viagem do Elefante, Caim, Ensaio sobre a Cegueira, Memorial do Convento, Levantado do Chão...
E essa foi, a meu ver, a mais expressiva homenagem feita ao Prémio Nobel da Literatura - e certamente aquela que mais lhe agradaria.

Era gente de Abril que ali estava.
(Falo da maioria das pessoas, porque também por lá andava quem nada tem a ver com Abril, antes pelo contrário...).
Na verdade, só gente de Abril sabe gritar assim. Só gente de Abril grita de livros na mão...

José Saramago disse um dia, falando dos seus livros: «Nada ou quase nada do que fiz depois do 25 de Abril podia ter sido feito antes».

É verdade.
Por isso, a Obra de José Saramago é, também ela, uma conquista de Abril.

POEMA

POEMA DO VERDE PRADO


Enquanto a Lua sobe, o alaúde
soa, ressoa, pertinaz, plangente.
Passa de negro o espectro da virtude
movendo os lábios fervorosamente.

Bale o cordeiro manso, e a voz ecoa
tímida e branda, sonolenta e mole.
Dos prados desce às ruas de Lisboa.
Nem uma aragem na folhagem bole.

Silêncio.
Apurando o ouvido sobre a loisa,
e forcejando o fecho,
parece ouvir-se ao longe qualquer coisa.
É a Terra girando no seu eixo.


António Gedeão

O ESPELHO DO SISTEMA

No passado sábado - dia 12 de Junho - passou, quase sem se dar por ele, mais um Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil.
Percebe-se que o Dia não tenha sido notícia: os média estavam todos virados para a celebração, nesse mesmo dia, da entrada de Portugal e da Espanha na União Europeia, ocorrência que, na opinião do Presidente Cavaco e do ex-Presidente Soares, salvou o País da «bancarrota» e o lançou na senda do «desenvolvimento, do progresso e da modernidade» - como a situação actual exemplifica abundantemente...

Mas voltemos ao Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil:

A Organização Mundial do Trabalho (OIT) aproveitou a ocasião para sublinhar a gravidade da situação em matéria de exploração do trabalho infantil, que afecta cerca de «215 milhões de crianças», mais de metade das quais «são forçadas a executar labores de risco ou sujeitas a outras formas de exploração».

Dito de outro modo: a exploração de mão de obra infantil atinge uma em cada sete crianças no mundo - e cerca de 70% dessas crianças trabalhadoras estão no sector agrícola; 22% no sector de serviços; e 9% no sector industrial (incluindo minas, construção e produção).

A OIT acentua, ainda, que «esta situação não ocorre apenas nos países ditos subdesenvolvidos, é, antes, cada vez mais notada em países com economias avançadas».

É claro que, tanto os «países subedesenvolvidos» como os «países com economias avançadas», são países onde o capitalismo é dominante, e onde, portanto, tudo funciona tendo como base essencial a exploração do trabalho alheio: exploração desenfreada, brutal, selvagem, impiedosa, sem contemplações nem limites - e em que, portanto, nem as crianças são poupadas.

Pode dizer-se, por isso, que a exploração do trabalho infantil é bem o espelho do sistema capitalista dominante.

POEMA

POEMA DA TERRA ADUBADA


Por detrás das árvores não se escondem faunos, não.
Por detrás das árvores escondem-se os soldados
com granadas de mão.

As árvores são belas com os troncos dourados.
São boas e largas para esconder soldados.

Não é o vento que rumoreja nas folhas,
não é o vento, não.
São os corpos dos soldados rastejando no chão.

O brilho súbito não é dos limbos das folhas verdes reluzentes.
É das lâminas das facas que os soldados apertam entre os dentes.

As rubras flores vermelhas não são papoilas, não.
É o sangue dos soldados que está vertido no chão.

Não são vespas, nem besoiros, nem pássaros a assobiar.
São os silvos das balas cortando a espessura do ar.

Depois os lavradores
rasgarão a terra com a lâmina aguda dos arados,
e a terra dará vinho e pão e flores
adubada com os corpos dos soldados.


António Gedeão

Milhares!

POEMA

HORA H


A Primavera cheira a laranjas.

(Há umas granadas de mão, redondas e pequenas, a que chamam laranjas.)

O cheiro das laranjas enche a noite luarenta de mistérios.

(Dizem que as noites de luar são as melhores para bombardeamentos aéreos.)



António Gedeão

O SAQUE VAI COMEÇAR

Como eu vinha dizendo, a ocupação de um país não dá apenas despesas ao ocupante: dá-lhe, também, receitas.
Chorudas receitas
.
Aliás, se assim não fosse não haveria ocupações - que o digam os EUA e todos os países por si ocupados...

O ocupante ocupa: militarmente, politicamente, económicamente... isto é, passa a ser dono absoluto do país ocupado.

Assim fizeram os EUA no Afeganistão: mal ocuparam militarmente o país, invadiram-no com equipas de especialistas em todas as matérias para ver o que dali podiam sacar.
Entre essas equipas, ia uma composta por geólogos, cuja tarefa era a de descobrir riquezas inexploradas no subsolo do país ocupado.

Esses geólogos apresentaram, agora, os resultados do seu trabalho:
No subsolo afegão existem gigantescas quantidades de ferro, cobalto, cobre, ouro e, sobretudo, de lítio (um metal que é fundamental para a produção de baterias de telemóveis e de computadores portáteis).

A descoberta provocou uma onda de euforia no país ocupante.
Euforia e... pragmatismo, digamos assim: na verdade, o governo dos EUA está já a tomar medidas para assegurar que os recursos naturais descobertos sejam dos EUA e apenas dos EUA, impedindo que companhias oriundas de outras potências económicas entrem no negócio.

Em resumo: o saque vai começar.

Em nome da «democracia», é claro.
E da «liberdade», como não podia deixar de ser.
E dos «direitos humanos», como mandam as regras da ocupação.

POEMA

POEMA DA MORTE NA ESTRADA


Na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
estão quinhentos mortos com os olhos abertos.

A morte, num sopro, colheu-os aos molhos.
Nem tiveram tempo para fechar os olhos.

Eles bem sabiam dos bancos da escola
como os homens dignos sucumbem na guerra.
Lá saber, sabiam.
A mão firme empunhando a espada ou a pistola,
morrendo sem ceder nem um palmo de terra.

Pois é.
Mas veio de lá a bomba, fulgurante como mil sóis,
não lhes deu tempo para serem heróis.

Eles bem sabiam que o último pensamento
devia estar reservado para a pátria amada.
Lá saber, sabiam,
Mas veio de lá a bomba e destruiu tudo num só momento.
Não lhes deu tempo para pensar em nada.

Agora,
na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
são quinhentos mortos com os olhos abertos.


António Gedeão

OS NÚMEROS E O PREÇO

Segundo dados oficiais, os EUA gastaram até agora um bilião de dólares na invasão e ocupação do Iraque e do Afeganistão: 747 mil milhões no Iraque e 300 mil milhões no Afeganistão.

De acordo com as mesmas fontes, os gastos previstos para o ano corrente são de 136 mil milhões de dólares em ambos os países.

Estes são números fornecidos por quem sabe tudo sobre o assunto.
Não surpreende, por isso, que não tenham sido divulgados outros números tão ou mais relevantes como os que foram tornados públicos.
Por exemplo:
qual o lucro obtido pelos EUA com a invasão e ocupação dos dois países?
(e, já agora: quantos milhões de dólares ganharam os governantes Rumsfeld, Cheney, etc, etc, com os negócios que fizeram?)
E especialmente: quantas centenas de milhares de homens, mulheres e crianças inocentes foram assassinadas pelas tropas ocupantes?

Bom, ficam os números: dólares, dólares, dólares.
E fica o preço: sangue, sangue, sangue: o horror.

POEMA

ESCOPRO DE VIDRO


Estou aqui construindo o novo dia
com uma expressão tão branda e descuidada
que dir-se-ia
não estar fazendo nada.
E, contudo, estou aqui construindo o novo dia.

Porque o dia constrói-se; não se espera.
Não é sol que deflagre num improviso de luz.
É um orfeão de vozes surdas, um arfar de troncos nus,
o erguer, a uma só voz, dos remos da galera.

Cantando entre os dentes
um refrão anidro
abro linhas quentes
com um escopro de vidro.
Abro linhas quentes
sem tremer a mão,
com um escopro de vidro
de alta precisão.


António Gedeão

«ARQUIVE-SE!»

Lembram-se do caso dos submarinos?
Bom, parece que desapareceu uma série de documentos do consórcio BES/Crédit Suisse, relacionados com o financiamento da compra dos ditos submarinos.
E parece que, entre os documentos desaparecidos, está uma carta que o referido consórcio «terá enviado ao então ministro da Defesa, Paulo Portas».
E parece que a dita carta pedia ao então ministro «para alterar a margem de lucro no financiamento».
E parece que a alteração pedida era de que «a margem de lucro passasse de 1,9 para 2,5 por cento».
E parece que o ministro, simpático e generoso, acedeu ao pedido do consórcio.
E parece que tudo isto aconteceu já depois de o consórcio ter ganho o concurso.
E parece que todos estes documentos levaram sumiço.

Assim sendo, parece que a questão está bem encaminhada no sentido de entrar para a tradicional categoria do «arquive-se».

Ah!, já agora: parece que «os megaprocessos dos submarinos e das contrapartidas têm ligações a protagonistas comuns a outro megaprocesso: o do caso Portucale».

Pronto: «arquive-se» tudo.
E não se fala mais nisso.

POEMA

PORTA DA TRAIÇÃO


Quero encontrar-me com vocês
no desregrado convívio,
na balbúrdia dos cafés.

Nos altos bancos dos bares,
nos transportes colectivos,
nos recintos populares.

Nos corredores dos cinemas,
nos inóspitos lugares
onde se mascam problemas.

Juventude, juventude!
Fogo de santelmo vivo
num mastaréu de virtude.

Braços meus, cálices brancos,
aguardam corolas rubras
no declive dos barrancos.

Vinde, vinde, ó flor mimosa,
ó cavaleiro Galaaz,
que em dentes cerrados traz
a promessa de uma rosa.
Vinde, ó fugaz claridade,
antes que a Vida vos tome
e transforme a vossa fome
em «coisas da mocidade».


António Gedeão

EU VOU !


COM O PCP NA RUA
17 DE JUNHO - 18 HORAS
LISBOA - ROSSIO



FOTO: Ladoeiro, Beira-baixa, Junho 2010

carta inventada aos filhos reais


"eu um dia hei-de voltar para repartir com todos o pão que vai faltando porque mo negaram. e as lágrimas e o sangue e o suor que sobrou na procura dele para muitos filhos. hoje tenho a casa cheia... adultos, mais os chinfrim dos netos e bisnetos no desvario que sempre é a infância... ainda que com maquinetas e jogos de luzes. os homens mexeram na lua. está visto. mas a vida esvai-se e ficou a dever-me tudo o que não vivi por ingrata distribuição dos homens que mandam nas coisas de deus e deles próprios. que mão tirana me roubou a alegria ? sou uma mulher velha... feliz, cá como sei, quando olho outras desgraças... mas ainda assim. o salitre do tempo predou-me a carne e estes ossos franzinos mal aguentam a lembrança das estafas do campo. trabalhei para alimentar um mundo de criaturas. e o mundo apenas me soube rebentar. Tenho os filhos e os netos criados. esta a boa verdade. o pior é que outras verdades são bem mais amargas. findam-se-me os dias, e só a louca paixão de quem nos ama não deixa ver. oitenta e quatro anos roubados ao assombro que é a vida. à noite profunda que é a nossa condição. lambi o pó dos caminhos por uma côdea de pão. mordi a sola dos sapatos (do patrão, que eu andei descalça) por uma migalha para os meus pequenitos. galguei serras, vinhedos, sobrados e montes em busca de uma gota de água. gastei sozinha todo o alento distribuido aos pobres de muitos anos. fui à luta. criei no amago da fome filhos de coração farto. filhos que sabem amar as coisas simples. a seu tempo, com os simples de mesma condição, vi nascer netos. dia dez fiz oitenta e quantro anos. vieram todos - furando as gargantas de solidão que nos separam- dar-me um beijo de parabéns. um deles é o António da minha Cátia. Mesmo sem nada lhe dizer ele ficou de vir cá contar isto. espero que saiba desenvencilhar-se das palavras e dizer apenas do coração. esta rapaziada de hoje... nunca se sabe. vou embora. tenho a panela ao lume e uma chusma de bonecas de trapos para fazer. passem bem.

Isabel"



foto: Nos oitenta e quatro anos da «avó» Isabel. ladoeiro, Beira-Baixa, Junho 2010.

POEMA

REFLEXÃO TOTAL


Recolhi as tuas lágrimas
na palma da minha mão,
e mal que se evaporaram
todas as aves cantaram
e em bandos esvoaçaram
em torno da minha mão.
Em jogos de luz e cor
tuas lágrimas deixaram
os cristais do teu amor,
faces talhadas em dor
na palma da minha mão.


António Gedeão

«AS PALAVRAS POSSÍVEIS»

«É difícil agarrar as palavras, aprisionadas nos meus dedos. Mas tenho que as soltar, forçá-las a descer para o papel.
Porque quero falar desta dor tão grande que não é só minha.
Porque a vi em muitos rostos: camaradas, amigos, desconhecidos.
Porque vi em muitos olhos as lágrimas que não consigo chorar.
Porque a senti em muitas mãos que se me deram. Em muitos abraços que me envolveram.
Partilhando-a.

Há que ter força, amigo - repetia, enquanto o dizia para mim própria. É isso que eles esperavam de nós: Vasco, Álvaro.

Tagore escreveu: "O oceano das lágrimas tem outra margem, senão nunca ninguém tinha chorado».
E nós sabemos que a única forma de atravessar esse largo, profundo, salgado e perigoso mar é lutando contra a força adversa da corrente.
Muitos têm ficado e ficarão ainda pelo caminho, porque os seus braços foram cruelmente decepados, tornando o nadar impossível. Porém, os corpos ficaram inteiros e limpos no fundo das águas e nos nossos corações.

Na outra margem habita o nosso sonho, o nosso mundo futuro, onde os homens respirarão cada letra da palavra liberdade, com tudo o que isso significa.
Agora, só nos resta transformar esta imensa dor em luta.
Cada vez mais forte.
Cada vez com mais confiança: palavra tão querida e repetida em teus lábios, irmão»


(de «Escrita de Esferográfica - Crónicas», Maria Eugénia Cunhal)

POEMA

FALA DO HOMEM NASCIDO


(Chega à boca de cena, e diz:)


Venho da terra assombrada,
do ventre da minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.

Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.
Com licença! Com licença!
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo;
não tenho tempo a perder.

Minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me molestem,
correntes que me detenham.

Quero eu e a Natureza,
que a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as venceu.

Com licença! Com licença!
Que a barca se faz ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei-de passar.
Com licença! Com licença!!
Com rumo à estrela polar.


António Gedeão

TRÊS GRANDES

«Breve Consideração à Margem do Ano Assassino de 1973», é o título de um poema de Vinicius de Morais, no qual o Poeta nos fala da morte, nesse mesmo ano, dos três pablos - Neruda, Casals, Picasso:

«Que ano mais sem critério
esse de 73,
levou para o cemitério
três pablos de uma só vez»


Lembrei-me deste poema ontem, quando, no cemitério do Alto de São João, com mais umas centenas de pessoas, prestava homenagem ao Companheiro Vasco, por ocasião do 5º aniversário da sua morte, ocorrida em 11 de Junho de 2005 - dois dias antes das mortes de Eugénio de Andrade e de Álvaro Cunhal.

E pensei que se eu fosse poeta, também faria um poema sobre esse «ano assassino» de 2005, mais precisamente sobre o mês de Junho desse «ano mais sem critério» que «levou para o cemitério», o VASCO, o EUGÉNIO e o ÁLVARO:
três GRANDES de uma só vez, três GRANDES no mesmo mês...

Três GRANDES que permanecerão para sempre na memória e no coração de muitas centenas de milhares de portuguesas e portugueses.

POEMA

ARMA SECRETA


Tenho uma arma secreta
ao serviço das nações.
Não tem carga nem espoleta
mas dispara em linha recta
mais longe que os foguetões.

Não é Júpiter, nem Thor,
nem Snark ou outros que tais.
É coisa muito melhor
que todo o vasto teor
dos Cabos Canaverais.

A potência destinada
às rotações da turbina
não vem da nafta queimada,
nem é de água oxigenada
nem de ergóis da furalina.

Erecta, na torre erguida,
em alerta permanente,
espera o sinal da partida.
Podia chamar-se VIDA.
Chama-se AMOR, simplesmente.


António Gedeão

MAUS HÁBITOS

«Parceiros sociais unidos após apelo de Cavaco»: eis o título da notícia do DN relativa ao discurso do Presidente da República no 10 de Junho..
O título é falso, como pode ver-se lendo as declarações, por um lado, dos responsáveis das confederações patronais - que o que querem é acentuar ainda mais a exploração dos trabalhadores - e, por outro lado, do secretário-geral da CGTP, que esclareceu que «não pode haver compromissos sobre bases falsas, como se todos tivéssemos as mesmas responsabilidades».
Além disso, se é verdade que a CGTP e a CIP vão encontrar-se na próxima segunda-feira, também é verdade que esse encontro já estava marcado antes do discurso feito por Cavaco Silva.

Acresce que, como muito acertadamente dizia o nosso Armindo Rodrigues,
«Entre patrão e operário,
entre operário e patrão,
o que é extraordinário
é pretender-se união»...

Então, porquê e para quê aquele título falso?
Não sendo crível que quem o escreveu pensasse que os leitores iam acreditar nele, ele só pode resultar de uma questão de hábito, isto é: o hábito de desinformar está de tal forma enraizado no DN que a desinformação nasce simples e natural: por hábito.


Foi a força do hábito que levou, também, o Presidente da República a exibir pela enésima vez a sua condição de profeta sem seguidores...
Disse ele: «Como afirmei na altura devida, chegámos a uma situação insustentável».

Cavaco é um especialista em lançar alertas, isto é: o hábito de alertar está de tal modo enraizado em Cavaco que nele o alerta nasce simples e natural: por hábito.
Pena foi que não se alertasse a si próprio quando, nos dez anos em que foi primeiro-ministro, deu um poderoso contributo para que o País chegasse à dramática situação em que se encontra.

Por tudo isto, acabar com estes maus hábitos parece ser um dos primeiros passos a dar para pôr termo à crise...

POEMA

VENTO NO ROSTO


À hora em que as tardes descem,
noite aspergindo nos ares,
as coisas familiares
noutras formas acontecem.

As arestas emudecem.
Abrem-se flores nos olhares.
Em perspectivas lunares
lixo e pedras resplandecem.

Silêncios, perfis de lagos,
escorrem cortinas de afagos,
malhas tecidas de engodos.

Apetece acreditar,
ter esperanças, confiar,
amar a tudo e a todos.


António Gedeão

A FESTA E OS QUE A PAGAM

O Diário de Notícias informa que «Portugal e Espanha comemoram no sábado as bodas de prata do "casamento" com a União Europeia».

Vai ser uma festa de arromba, dividida em duas partes: a primeira, de manhã, em Lisboa, presidida por Cavaco Silva e José Sócrates; a segunda, à tarde, em Madrid, presidida pelos Reis Juan Carlos e Sofia.

Todos os que, de manhã, fazem a festa em Lisboa, à tarde deitam os foguetes em Madrid, sendo de presumir, tratando-se de quem se trata, que, noite fora, apanhem as canas em privado - quiçá aproveitando a ocasião para tratar de negócios, ao fim e ao cabo a razão de ser das suas vidas e das suas festas.

São eles, entre muitos outros e para além dos já citados: Rodriguéz Zapatero, Mário Soares, Filipe Gonzalez, Jacques Delors, Durão Barroso e muitos mais dos que, ao longo dos últimos 25 anos, têm vivido à grande e à espanhola graças ao proveitoso casamento: «ex-comissários e comissários, eurodeputados e e ex-eurodeputados, ex-primeiros-ministros, ex-presidentes da República, ex-presidentes de instituições europeias, embaixadores e responsáveis pelas negociações» - enfim, a cambada toda.

Juntando-se todos, e festejando, os responsáveis pela situação dramática em que se encontram Portugal e Espanha, confirmam aquela máxima dos romances policiais que nos diz que «o criminoso volta sempre ao local do crime»...


Quem não vai festejar são os trabalhadores dos dois países, aos quais a cambada reservou a função de pagar a festa.
Que bem cara lhes tem saído - e muito mais cara lhes vai sair.

POEMA

ENQUANTO


Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães,
andarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das casas;
enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA.


António Gedeão

JOSÉ GOMES FERREIRA

José Gomes Ferreira nasceu há cento e dez anos, precisamente no dia 9 de Junho de 1900 - data que o Cravo de Abril assinala lembrando a obra de um dos maiores poetas da língua portuguesa.

Lembrando, também, o cidadão interveniente, íntegro, solidário, fraterno - resistente antifascista, construtor de Abril e da sua Revolução.

Lembrando, ainda, o Camarada, cuja adesão ao Partido o Avante! de 6 de Março de 1980 - data do 59º aniversário do PCP - saudava assim:


«José Gomes Ferreira
Camarada!

Dia 29 de Fevereiro de 1980, pelas cinco e meia da tarde, chuvosa, caminhaste pelas ruas com o passo firme da tua alma grande e vieste bater à porta da nossa Casa, na Soeiro Pereira Gomes.
Na fala directa de quem pensou e se decidiu em consciência, disseste enxutamente ao que vinhas: que te aceitássemos como membro do Partido Comunista Português.
Aos 80 anos.
Em coerência com toda uma vida, repensada e assumida.
Dando resposta combativa a um presente que não é fácil.
De olhos postos, juvenis, no futuro que faremos, que fazemos.

As tuas palavras, o teu acto, tinha aquele peso de asas que pões em tudo.
Simples como as coisas verdadeiras do coração. Como um acto lúcido que se cumpre na hora, por determinação de homem independente que sempre foste e serás.
De homem solidário que és, de raiz - poeta militante, companheiro dos homens que sofrem, sonham e lutam. E que, juntos como os dedos da mão, de mãos dadas, hão-de chegar ao fim da estrada e depois hão-de rasgar as estradas novas de Portugal livre, independente, socialista, para os homens novos que estão nascendo já.

Ficámos de te dar resposta. E, ressalvando embora a pública notícia, que não está nos nossos usos, mas que a luta aconselha nestes tempos de promoção, de crescimento necessário, aqui estamos para te responder dizendo apenas, com respeito e alegria compartilhada decerto por todo o grande colectivo fraternal do nosso Partido - que te saudamos, camarada!
Abril vencerá!»

POEMA

PASTORAL


Não há, não,
duas folhas iguais em toda a criação.

Ou nervura a menos, ou célula a mais,
não há, de certeza, duas folhas iguais.

Limbo todas têm,
que é próprio das folhas;
pecíolo algumas;
bainha nem todas.
Umas são fendidas,
crenadas, lobadas,
inteiras, partidas,
singelas, dobradas.
Outras acerosas,
redondas, agudas,
macias, viscosas,
fibrosas, carnudas.

Nas formas presentes,
nos actos distantes,
mesmo semelhantes
são sempre diferentes.

Umas vão e caem no charco cinzento,
e lançam apelos nas ondas que fazem;
outras vão e jazem
sem mais movimento.
Mas outras não jazem,
nem caem, nem gritam,
apenas volitam
nas dobras do vento.

É dessas que eu sou.


António Gedeão

A FOME

Eis alguns dados sobre a fome:

- Mais de mil milhões de pessoas passam fome - ou seja: um em cada seis habitantes do planeta passa fome.
- Dessas, morrem todos os dias dezenas de milhares, na sua maioria mulheres e crianças.

- Em cada seis segundos morre uma criança. À fome.

- A imensa maioria dos que morrem à fome é oriunda dos «países mais pobres» - que são mais pobres porque os mais ricos lhes roubam as suas riquezas.

- A fome também marca presença nos «países mais ricos»: dos 10, 9 milhões de crianças com menos de cinco anos que morrem todos os anos nos «países desenvolvidos», 60% morrem em consequência da fome.

«A fome mata mais pessoas do que a sida, a malária e a tuberculose juntas».


Quer isto dizer que o número de vítimas da fome continua a aumentar.
Entretanto, prosseguem as «conferências», os «seminários», os «fóruns», os «anos europeus» e os «anos mundiais» que, desde há muito anos, garantem que vão acabar com a fome - mas que, até agora, apenas conseguiram aumentar as riquezas dos mais ricos.


Quanto a nós por cá... tudo bem:
«A falta de comida já afecta 95 mil crianças»
«O Banco Alimentar está a dar comida a 285 mil pessoas» - são «dez vezes mais do que a média do ano passado» e o brutal aumento deve-se, entre outras coisas, à entrada no reino da fome dos chamados «novos pobres» - que são aqueles que têm emprego e salário fixo, mas cujo rendimento não chega para comer.

É assim a vida no capitalismo que é, há centenas de anos, o sistema dominante.
E assim será enquanto o capitalismo dominar.
Até que as vítimas da fome se levantem e construam «uma terra sem amos»...

POEMA

POEMA NUMA ESQUINA DE PARIS


Dezenas e dezenas de pessoas passam ininterruptamente ao longo do passeio.
Umas para lá.
Outras para cá.
Umas para cá.
Outras para lá.
Mas cada uma que passa
tem de fazer na esquina um pequeno rodeio
para não se esbarrar com o par que aí se abraça.
Olhos cerrados, lábios juntos e ardentes,
tentam matar a inesgotável sede.
Através dos seus corpos transparentes
lê-se na esquina da parede:

DANS CETTE PLACE A ÉTÉ TUÉ
MAURICE DUPRÉ
HÉROS DE LA RÉSISTANCE:
VIVE LA FRANCE.


António Gedeão

PASSEM PALAVRA

VASCO GONÇALVES foi, entre todos os militares de Abril, a figura maior da nossa Revoluçãol - e sua intervenção singular em todo o processo revolucionário fez dele uma figura maior da história de Portugal.

Ele foi o primeiro - e até agora único - primeiro-ministro português que, no desempenho desse cargo, teve sempre como primeira prioridade, paralelamente à defesa da independência nacional, a defesa dos interesses dos trabalhadores e do povo, ou seja, da imensa maioria dos portugueses.

Por isso, o Companheiro Vasco ficará para sempre na memória e no coração dos trabalhadores, do povo e do País.


Por iniciativa de um grupo de amigos de Vasco Gonçalves, e de familiares deste, efectua-se, no próximo dia 11 - dia em que passa o 5º aniversário do seu falecimento - uma Romagem ao Cemitério do Alto de São João.
É às 11 horas.
E aqui fica a convocatória.

Passem palavra.
E apareçam.

POEMA

CARNE VIVA


Aconchego-me nos andrajos. Procuro
(inútil) não tiritar de frio.
A vida é longa e fria. Um longo e frio muro
a marginar, ao longo, um longo e frio rio.

Aconchego-me nos andrajos. Puxo. Repuxo.
Estendo os olhos, implorativos, à caridade.
Perto, em confortáveis silogismos de luxo,
capitalistas da Verdade.


António Gedeão

DROGA FATAL

A revista Notícias Magazine (DN/JN), fala-nos, hoje, de casos de pessoas que não têm (ou tinham mas deixaram de ter) televisão.

São poucas, ainda, mas a verdade é que, como podemos constatar no excelente trabalho produzido por Catarina Pires e Rui Coutinho, essas pessoas, «de espécie em vias de extinção podem estar a transformar-se numa espécie em vias de expansão».
Assim seja, já que estamos a falar da televisão que temos, ou seja: deste poderoso veículo de desinformação organizada e de formatação de mentalidades ao serviço dos interesses do sistema capitalista dominante.
Para já, sublinha Catarina Pires, «uma coisa garantem os poucos que decidiram livrar-se do aparelho mágico: a caixa que mudou o mundo, também mudou a vida deles. No momento em que a puseram fora de casa».

São seis, os casos revelados na reportagem: três portugueses e três estrangeiros a viver em Portugal.
Eis quem são e o que dizem:

«Fátima Gysin, 56 anos, psiquiatra - livrou-se do aparelho de televisão há 15 anos».
«O que me levou a tomar a decisão de não ter tv foi o ganho de espaço e de liberdade»

«Giulia Pinna, 23 anos, italiana, estudante a fazer Erasmus em Portugal; não tem televisão desde que saiu de casa dos pais, assim como o companheiro, Philipp Stockle, 22 anos, alemão, estudante, que decidiu trasnformar a televisão (aparelho) em instalação artística».
«Foi a falta de tempo que me afastou da televisão. Como tenho pouco, não o desperdiço. Gosto de me sentar e conversar, em vez de estar parada a olhar para um ecrã».

«Stefano Savio, 30 anos, italiano, em Portugal há dois anos e meio, para onde veio estagiar na Cinemateca Nacional».
«Não digo que seja tempo que vou ganhar, simplesmente ocupo-o de maneira diferente: trabalho muito, saio à noite, converso com amigos, faço desporto. Coisas simples».

«Catarina Mateus, 30 anos, Formadora, não levou televisão para a casa nova, para onde se mudou há um ano e meio».
«Vivo cada vez melhor sem televisão (...) Acho que a maior parte dos programas televisivos são lixo e entre o lixo e as coisa boas que perdemos, é mais o lixo (...) Assim, somos nós que procuramos o que queremos: filmes, informação, há tanta coisa disponível»

«André Correia, 32 anos biólogo, não tem televisão há oito anos».
«Vi muita, muita televisão, aprendi imensas coisas, mas sobretudo perdi muito tempo. A certa altura, comecei a sentir que estava a roubar-me espaço e tempo e à medida que me fui interessando mais pelas coisas e lendo cada vez mais, apercebi-me de que a televisão, além de ser muito hipnotizante, é bastante perigosa (...) ao fim de pouco tempo(de ter deixado de ver televisão) senti-me completamente diferente e acho que só quem passa por isso é que percebe».


Diz Catarina Pires, citando estudos do John Watson Institute, do Colorado, EUA, que «a televisão pode ser considerada como uma droga, já que o seu consumo muitas vezes implica sintomas usados para o diagnóstico clínico da adição».
Sintomas como: «utilização como sedativo; visionamento indiscriminado; sensação de perda de contolo relativamente ao consumo; sensação de mal-estar consigo mesmo por consumo excessivo; incapacidade de deixar de ver; e sensação de incómodo quando se está privado de televisão» - e bastam quatro destes sintomas para definir uma droga...

Por seu lado, Manuel Pinto, investigador da Universidade do Minho, aponta «cinco prós e cinco contras» de consumir televisão:

Prós:
Seguir e acompanhar o que se passa no mundo;
Entreter-se com ficção e espectáculos de qualidade;
Descobrir mundos (naturais, sociais) diferentes do nosso;
Encontrar temas e tópicos úteis para as conversas e a interacção social;
Método fácil para adormecer.

Contras:
Enorme gastadora de tempo;
Poderoso instrumento de alienação;
Biombo para evitar a conversa;
«Cega-rega» que não deixa fazer silêncio;
Banalizadora da violência física e simbólica.

Ora, feito o balanço deste «prós» e destes «contras», teremos de concluir que, de facto, estamos a falar, não apenas de uma droga, mas de uma droga fatal - com a agravante de ser consumida, todos os dias, por milhares de milhões de pessoas, ou seja, por mais, muito, muito, muito mais gente do que qualquer outra droga.

POEMA

INTERMEZZO


Hoje não posso ver ninguém:
sofro pela Humanidade.
Não é por ti.
Nem por ti.
Nem por ti.
Nem por ninguém.
É por alguém.
Alguém que não é ninguém
mas que é toda a Humanidade.


António Gedeão

AS BALELAS DO COSTUME

O presidente da Alemanha, Horst Kohler, demitiu-se na sequência de uma entrevista concedida durante a visita que fez ao contingente militar do seu país no Afeganistão - entrevista no decorrer da qual produziu declarações que puseram em polvorosa as forças dominantes na Alemanha.
Por serem declarações falsas?
Não: por serem verdadeiras.

Disse ele, na referida entrevista, que a razão da presença de forças militares alemãs no Afeganistão não é propriamente «o combate ao terrorismo»: na verdade, estão lá a defender os interesses da Alemanha.
Ou seja: «a Alemanha é um país orientado para o comércio externo e por isso também dependente do comércio externo», pelo que defender o dito «comércio externo» - defendendo as «rotas comerciais» ou impedindo «focos de instabilidade regional» - é uma questão crucial.

É óbvio que dizendo o que disse, o presidente da Alemanha não estava a criticar a presença militar germânica no Afeganistão.
Bem pelo contrário: ele acha, e disse-o sem papas na língua e sem vergonha, que «a protecção do comércio externo constitui um motivo legítimo para uma acção militar».
Só que, para os seus colegas governantes, essa é uma verdade que não deve ser dita em público: é uma verdade para ser dita apenas entre eles e nas reuniões em que vão a despacho com os representantes do grande capital germânico...
Por isso, e para castigo, obrigaram-no: primeiro, a dizer que não tinha dito o que disse; depois, a demitir-se...


Com isto tudo confirmamos o que já sabíamos: que foi ao serviço dos interesses das multinacionais que os militares alemães - e os dos EUA, Grâ-Bretanha, Portugal... - invadiram o Afeganistão e ali permanecem semeando o terror e a morte.
E que é ao serviço dessas mesmas multinacionais que os soldados alemães - e norte-americanos, e britânicos e portugueses... - dão as suas vidas no Afeganistão.

Quanto ao substituto de Kohler vai ser, seguramente, um presidente igual ao Kohler antes da entrevista fatal: um dia destes ouvi-lo-emos dizer que a presença no Afeganistão dos militares alemães - e norte-americanos e britânicos e portugueses... - é uma necessidade imposta pelo terrorismo e pela defesa da democracia, da liberdade e dos direitos humanos...
Enfim, as balelas do costume.

POEMA

PEDRA FILOSOFAL


Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.


António Gedeão

25 DE ABRIL SEMPRE!

ATÉ SEMPRE, ALMIRANTE!


«Com a morte do Almirante Rosa Coutinho desaparece uma das figuras mais relevantes da Revolução de Abril e os trabalhadores e o povo português perdem um aliado de todos os momentos e um amigo de sempre» - diz a Nota do Secretariado do Comité Central do PCP, ontem divulgada.

E sublinhando o papel desempenhado pelo Almirante em todo o processo revolucionário - designadamente no «importante e complexo processo da descolonização» - a referida Nota acentua incisivamente que «Até final da sua vida, o Almirante Rosa Coutinho manteve uma postura de total fidelidade aos valores e aos ideais da Revolução de Abril».

Postura bem exemplificada nesta afirmação do Almirante, produzida por ocasião de um aniversário do 25 de Abril:
«Hoje já não há medo da PIDE, da censura, das perseguições políticas (à velha maneira...), mas em contrapartida criaram-se outros medos também inimigos da liberdade: medo do desemprego, medo de não ter condições para uma velhice feliz, medo de não conseguir educar os filhos, medo de não ter acesso à saúde, todos estes medos continuam a existir, e todos eles têm de ser combatidos em nome de uma liberdade que o País conquistou com o 25 de Abril».


Aqui fica a homenagem do Cravo de Abril ao Revolucionário, ao Companheiro de Luta, ao Amigo.

ATÉ SEMPRE, ALMIRANTE!

25 DE ABRIL SEMPRE!



POEMA

TEMPO DE POESIA



T
odo o tempo é de poesia.


Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.

Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia.


Todo o tempo é de poesia.

Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas que a amar se consagram.

Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.


Todo o tempo é de poesia.

Desde a arrumação do caos
à confusão da harmonia.


António Gedeão

Por Abril, pelo Socialismo


Foto: Aliados, Porto, Maio '10

SÓCRATES E LOUÇÃ: A MESMA LUTA!

Seguindo o exemplo do BE/Louçã, o PS/Sócrates decidiu apoiar a candidatura de Manuel Alegre.
O facto, sendo curioso, não surpreende, podendo mesmo dizer-se que era fatal e que os três sabiam dessa fatalidade.
Aliás, as razões que estão na origem do apoio de Louçã e Sócrates ao mesmo candidato são, aparentemente, as mesmas e são, mais coisa menos coisa, estas: ambos vêem em Alegre o «candidato da esquerda». E pronto.

O que surpreende é a argumentação ontem acrescentada por Louçã e que, sendo reveladora de natural baralhação face ao imbróglio em que se meteu, põe a nu a contradição insanável com que se debate o líder do BE.
(Louçã fala muito, como é sabido, e os média - todos - captam-lhe todas as palavras com devota sofreguidão...)

Vejamos: disse Louçã que a candidatura de Alegre é a única forma de responder à candidatura de Cavaco Silva; e que esta tem que ser derrotada, porque é a candidatura protagonizada por um candidato que tem «apadrinhado» todas as políticas negativas do Governo.

Ora, sendo verdade que Cavaco tem «apadrinhado» a política de direita, também é verdade que a política «apadrinhada» por Cavaco é a política praticada pelo Governo de Sócrates...
O que configura um cenário deveras bizarro: Louçã vai combater o «apadrinhador» dessa política marchando lado a lado com o executante dessa política...

Se eu fosse membro do BE diria ao líder: por que não te calas?

doçuras


Foto: Aljustrel, Baixo-Alentejo, Out. 2009