POEMA

POEMA DO AUTOCARRO


Quantos biliões de homens! Quanto gritos
de pânico terror!
Quantos ventres aflitos!
Quantos milhões de litros
de movediço amor!
Quantos!
Quantas revoluções na cósmica viagem!
Quantos deuses erguidos! Quantos ídolos de barro!
Quantos!
até eu estar aqui nesta paragem
à espera do autocarro.

E aqui estou, realmente.
Aqui estou encharcado em sangue de inocente,
no sangue dos homens que matei,
no sangue dos impérios que fiz e que desfiz,
no sangue do que sei e que não sei,
no sangue do que quis e que não quis.
Sangue.
Sangue.
Sangue.
Sangue.

Amanhã, talvez nesta paragem de autocarro,
numa hora qualquer, H ou F ou G,
uns homens hão-de vir cheios de medo e sede
e me hão-de fuzilar aqui contra a parede,
e eu nem sequer perguntarei porquê.

«Mas...»

Não há mas.
Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal.

«Mas eu só faço o bem, eu só desejo o bem,
o bem universal,
sem distinguir ninguém»

Todos temos culpa, e a nossa culpa é mortal.

Eles virão e eu morrerei sem lhes pedir socorro
e sem lhes perguntar porque maltratam.
Eu sei por que é que morro.
Eles é que não sabem porque matam.

Eles são pedras roladas no caos,
são ecos longínquos num búzio de sons.
Os homens nascem maus.
Nós é que havemos de fazê-los bons.

Procuro um rosto neste pequeno mundo do autocarro,
um rosto onde possa descansar os olhos olhando,
um rosto como um gesto suspenso
que me estivesse esperando.
Mas o rosto não existe. Existem caras,
caras triunfantes de vícios,
soberbamente ignaras
com desvergonhas dissimuladas nos interstícios.
O rosto não existe.

«Procura-o»

Não existe-

«Procura-o.
Procura-o como a garganta do emparedado
procura o ar;
como os dedos do homem afogado
buscam a tábua para se agarrar»

Não existe.

«Vês aquele par sentado além ao fundo?
Vês?
Alheio a tudo quanto vai pelo mundo,
simboliza o amor.
Podia o céu ruir e a terra abrir-se,
uma chuva de lodo e sangue arrasar tudo
que eles continuariam a sorrir-se.
Não crês no amor?»

?

«Não ouves?»

?

«Não ouves?»

«Não crês no amor?»

Cala-te, estupor.

Tenho vergonha de existir.
Vergonha de aqui estar simplesmente pensando,
colaborando
sem resistir.

Disso, e do resto.
Vergonha de sorrir para quem detesto,
de responder pois é
quando não é.
Vergonha de me ofenderem,
vergonha de me explorarem,
vergonha de me enganarem,
de me comprarem,
de me venderem.

Homens que nunca vi anseiam por resolver o meu problema concreto.
Oferecem-me automóveis, frigoríficos, aparelhos de televisão.
É só estender a mão
e aceitar o prospecto.
A vida é bela. Eu é que devia ser banido,
expulso da sociedade para que a não prejudique.

Hã?
Ah! Desculpe. Estava distraído.
Um de quinze tostões. Campo de Ourique.


António Gedeão

(Este Poema do Autocarro encerra o ciclo de poesia de António Gedeão.
O próximo Poeta será José Gomes Ferreira, visita frequente do Cravo de Abril mas cuja presença está sempre justificada pela qualidade da sua poesia - desta vez também por que este é o ano do 110º aniversário do seu nascimento)

4 comentários:

Maria disse...

Não conhecia este poema.
E depois do Grande Gedeão temos outro Grande Zé Gomes Ferreira. Que venha ele!

Um beijo grande.

samuel disse...

Este foi uma estreia...
Pensar pode ser assim... pesado.

Venha pois o Zé Gomes Ferreira! Vamos então "pintar os frutos, as amoras, os rosais..."

Abraço.

svasconcelos disse...

Grande poema, este. Rasgos de revolta, de verdades... Não conhecia. Obrigada por esta incursão poética a Gedeão. Gostei tanto!!
beijo.

Graciete Rietsch disse...

Terminas com um grande poema! Todos somos culpados. Temos o futuro nas nossas mãos e alheamo-nos.
Até certo ponto este poema é também um hino ao amor. Acho-o fantástico.
E, agora, espero ansiosamennte o grandioso José Gomes Ferreira.

Um beijo.