«A MINHA POLÍTICA É O TRABALHO»

A notícia diz, em título:
«Warren Buffett volta aos lucros milionários» - o que significa que o referido Buffett deixou de ter, em algum momento, «lucros milionários» e, agora, passou a tê-los novamente.
E quando é que deixou de ter esses lucros e quando é que voltou a tê-los?

Lendo a notícia toda, ficamos a saber que, no último trimestre de 2008, Buffett arrecadou apenas 117 milhões de dólares - um lucro insignificante, mexeruco, que não dava para mandar cantar um cego - e que no último trimestre de 2009, obteve um lucro de 3000 milhões de dólares - este sim, um lucro como deve ser, a premiar todas os ciclópicos trabalhos, os estafantes empreendedorismos, as brutais preocupações e as incomensuráveis canseiras sofridas pelo pobre Buffett ao longo de todo um longo trimestre.
A confirmar que não há crise que não dê em fartura - para quem tem fortuna farta...

Warren Buffett é «o homem mais rico do mundo»: era-o no último trimestre de 2008 e é-o ainda mais no último trimestre de 2009 - e sê-lo-á ainda mais no terceiro trimestre de 2010: é «a ordem natural das coisas» que nos ensina que «ricos e pobres sempre houve e há-de haver» e que nos alerta para «o que seria dos pobres se não existissem os ricos»...

E quanto ganhou nesse mesmo trimestre o homem mais pobre do mundo?
E quanto ganharam nesse mesmo trimestre os 500 000 homens mais pobres do mundo?
E o milhão de homens mais pobres do mundo?
E os cem milhões de homens mais pobres do mundo?...

Mas lá está: fazer estas perguntas, encontrar as respostas e procurar o seu significado, é uma pessoa estar a meter-se em política...
E, como nos ensinaram a dizer desde pequeninos, «a minha política é o trabalho»...

POEMA

ÂNGULOS DIFERENTES


A diferença
entre cavalgar
e ser cavalgado
é pesada
contundente
crucial.

Cavalgando, o cavaleiro exclama:
- é épico.
Cavalgado, o cavalo constata:
- é hípico.

Frases de pouca monta
totalmente desmontadas
quando é o cavalo que monta
o cavaleiro.


Sidónio Muralha

(«Que Saudades do Mar» - 1971)

SEM CORAR

O jornal da Sonae está a comemorar o seu 20º aniversário e os seus amigos dão-lhe os parabéns.
Ex-colaboradores, colaboradores actuais (e futuros prováveis colaboradores...) desdobram-se em elogios.

Faça-se justiça, no entanto: coube a Francisco Louçã, líder do BE, produzir o mais encomiástico louvor ao jornal de Belmiro de Azevedo.
Com visível comoção no rosto, nas mãos, na voz, etc, começou assim:
«Foram 20 anos que passaram extraordinariamente depressa».

Depois, solene e profundo, declamou:
«O Público é um jornal de referência que tem marcado a informação em Portugal».

A seguir, embalou na demonstração do que acabara de dizer:
«Pelo Público passaram os grande debates e a informação, sobre o Afeganistão, a guerra do Iraque, a política económica portuguesa...».

E terminou em apoteose:
«O Público é um jornal de opinião livre».

São assim os amigos: o amigo Público cumpre a tarefa de promover e promover e promover, o amigo líder do BE.
E o amigo líder do BE retribui.
Comovido.
Solene.
Profundo.
Embalado.
Apoteótico.

Sem corar.

POEMA

MÁGICA


O poeta é um prestidigitador.
Tira coelhos da cartola,
sim senhor.
Num gesto, cria pássaros vermelhos.
dizem que não faz parte de uma escola
quando em vez de tirar coelhos da cartola
passa a tirar cartolas dos coelhos.


Sidónio Muralha

(«Que Saudades do Mar» - 1971)

Parece que surgiram por aqui umas dúvidas!!!!

SEIS NOTAS

Seis notas, a propósito de alguns comentários de desacordo e desagrado com o conteúdo dos meus dois post's relacionados com a terrível tragédia que se abateu sobre a Madeira e os madeirenses:

1 - a importância do Turismo na economia da Madeira é um facto incontestável e que, por isso, tem que ser tido em conta, inevitavelmente, em todo o processo de resposta às consequências da catástrofe.
Não deve ser, no entanto, na minha opinião, a prioridade das prioridades, como está a acontecer - e muito menos nos termos brutais e desumanizados que o boçal Jardim tem vindo a utilizar.

2 - perante uma tragédia com as dimensões e a gravidade humanas desta - em que milhares de pessoas ficaram mergulhadas no sofrimento e na dor; na perda irreparável de familiares, amigos e vizinhos; e totalmente desprovidas dos meios mais elementares de subsistência; de habitações; de acessos, etc. - as prioridades em todo o tipo de apoios devem ser, antes de tudo, para essas pessoas.

3 - ora, as notícias que chegam mostram que não é assim: «na Madeira, a prioridade é "lavar a cara" do Funchal para turista ver», diz o insuspeito Público - e dizem, por outras palavras, todos os outros igualmente insuspeitos jornais.

4 - outra questão é a da reconstrução.
Nesse sentido, não pode esquecer-se o passado: os crimes urbanísticos e de ordenamento do território, a total ausência de medidas preventivas em relação a flagelos como o de sábado passado.
Nem podem esquecer-se os alertas que foram sendo lançados - designadamente, por eleitos da CDU - e aos quais o governo regional e as suas sucursais espalhadas pela região fizeram orelhas moucas, dando prioridade aos negócios...

5 - as declarações ainda ontem proferidas por Jardim sobre essa matéria são mais do que preocupantes: para ele, a sua obra é o expoente máximo da excelência, tudo estava bem e é preciso voltar a fazer tudo igual, eu é que sei, mandem para cá o dinheiro e calem-se...

6 - sobre o assunto, aqui ficam opiniões de dois técnicos (insuspeitos, também, e citados pelo Público):

a) - Danilo Matos, ex-directos do Gabinete de Planeamento da Câmara do Funchal:
«A Madeira não pode ser a mesma depois de 20 de Fevereiro. Tem que ser estrategicamente planeada para fazer face a este tipo de catástrofes (...) A construção deve ser entregue a quem sabe, pondo um ponto final no aproveitamento político e no oportunismo de alguns».

b) - Raimundo Quintal, Geógrafo:
«Parte do que agora aconteceu é o resultado de 33 anos de Madeira "nova" - uma Madeira sem modelo, sem planeamento e governada para ganhar eleições».



Mais palavras para quê?
Só não vê quem não quiser ver.

POEMA

MANUAL DO PERFEITO MENDIGO


Gesto pedindo clemência
cansa.
Modernizem a desgraça.
Ser pedinte com eficiência
é alugar uma criança
e arremessá-la aos olhos de quem passa.

Quem fala de caridade
usa a velha ferramenta
e compromete o seu papel.
Para comover a cidade
preguiçosa e sonolenta
só a criança de aluguel.

Só a criança. De baixo custo.
É pitoresca ou inefável,
sabe chorar, sabe sorrir,
exprime o pavor, o medo, o susto,
é facilmente transportável
e faz o drama explodir.

Pagam os homens comprometidos
para não verem na sua frente
os meninos alugados,
que falsas mães, de olhos doridos,
silenciosas, mostram à gente,
como brinquedos mutilados.


Sidónio Muralha

(«Que Saudades do Mar» - 1971)

PRECIPITAÇÕES

As cúpulas do BE estão confrontadas com uma questão enervante: a de saber se, sim ou não, houve «precipitação» no apoio de Francisco Louçã à candidatura presidencial de Manuel Alegre.

Tal apoio, explicitado mal o poeta tornou pública a sua decisão, parecia ter arrumado definitivamente a questão das presidenciais no BE.

Todavia, o anúncio da candidatura de Fernando Nobre veio repor a questão.
Mais do que isso: provocou perturbação de monta nas cúpulas bloqueiras, na medida em que
esta candidatura do ex-mandatário nacional do BE, captou de imediato simpatias e apoios significativos nas hostes bloquistas.

Daí a questão, agora levantada, da eventual «precipitação» no apoio imediato de Louçã a Alegre.
Os dirigentes do BE ouvidos pelo jornalista afirmaram todos, peremptoriamente, que não, que não houve «precipitação» nenhuma.
Afirmação que se me afigura algo... precipitada - como, estou em crer, o futuro lhes dirá.

POEMA

OS APAZIGUADORES


A tribo é indócil.
Os apaziguadores são boas pessoas.
Eles cantam a paz
na boca das armas.
Eles desarmam as bocas
quando cantam a paz.
Só não desarmam as armas
porque a paz desarmada
passaria a ser paz
e eles ficariam desempregados
porque não há apaziguadores
em tempo de paz.

O medo tocou os apaziguadores.
O medo tocou o gatilho das armas,
e os indóceis ficaram apaziguados,
definitivamente apaziguados,
horizontalmente apaziguados.

E os apaziguadores voltaram aos lares
e com gestos medidos e apaziguados
guardaram as armas, lavaram as mãos,
e distribuíram beijos pacificamente
a toda a família.


Sidónio Muralha

(«Que Saudades do Mar» - 1971)

FIGURA ABJECTA

Jardim ameaça ultrapassar-se.
São por demais conhecidos o seu reaccionarismo primário; a sua prepotência arrogante; a sua postura provocatória; o seu vocabulário beberrão; o seu discurso insolente; o seu desrespeito por tudo, incluindo por ele próprio; a sua boçalidade extrema; etc, etc.
Trata-se de qualidades naturais que ele exibe com o orgulho próprio de quem... possui tais qualidades - e que, agora, com a tragédia que caiu sobre a Madeira, estão a conhecer desenvolvimentos inimagináveis.

A obsessão da besta em «desdramatizar» o drama brutal vivido desde sábado pelos madeirenses, atinge foros de demência.
Começou por, face à calamidade, se recusar a declarar o estado de calamidade. «Para proteger o turismo», segundo disse.

E como, «para proteger o turismo» é preciso fazer propaganda turística, mandou filmar turistas passeando-se tranquilamente no Funchal - e o seu departamento de Turismo despachou os vídeos para tudo quanto é sítio.

Depois - sempre «para proteger o turismo» - passou à fase da manipulação dos dados, «tentando ocultar o número de mortos» - quanto menor for o número conhecido de mortos, mais turistas...

Ontem, dia em que foram a enterrar as primeiras vítimas da catástrofe, o tema principal dos seus discursos foi a «Festa da Flor, o grande cartaz turístico da Madeira»...
De tal forma que «familiares das vítimas não lhe perdoam o facto de estar preocupado com a Festa quando os cadáveres não foram ainda enterrados».


Confesso-me incapaz de qualificar com o rigor necessário as preocupações turísticas desta figura abjecta que nem os mortos respeita.

POEMA

AS FÉRIAS


Deixei o anzol em casa
e a isca, nem tive tempo de pensar,
mas o dia tem uma brandura de asa
- vou pescar.

Pesca sem anzol nem isca.
Ter férias, tem, quem sente
a vida que mordisca
a linha negligente.

Ao pescador que se deixe
a tarefa de pescar.
Ter férias é deixar o peixe
ter suas férias no mar.

Hoje a suavidade
da areia e do sol.
Amanhã, a cidade
e o anzol.


Sidónio Muralha

(«Que Saudades do Mar» - 1971)

CENSURA DE CLASSE

Não é que vos venha dar uma novidade.
Nada disso.
Nem é que tenha a veleidade de, com este escrito, alterar a situação um cagajésimo de milímetro que seja.
Nada disso.
Registo o facto, tão somente para que fique registado.
E mais nada.

Quem sabe do que se passa no País através dos média dominantes, sabe pouco.
Melhor dizendo: sabe tudo o que ao grande capital, proprietário desses média, interessa que saiba - e não sabe nada sobre o que esse mesmo grande capital quer esconder.

Por exemplo: sobre a intensa - intensíssima - actividade do PCP, as suas opiniões sobre a situação do País, as suas propostas para resolver os problemas, etc, os média nada dizem.
De tal forma que, lendo-os ou ouvindo-os, e acreditando neles, teríamos que chegar à conclusão de que o PCP está inactivo, não existe, acabou, morreu...

Já em relação aos restantes partidos, os média dão-nos deles uma imagem de transbordante actividade...

Desfolhando o Diário de Notícias de hoje, lá vêm as notícias sobre a febril actividade dos partidos da política de direita, cada um fingindo ser diferente dos outros e o DN fingindo que acredita nisso e tentando que acreditemos no que finge acreditar...
E lá vem o inevitável BE - que, desde que nasceu, é o filho querido dos média do grande capital - com o destaque habitual: na página 13, as palavras e a foto do líder, dizem-nos não sei o quê sobre a «comissão de inquérito»; na página 18, um deputado, com palavras e foto, diz-nos não sei o quê sobre não sei quê; na página 20, outro deputado, sorri e fala sobre não sei quê; na página 22, é o próprio BE (portanto sem foto) que diz que...

Sobre o PCP, nada.
E no entanto, a actividade do PCP é maior do que as actividades somadas dos outros todos.
Como o DN sabe, aliás...

Assim se faz a censura no tempo que vivemos.
Censura de classe, obviamente.

POEMA

SONETO DO DIFÍCIL RETORNO (2)


Não. Este mar não é o que me dava
búzios que ressoavam ventanias
nas manhãs de coral e rola brava
- as horas que me dava eram macias

e macias as conchas que entregava
nas mãos que esvoaçavam alegrias,
enquanto a rola brava esvoaçava
nas manhãs de coral desses meus dias.

Não. Este mar é outro, mas às vezes
arrasta a nostalgia e os reveses
e lembra a minha praia de criança.

Suave praia, tu não estás perdida
pois nada está perdido enquanto há vida

- enxuga os olhos, pátria, tem confiança.


Sidónio Muralha

(«Que Saudades do Mar» - 1971)

O MONSTRO

A tragédia que, no sábado, se abateu sobre a Madeira, deixou atrás de si um imenso rasto de destruição, de sofrimento, de dor, de angústia, de morte - um rasto, contudo, ainda não completamente identificado, dado que o número anunciado de desaparecidos - 250 - faz temer que a perda de vidas possa vir a ser muito maior do que a que é conhecida.

A solidariedade para com as vítimas da catástrofe - solidariedade em múltiplos aspectos e vertentes - coloca-se, agora, como a questão maior - e foram várias as manifestações de disponibilidade solidária concreta que, logo desde sábado, começaram a surgir.

No entanto, há que não deixar no esquecimento algumas questões fundamentais.
As catástrofes naturais são, no essencial, inevitáveis - mas as suas consequências são, por vezes em parte grande, evitáveis.
Basta para isso que, quem de direito, tome as medidas preventivas capazes de atenuar, ou até evitar, parte dessas consequências - e isso, regra geral, não é feito.
Assim aconteceu no Haiti, como na altura aqui sublinhámos, e assim aconteceu agora na Madeira.

«A dimensão desta catástrofe não pode estar dissociada das políticas criminosas e irresponsáveis do governo autónomo do PSD na gestão urbanística do território»: afirmou, no sábado, o dirigente comunista Edgar Silva, que acrescentou terem sido «cometidos vários erros no que respeita ao ordenamento do território, nomeadamente na gestão do litoral, na ocupação de margens e estrangulação de ribeiras e desvios de linha de água».

E não se trata, no caso de Edgar Silva, nem de estar a falar de cor nem de estar a falar depois do mal feito...
Bem pelo contrário: trata-se de uma afirmação responsável feita por uma pessoa responsável.
Ainda há pouco mais de dois anos, Edgar Silva, enquanto vereador da CDU na Câmara do Funchal, apresentou numa sessão camarária uma proposta - amplamente fundamentada no historial de desastres naturais que, ao longo do tempo, têm atingido o concelho do Funchal e toda a Região Autónoma da Madeira - visando «a elaboração da Carta de Riscos do concelho do Funchal, instrumento este que deverá definir as zonas de maior ou menor risco à acção da Natureza e do Homem, definindo claramente, entre outras vertentes, as áreas abrangidas por risco de incêndio florestal, cheias (ribeiras), aluviões, erosão costeira e risco de acidente industrial».
Tivesse esta proposta sido aprovada e levada à prática e certamente as consequências da catástrofe de sábado teriam sido muito menores e muito menos graves.

Mas, obviamente, essas não eram - nem são - as preocupações de Alberto João Jardim - que, igual a si próprio: abominável, pediu ontem aos jornalistas para «evitarem dramatizações» em torno da tragédia, de modo «a não prejudicar a imagem da Madeira no exterior», isto é: de modo a não prejudicar o turismo...
A confirmar que um monstro é um monstro: em todas as circunstâncias.

POEMA

SONETO DO DIFÍCIL RETORNO (1)


Se fores a Portugal, um dia, se
pisares aquele chão, diz-lhe que aguarde
o difícil retorno deste que
nunca pensou voltar assim tão tarde.

Mas houve temporais e lutas e
se a batalha foi ganha sem alarde,
nunca foi sem alarde a raiva de
um inimigo oculto, hostil, cobarde.

Atravessei os mares e os continentes,
conheci outras línguas, outras gentes,
mas a minha poesia é lá que vive.

É lá que sou poeta e na verdade
a minha volta é só formalidade.

- Voltar não voltarei. Sempre lá estive.


Sidónio Muralha

(«Que Saudades do Mar» 1971)

QUE GRANDE LATA!

O «toque a rebate» lançado pelo «líder» começou a dar (digamos assim...) frutos:
a Comissão Nacional do PS - órgão máximo (digamos assim...) entre congressos e que não reunia há 9 meses - reuniu ontem, em Lisboa.
Na reunião, o «líder» repetiu «o que já tinha dito quinta-feira, em comunicação ao País».

Logo a seguir, o «líder» arrancou para o Porto onde, perante «mais de dois mil (digamos assim...) militantes», repetiu o que dissera na comunicação ao País e repetira na reunião da Comissão Nacional - após o que voou para o Funchal, «num Falcon do Estado vindo de Lisboa»...

No comício do Porto, o «líder» proclamou a dada altura:
«O país precisa da voz do PS para lutar pela decência na vida pública e pela elevação do Estado de direito».


Frase que o Cravo de Abril elege como A FRASE DO DIA, e pela qual atribui ao «líder» a condecoração Que Grande Lata!

POEMA

AS CRIANÇAS E OS MONSTROS


A criança entrou numa casa de brinquedos e perguntou:
- Tem carícias para vender?
E o homem respondeu: - essas coisas não temos,
mas vendemos revólveres, metralhadoras
e canhões para crianças subdesenvolvidas,
e bombas atómicas em miniatura
para meninos de fino trato,
pagáveis em dez prestações
e com entrega mensal
de um monstro mais ou menos domesticado
ao cliente
que tiver praticado o crime atómico
em miniatura
mais horrível do mundo.


Sidónio Muralha

(«Que Saudades do Mar» - 1971)

SEM TRÉGUAS

Enquanto os jornais enchem primeiras páginas e páginas interiores com:
a «Face Oculta» - ocultando que essa bandalheira é uma consequência natural e recorrente da política de direita que há quase 34 anos flagela os trabalhadores, o povo e o País; e
as aventuras dos três gémeos candidatos à liderança do PSD - ocultando que esse partido é, desde sempre, um dos executores dessa política de direita,

ela, a política de direita, liderada pelo partido actualmente de turno, o PS/Sócrates, prossegue o seu caminho:
devastador para a imensa maioria dos portugueses: o desemprego aumenta, a precariedade generaliza-se, os salários degradam-se, as pensões e reformas miserabilizam-se, a injustiça acentua-se, a pobreza e a miséria crescem, crescem, crescem...
e altamente compensador para a imensa minoria dos portugueses: os lucros dos grandes grupos económicos e financeiros crescem, crescem, crescem...

Acresce que esses jornais têm ainda que ocupar primeiras páginas e páginas interiores com as presidenciais que se realizarão no próximo ano.
E com coisas como a propaganda à manifestação dita da «família perfeita»...
Isto sem esquecer, claro, essa questão que tanto tem alvoroçado os média dominantes, que é a de saber se, sim ou não, a «liberdade de expressão existe»; se, sim ou não, «existe censura»...

Com tudo isto, não há espaço nesses jornais para noticiar que há quem se bata pela liberdade de expressão e contra todas as formas de censura; que há quem lute contra essa política de direita; que há quem lhe contraponha uma alternativa - que o é porque é de esquerda.
Isto é: não há espaço nesses jornais - nem nas primeiras páginas nem nas páginas interiores - para falar do PCP: da sua intensa intervenção de Norte a Sul do País; das suas propostas concretas para dar resposta à grave situação do País; das suas múltiplas iniciativas levadas a cabo graças a uma militância única no panorama partidário português.

Podem os mediáticos democratas dormir tranquilos... e continuar a usufruir da «liberdade de expressão» que lhes permite, democraticamente, ocultar a actividade dos comunistas; e a socorrer-se da não existência de censura que lhes permite, democraticamente, passar o lápis azul sobre tudo o que diz respeito à intervenção do PCP.

Mas podem estar certos, também, de que a luta continua.
Sem tréguas.

POEMA

TELEGRAMA AO POETA


Poeta, mantém o estado de vigília,
está atento, não adormeças.
Quando os pássaros dormem
as plumas são fofas
mas o canto é ausente
as asas inúteis

e as cabeças decapitadas.


Sidónio Muralha

(«Que Saudades do Mar» - 1971)

O EXECRÁVEL BARRETO

Há criminosos que, por arrependimento sincero ou por falso (e criminoso...) arrependimento, renegam os crimes que cometeram.
Outros há que, dos crimes cometidos, se orgulham toda a vida.
Vida, aliás, abjecta e miserável, não obstante ser, como regra geral é, farta - o que não surpreende, sabendo-se que numa sociedade baseada nas injustiças, o crime é sempre altamente compensado.

Está neste caso, António Barreto, que foi ministro da Agricultura do 1º governo de Mário Soares e que, nessa qualidade, integrou o bando de malfeitores que, afrontando a Lei Fundamental do País - portanto, agindo fora da lei - iniciou o processo de liquidação da Reforma Agrária.

A execrável figura veio agora dizer (em entrevista ao Jornal de Negócios do passado dia 15), que «a Lei Barreto é o gesto político de que mais me orgulho».
A Lei Barreto foi, como toda a gente sabe (incluindo o próprio Barreto), a primeira lei inconstitucional congeminada e imposta pelos inimigos da Reforma Agrária - e foi o ponto de partida da criminosa ofensiva que, durante 14 anos, devastou impiedosamente os campos do Alentejo e do Ribatejo e reconstituiu o latifúndio opressor e explorador que durante quase meio século foi sustentáculo essencial do fascismo.
Este «orgulho» do Barreto mostra que, três décadas passadas sobre o acto, o criminoso não mudou...

A entrevista é, toda ela, por um lado, uma manifestação de ódio à Reforma Agrária, aos trabalhadores e ao PCP e, por outro lado, um hino de adoração à contra-revolução e aos latifundiários - Barreto mostra-se, até, indignado pelo facto, «inadmissível», de alguns deles não terem ainda recebido «as indemnizações»...

Quanto à ofensiva criminosa e destruidora, Barreto reconhece que «Foi preciso muita força. Foi preciso intimidar».
Reconhece, até, que «Foi preciso usar alguma violência» - mas logo ressalva: «violência controlada, pois era indispensável não causar mortos e feridos».

A «violência controlada» para «não causar mortos e feridos» sabe-se como foi: milhares de GNR's e de elementos da Polícia de Choque,
com aviões, helicópteros, jeeps, cavalos, cães, pistolas, espingardas, metralhadoras, tal como no tempo do fascismo, puseram os campos do Sul a ferro e fogo;
roubaram as terras;
roubaram os bens produzidos pelos trabalhadores, as sementeiras, os gados;
ocuparam povoações;

perseguiram, prenderam, interrogaram, espancaram milhares e milhares de trabalhadores - ferindo mais de 12 mil e assassinando dois: José Geraldo (Caravela) e o jovem António Maria Casquinha;
e, com tudo isso, destruiram «a mais bela conquista da Revolução de Abril».



Não apenas pelo que fez, mas também por se orgulhar do que fez, António Barreto é uma figura repugnante, um ser abjecto, asqueroso.
Execrável.

POEMA

TUDO NA MESMA PAREDE


Portinari não morreu.
A morte é o mármore, o silêncio, o frio
e sobretudo o esquecimento.
Porque estamos vivos, tu e eu,
Portinari não morreu
e é ele que sopra o vento
e que faz correr um rio
no nosso pensamento.

Será teu companheiro se tu partires
o Portinari da eternidade
que pinta no balouço do arco-íris
as sete cores da amizade.

Foi ele que deu à parede
toda a força de um gesto
e que fechou numa rede
tudo isto e tudo o resto
- barco, ondas e conchas do mar,
água para matar a sede
e um homem a gritar
(tudo na mesma parede
e coberto de luar).

De luar ou do cristal das alvoradas,
lá no alto abrem-se vidraças
e crianças de todas as raças
avançam no asfalto, de mãos dadas.

Meninos dançam, e as cores
de Portinari são as mesmas do Brasil
- venham, senhoras e senhores,
ver dançar à volta das flores
os homens do ano dois mil.


Sidónio Muralha

(«Os Olhos das Crianças» - 1963)

«O BOY DE SÓCRATES»

Tem 36 anos.
A sua carreira política está estreitamente ligada à sua carreira profissional - e vice-versa.

Começou na «Juventude Socialista» a cuja liderança se candidatou, em 1999, com a audaciosa proposta de mudar a cor da bandeira da «JS» de amarelo para vermelho, e com uma retumbante moção intitulada «Nós vamos pela esquerda».
Os colegas acreditaram nele e foi derrotado...
(Ou os colegas não acreditaram nele e foi derrotado...)

No ano seguinte passa a assessor dos deputados do PS no Parlamento Europeu e em 2001 torna-se vereador substituto de João Soares na Câmara de Lisboa, onde «por vezes falava nas reuniões para aparecer e mostrar serviço, mas nem sempre tinha conhecimento dos dossiers»...

Na campanha das legislativas de 2002 teve papel relevante: foi dele a ideia de mandar estampar em centenas de T-shirts a imagem do Che e o poema de Alegre: «nós vamos pela esquerda»... perdão: «o foco guerrilheiro existe sempre/em cada um de nós existe um foco/uma guerrilha possível/uma insubmissão».

Em 2004 desenvolve intensa actividade guerrilheira na campanha de Sócrates para a liderança do PS.
Em 2005 Sócrates torna-se primeiro-ministro e nomeia-o administrador executivo da PT - nomeação que causou estranheza em muita gente dado o «magro currículo» do nomeado...
Já o salário que passou a receber não era assim tão magro: 30 mil euros/mês + o prémio anual de desempenho e outras gordas regalias próprias de quem tem magros currículos. (basta dizer que, no ano de 2009, os quatro administradores da PT dividiram entre si cerca de 4 milhões de euros de prémios, ou, feitas as contas: 1 milhão para cada um)

O processo «Face Oculta» foi como que uma pedra na engrenagem da sua fulgurante e próspera carreira - pedra que o carreirista tentou afastar a todo o custo e por todos os meios, tendo, por isso, ficado conhecido por «o senhor providência cautelar»...


Demitiu-se, ontem, do cargo de administrador da PT - após uma busca da polícia a sua casa.
Chama-se Rui Pedro Soares.
Chamam-lhe «o boy de Sócrates».


Boa noite.

POEMA

NA RUA RIACHUELO


Na Rua Riachuelo
passa empinando o vestido:
O meu filho vai ser belo
quem emprega o meu marido?

- Todo o mundo distraído
na Rua Riachuelo.

Lá dentro estrebucha a vida
aos pontapés furiosos,
o seu filho vai ser belo
vai ter os olhos formosos,

- passa a gente distraída
na Rua Riachuelo.

O senhor por gentileza
não emprega o meu marido?
Meu menino vai ser belo
se houver um prato na mesa.

- Todo o mundo distraído
na Rua Riachuelo.

Só faltam cinco semanas
amigos, façam favor,
sem pão nada será belo,
tenham maneiras humanas
tragam um pouco de amor
à Rua Riachuelo.

Menos gente que adormece,
menos gente distraída
e o futuro será belo.

- alguma coisa acontece
são os pontapés da vida
na Rua Riachuelo.

Freme a tarde sonolenta
tudo vibra, o ventre, os seios
e o filho que vai ser belo.

E um rio de esperança rebenta,
rompe e arranca os passeios
da Rua Riachuelo.


Sidónio Muralha

(«Os Olhos das Crianças» - 1963)

POIS

A decisão de José Sócrates de convocar reuniões de todos os órgãos dirigentes do PS - a começar pela Comissão Nacional - parece estar a provocar algumas reacções negativas.
Quem já se insurgiu contra esta frenética convocação de reuniões foi Pedro Baptista, membro da comissão distrital do Porto e ex-deputado.
Diz ele que «o PS não é propriamente um rebanho que avança quando os sinos tocam a rebate só porque o líder está a passar um momento difícil»...
Ou seja: quando está em dificuldades, o líder convoca reuniões; quando o líder está bem, não há reuniões para ninguém.
E Pedro Baptista dá um exemplo: o órgão máximo do partido, «a Comissão Nacional não reune há 9 meses».

Deixando sem comentário o toque a rebate para chamar o rebanho quando o pastor está à rasca - que é problema interno do partido de Soares, Guterres, Sócrates, etc - colocam-se-me duas questões:
1 - como é que um partido pode funcionar mantendo inactivo durante 9 meses o seu órgão directivo máximo?
2 - que conceito de funcionamento interno democrático vigora em tal partido?

Quanto à primeira questão: é óbvio que , em tal partido, o órgão directivo máximo é um pró-forma, um faz-de-conta, e que quem manda é o líder, o chefe.
Quanto à segunda questão: apague-se a palavra «democrático» e a resposta está dada.

Recorde-se: foi este PS que - de braço dado e aos beijinhos com os seus colegas PSD e CDS/PP - fizeram aprovar uma lei dos partidos que visa obrigar o PCP a adoptar normas de funcionamento interno iguais às deles - ou, como eles dizem: obrigar o PCP a «democratizar-se»...

Pois.

POEMA

A ÚLTIMA MOEDA


Gasta a última moeda, companheiro,
e avança contra o vento contrário,
homem despedaçado mas inteiro,
nem tu, nem ninguém escreve o teu diário,

- mas se o entusiasmo fosse dinheiro
serias milionário.


Sidónio Muralha

(«Os Olhos das Crianças» - 1963)

A CARIMBADELA...

A política de direita que há quase 34 anos fustiga impiedosamente a imensa maioria dos portugueses, é fértil em descobrir perversidades para fazer a vida negra a quem trabalha e vive do seu trabalho.
PS, PSD e CDS/PP pedem meças, cada um a cada um, na invenção dessas perversidades - por todos eles aprovadas, democraticamente, na Assembleia da República.

É o caso - um entre milhares de outros - da decisão que obriga os trabalhadores desempregados a comprovarem a «busca activa de emprego», ou seja: a apresentarem regularmente no chamado «Centro de Emprego», um documento em que pelo menos dois patrões atestem, com aposição do carimbo da sua empresa, que o desempregado em causa os contactou procurando trabalho.

Acontece, entretanto, que o número de trabalhadores à procura de emprego é de tal modo elevado que muitos patrões viram na exigência da carimbadela uma possibilidade de negócio... e, sobretudo, de humilhação dos trabalhadores desempregados.
Segundo o jornal i, esses patrões passaram a exigir que cada trabalhador que os contacta em busca de trabalho, pague 5 euros por cada carimbadela - e o pagamento desses 5 euros está já tão vulgarizado que passou a ser designado por «Chapa 5».
Outros patrões há que, em vez da «Chapa 5», exigem aos desempregados que lhes paguem a carimbadela com umas tantas horas de trabalho gratuito...

Assim se prova o erro de quem pensava que a política de direita e os três partidos que a defendem e aplicam - PS, PSD e CDS/PP - já tinham batido no fundo em matéria de desvergonha, de insolência, de indignidade, de desrespeito e desprezo por quem trabalha e vive do seu trabalho.
A carimbadela aí está a demonstrar que as perversidades dessa cambada não têm limites.
E que só correndo com eles definitivamente se restituirá aos trabalhadores, ao povo e ao País a dignidade conquistada com a Revolução de Abril.

POEMA

INVENTÁRIO DE DOMINGO


No domingo pastoso e lento
há um relógio realejo
redondo como um bocejo
que rói o tempo e o pensamento.

Há o bairro puído e humilhado,
há sempre o disco usado na vitrola
e há uma lágrima que rola
entre o presente e o passado.

E há a chuva, que prevê o calendário,
e há o tédio, e há a monotonia
banal na sua geometria
que vai da gaiola ao aquário.

E há o amor, um amor assim-assim,
burguês, dominical e burocrático
que seria alegre se não fosse dramático,
que seria tudo se não fosse um folhetim.

E há pessoas ancoradas nos salões
horas e horas com olhar fixo e duro
para que os olhos das crianças do futuro
sejam rectangulares como televisões.


Sidónio Muralha

(«Oo Olhos das Crianças» - 1963)

A PROPÓSITO DE UMA EFEMÉRIDE

Em 1959, o Governo francês anunciou que iria proceder a uma «experiência nuclear» no deserto do Sara.
Com isso, mostrava ser (com os EUA, a URSS e a Grã-Bretanha) um dos quatro países então possuidores da bomba atómica - bomba atómica que De Gaulle justificava como «uma arma dissuasora», tendo como alvo «o poderoso exército soviético»...

O facto de se tratar de um teste atmosférico, comportava graves perigos - perigos que, na altura, se a memória me não falha, eram pressentidos, essencialmente, pelo conhecimento que havia do horror que fora, cerca de quinze anos antes, Hiroshima e Nagasáqui.

Na ocasião, desenvolveu-se em todo o mundo um amplo movimento de protesto contra o teste nuclear atmosférico anunciado pelo Governo francês.
E também aqui no nosso País, apesar da ditadura fascista, houve protestos, a partir, naturalmente, do PCP - e também de um movimento juvenil antifascista então existente: a União da Juventude Portuguesa.

Coube-me a mim a tarefa de escrever o texto de protesto dos jovens, texto que depois imprimimos - durante três longas mas exaltantes noites... - num lento, lento, lento copiógrafo manual...
E no dia 30 de Dezembro, aproveitando a inauguração do Metro, em Lisboa - acontecimento que juntou milhares de pessoas espalhadas pelas diversas paragens (tanto mais que no primeiro dia as viagens eram de borla...) - distribuímos os cerca de 3 mil - que grande tiragem!... - exemplares do documento, complementando a distribuição com um discurso no qual chamávamos a atenção para os perigos que os anunciados testes atmosféricos comportavam.
Tudo feito de fugida, obviamente, porque os répteis rastejavam por todo o lado...


Estas relembranças - com cunho pessoal e porventura fastidiosas para os visitantes do Cravo de Abril - vêm a propósito do facto de ter passado, anteontem, o 50º aniversário desse teste nuclear que, apesar dos muitos protestos, o Governo francês levou a cabo, no dia 13 de Fevereiro de 1960, no deserto do Sara, no Sul da Argélia, então colónia francesa.
E, infelizmente, as consequências do facto confirmaram aquilo para que alertava o tal documento distribuído no Metro...

Logo após a explosão, De Gaulle informava o mundo de que ela tinha sido «um êxito» e jurava: «Foi integralmente garantida a segurança das populações do Sara e dos países vizinhos».

Jurava falso, como a realidade demonstrou: na verdade, um número desconhecido, mas elevado, de pessoas morreram; muitos milhares foram afectadas pelas radiações; os animais (cabras e dromedários) ficaram doentes e logo a seguir morreram...
De alguma forma, foi outra vez o horror.

E hoje - tal como acontece em Hiroshima e Nagasáqui - cinquenta anos passados, as radiações persistem e continuam a matar.

POEMA

CORDIALIDADE SEM CORES



Homens divididos. Brancos e pretos,
mulatos, vermelhos e amarelos,
divindades, crenças, amuletos,
choupanas e castelos.

Como se a condição e a cor da tez
fossem deste momento supersónico
que vai estourar o muro da estupidez

- eu sou daltónico.


Sidónio Muralha

(«Os Olhos das Crianças» - 1963)

AGORA PERCEBO...

Dizem os jornais que 18 ex-deputados pediram à Assembleia da República «a atribuição da pensão vitalícia e do subsídio de reintegração».
Entre esses deputados encontra-se Manuel Alegre que, como é sabido, cessou recentemente as funções de deputado, que exercia desde 1975, para se dedicar em exclusivo às eleições presidenciais.

«Recebo aquilo a que tenho direito»: respondeu Alegre a um jornalista que, a propósito do pedido agora feito, se lhe dirigiu.
Tem toda a razão, o ex-deputado: recebe aquilo a que tem direito.
Os quase 2000 euros mensais que vai passar a receber são-lhe inteiramente devidos.
Incontestavelmente.

No entanto, na resposta ao jornalista, Manuel Alegre achou por bem acrescentar: «Recebo a pensão como funcionário da RDP e recebo a subvenção vitalícia, que é aquilo a que qualquer deputado tem direito».

E aqui é que a coisa já não é ... incontestável, digamos assim.
Para mim, pelo menos.
Confesso que sobre a justeza - para não dizer outra coisa... - desta «pensão como funcionário da RDP» que Alegre recebe, tenho algumas dúvidas.

Provavelmente poucas pessoas recordarão a prestação do actual candidato às presidenciais como «funcionário da RDP».
Em primeiro lugar, porque isso aconteceu já há muito tempo - foi logo a seguir ao 25 de Abril.
E, em segundo lugar, porque isso durou muito pouco tempo - se a memória me não falha, uns escassos meses.

E é aí que residem as minhas dúvidas sobre a justeza - para não dizer outra coisa... - desta pensão:
uma pensão de 3219 euros mensais por ter sido funcionário da RDP durante meia dúzia de meses?...


Agora percebo
por que é que nunca vi este ex-funcionário da RDP nas manifestações em que os reformados e pensionistas exigem reformas e pensões dignas, em vez da miséria que recebem...

POEMA

JACKSON, JUNHO 63


A caça foi aberta esta semana.
Que seja ou que não seja autorizado
é branco o caçador, negro o caçado,
lá onde ninguém sana a luta insana.

Sobe no ar um ódio electrizado
e sobre cada prédio paira e plana.
Lincoln que quis a vida mais humana
quantas vezes será assassinado.

A caça foi aberta, só a cor
faz distinguir caçado e caçador,
e é cor de noite a cor que vai fugindo.

Chove cinza nas ruas da cidade,
levanta as mãos tremendo a liberdade
e cobre de vergonha o rosto lindo.


Sidónio Muralha

(«Os Olhos das Crianças» - 1963)

A ORIGEM DA PODRIDÃO

Enquanto, por cá, se chafurda à fartazana na podridão gerada pela política de direita - hoje, com o PS; ontem, com o PSD e o CDS/PP; anteontem, com o PS... - outras podridões da mesma família ocorrem no reino universal do capitalismo dominante.

Aqui, no Cravo de Abril, não esquecemos as Honduras: o golpe militar que, executado pelo fascista Micheletti com o apoio dos EUA, afastou do poder o Presidente legítimo, Manuel Zelaya.

Nas Honduras, a resistência continua - e exige a nossa solidariedade.
Nas Honduras, a repressão fascista acentua-se - e é imperioso denunciá-la.

Vanesa Yaneth Zepeda - de 29 anos, mãe de três filhos, activista da Frente Nacional de Resistência Contra o Golpe nas Honduras - foi raptada «por desconhecidos», no passado dia 2 de Fevereiro.
Dois dias depois, o seu corpo, sem vida, foi lançado de um automóvel em andamento, numa localidade próxima da capital, Tegucigalpa.

É o fascismo, regime que, nas Honduras, pela força das circunstâncias, serve o sistema capitalista - tal como, noutras circunstâncias, o servem, noutros países, as democracias burguesas.

Claro que há diferenças: nuns lados mata-se, noutros lados chafurda-se.
Mas a origem essencial da podridão é a mesma.

POEMA

OS INDESEJÁVEIS


Cinco meninos na espelunca
olham com olhos de bicho
as cinco letras da palavra nunca
e o convite do camião do lixo.

Entrelaçados como correntes,
letras ligadas da palavra nunca,
torcem as mãos, batem os dentes,
os cinco meninos da espelunca.

Vivem apavorados, seminus,
chafurdando nas coisas impossíveis
à procura de um gesto de amizade.

- e um dia crescem, como bambus,
e como juncos flexíveis
fustigam o rosto da cidade.


Sidónio Muralha

(Os Olhos das Crianças» - 1963)

SAÚDE, CAMARADA URBANO

URBANO TAVARES RODRIGUES é um dos grandes escritores portugueses de sempre.
A sua Obra - cerca de uma centena de livros publicados: romance, novela, conto, teatro, ensaio, crónica... - faz dele uma figura maior da literatura portuguesa.

Aos 86 anos acaba de lançar um novo livro: «Assim se esvai a vida».
Trata-se de uma obra com grande carga autobiográfica e na qual encontramos sinais do Urbano homem solidário, fraterno, corajoso, de um humanismo sem margens; do activista político intensamente empenhado na resistência ao fascismo desde meados da década de 50 do século passado - e, por isso, várias vezes preso pela PIDE; do militante comunista.

A propósito do lançamento deste livro, Urbano foi entrevistado para o Jornal de Notícias.
Aqui ficam duas perguntas e duas respostas dessa entrevista:

P.: «Sempre se assumiu como comunista. Sente que essa militância tem prejudicado o reconhecimento?»
R: «E de que maneira! Já várias vezes fui preterido em concursos literários por causa disso».

P.: «E sente que vale a pena continuar a ser comunista?»
R.: «Sim. O neocapitalismo tem uma crise estrutural e caminha para a sua autodestruição. Penso que, no futuro, virá aquilo a que se poderá chamar a igualdade possível».

Chegar aos 86 anos com tal lucidez e tal confiança no futuro é, certamente, desejo maior de cada um de nós - amigos, camaradas, admiradores de Urbano Tavares Rodrigues.

SAÚDE, CAMARADA URBANO.

POEMA

OS OLHOS DAS CRIANÇAS


Atrás dos muros altos com garrafas partidas
bem para trás das grades do silêncio imposto
as crianças de olhos de espanto e de medo transidas
as crianças vendidas alugadas perseguidas
olham os poetas com lágrimas no rosto.

Olham os poetas as crianças das vielas
mas não pedem cançonetas mas não pedem baladas
o que elas pedem é que gritemos por elas
as crianças sem livros sem ternura sem janelas
as crianças dos versos que são como pedradas.


Sidónio Muralha

(«Os Olhos das Crianças» - 1963)

LIBERDADE DE QUÊ?

«Liberdade de informação» tem sido, nos últimos dias, um tema preferencial de notícias, crónicas, análises, debates, discursos, manifestações, até...
Uns atacam a «liberdade de informação» à PS e defendem a «liberdade de informação» à PSD; outros, vice-versa.
E todos viram o disco e tocam o mesmo.
E todos fingem que estão a bater-se pela liberdade de informação.

Os média dominantes - todos! - são pela «liberdade de informação».
Cada um deles garante ser «independente», «isento», «imparcial» - ou seja: cada um deles garante ser um espaço de «liberdade de informação».
Sucedem-se os jornalistas e cronistas e analistas que garantem ter toda a liberdade para escrever o que querem nos jornais que lhes pagam para escrever...
E tudo isto faz lembrar aquela frase - sintética, precisa e concisa - proferida pelo proprietário de um grande jornal britânico:
«No meu jornal os jornalistas têm toda a liberdade de escrever o que eu penso».

Entretanto, a «liberdade de informação» deles todos continua a fazer das suas...
Um exemplo: anteontem o PCP divulgou um importante comunicado assinalando o 35º aniversário do início da Reforma Agrária.
Não houve um único jornal - sublinho: não houve um único jornal - que publicasse o comunicado, ou extractos do comunicado, ou que, simplesmente, noticiasse a saída do comunicado. Foi o silêncio total.


À PS
ou à PSD, é assim a «liberdade de informação» do grande capital.

POEMA

RONDA DOS RÉPTEIS


Rastejam nas leitarias, rastejam entre os trapos
das lojas de fanqueiro, e nos cinemas, e nas conferências,
e nas faculdades, nas fábricas, nos comboios, no futebol, nas touradas,
rastejam, rastejam em toda a parte, viscosos como sapos,
e abrem as bocas verdes com dentes verdes de excremências,
e cospem palavras torpes contra janelas fechadas.

Rastejam nos cafés, nas livrarias e nos portos,
rastejam e envenenam as noites, rastejam e empeçonham os dias,
raivosos babam-se quando falamos, quando lemos,
e olham os vivos de olhos vidrados como mortos,
e rastejam nos hotéis, nas pensões, nas padarias
e mãos de lama tocam o pão que nós comemos.

E as bocas verdes e imundas bafejam, bafejam,
e as rosas fenecem, as rosas são mortas,
e os dedos de lama acusam no escuro,
e eles rastejam, rastejam, rastejam,
colados à sombra, colados às portas,
como cartazes de infâmia colados ao muro.


Sidónio Muralha

(«Companheira dos Homens» - 1950)

O MAIOR MAL DE MAP

Manuel António Pina (MAP) publicou no Jornal de Notícias de ontem uma crónica sobre a «manifestação», promovida por uns tantos blogues e cidadãos de Direita e anunciada para quinta-feira junto à Assembleia da República.
A crónica de MAP - excelente, pertinentíssima e, como sempre, muito bem escrita - provocou reacções de desagrado. Pelos vistos tantas e tão fortes que o autor sentiu necessidade de voltar ao assunto, hoje.
Infelizmente, voltou mal.

Sublinhando que o seu mal é ter memória - «o meu mal é andar por jornais há muito tempo» - MAP relembra casos semelhantes aos que, agora, surgiram em matéria de atentados à «liberdade de informação»- e que não mereceram manifestações de protesto, designadamente da parte dos promotores da manifestação de quinta-feira.
E cita, muito a propósito, alguns casos: «quando Marques Mendes ditava à RTP o alinhamento do Telejornal»; ou «quando Cavaco procurava calar o "Independente"».
Certíssimo. E podia, se quisesse, multiplicar por muitos os casos citados.

Eis senão quando, talvez por não conseguir livrar-se da tentação de fazer anticomunismo - que, como se sabe, é uma prática que serve para muita coisa e serve e alimenta muita gente... - MAP acrescenta aos dois casos anteriores um terceiro que explicita assim: «quando o PCP fez o mesmo na República» (leia-se: no jornal República).

Trata-se de um acrescento obviamente a despropósito.

Porquê?
Em primeiro lugar, porque, como sabe quem tem memória ou quer estar informado, em torno do chamado «caso República» foram organizadas muitas e muitas manifestações e concentrações e provocações - a começar nas gritarias histéricas orquestradas por provocadores profissionais (especialmente a dupla Mário Soares & Cia...), em frente ao República, e a terminar nas homilias proferidas por todo o País...

Confesso que me espanta o facto de MAP - que, certamente, já nessa altura andava por jornais - não ter visto o que se passou e ter gravado na memória apenas... o que não se passou.
Estamos a falar de um tempo, recorde-se, pródigo no desenvolvimento de campanhas e organização de provocações, regra geral encabeçadas pela dupla Soares & Cia..., com o objectivo de criar a ideia, cá e no estrangeiro, de que o PCP estava a liquidar a democracia e a instalar uma ditadura...
Ora, o chamado «caso República» é precisamente uma dessas provocações - hoje abundantemente desmontada - organizada e utilizada pela referida dupla Soares & Cia..., para espalhar cá, e levar a todo o mundo, essa imagem sinistra dos comunistas portugueses - e, assim, alimentar a contra-revolução de que Soares foi o chefe - no plano nacional, obviamente...

Espanta, por isso, que um homem informado, como é suposto ser MAP, revele tamanha desinformação.

Com tudo isto, estou em crer que o maior mal de MAP não é o de «andar nos jornais há muito tempo» - mas sim o de, andando por lá já nesse tempo, não ter conseguido enxergar, ali mesmo, a meio palmo do seu nariz, uma tão descarada provocação.

POEMA

PEQUENOS DEUSES CASEIROS


Pequenos deuses caseiros que brincais aos temporais,
passam-se os dias, as semanas, os meses e os anos
e vós jogais, jogais
o jogo dos tiranos.

Pequenos deuses caseiros, cantai cantigas macias,
tomai vossa morfina, perdulai vossos dinheiros,
derramai a vossa raiva, gozai vossas tiranias,
pequenos deuses caseiros.

Erguei vossos castelos, elegei vossos senhores,
espancai vossos criados, violai vossas criadas,
e bebei, bebei o vinho dos traidores
servido em taças roubadas.

Dormi em colchões de penas, dançai dias inteiros,
comprai os que se vendem, e alteai vossas janelas,
e trancai vossas portas, pequenos deuses caseiros,
e reforçai, reforçai as sentinelas.

Que é sempre um dia a menos este dia que passa,
e cada dia a mais aumenta o preço da traição,
e cada dia a mais aumenta o preço da desgraça,
e a nossa moeda não é piedade nem perdão
porque foi temperada com todas as lágrimas da raça.
Não, pequenos deuses caseiros, não!


Sidónio Muralha

(«Companheira dos Homens» - 1950)

«A TERRA A QUEM A TRABALHA!»

9 de Fevereiro de 1975: em Évora, tinha lugar a I Conferência dos Trabalhadores Agrícolas do Sul, organizada pelo PCP, e em cujos trabalhos e comício de encerramento participaram mais de 30 mil trabalhadores.
Era o primeiro passo dessa caminhada exaltante que foi a construção da Reforma Agrária.

Para trás, ficavam décadas de luta do proletariado agrícola do Sul - luta corajosa e determinada contra o latifúndio opressor e explorador, contra o fascismo. Pela liberdade e pela democracia. Pela Reforma Agrária.

No comício de encerramento da Conferência, Álvaro Cunhal disse:

«Vivemos um momento histórico nos campos do Sul. Pelas mãos dos trabalhadores, a Reforma Agrária deu os primeiros passos. Do Alentejo das terras incultas, das charnecas, dos pousios, do gado raro e miserável, dos baixos rendimentos das culturas; do Alentejo do desemprego, da fome e da miséria, os trabalhadores, com o apoio do Estado democrático, farão um Alentejo com uma agricultura que dará em abundância os produtos de que os trabalhadores e o País necessitam.
A Reforma Agrária surge natural como a própria vida, aparece como resultado da necessidade objectiva de resolver o problema do emprego e da produção, como solução indispensável e única».
E, mais adiante, acrescentava:

«Os latifúndios têm sido e são a miséria, o atraso e a morte.
A entrega da terra a quem a trabalha significa a própria vida, a vida para os trabalhadores desempregados e seus filhos, vida para a agricultura abandonada, sabotada pelos grandes agrários e pelos grandes capitalistas»
.

E assim foi.
Menos de um ano após a Conferência de 9 de Fevereiro, a Reforma Agrária era uma realidade - uma realidade que, para além dos enormes êxitos alcançados em matéria de produção agrícola e pecuária, resolveu o problema do desemprego, da miséria e da fome; realizou uma impressionante obra social e cultural; transformou as relações de produção em relações de cooperação e solidariedade, com a abolição da exploração do homem pelo homem - e por tudo isso, e muito mais, foi, nas certeiras palavras de Álvaro Cunhal,
«a mais bela conquista da Revolução».

Da mesma forma que a construção da Reforma Agrária constituiu o momento mais luminoso desse tempo luminoso que foi a Revolução de Abril, também a sua destruição constituiu o momento mais sombrio deste tempo sombrio que tem sido o tempo da contra-revolução.
Com efeito, a ofensiva contra a Reforma Agrária - iniciada pelo primeiro governo PS/Mário Soares e prosseguida por todos os governos que se lhe seguiram integrando os restantes partidos da política de direita (PPD/PSD e CDS/PP) - foi, em muitos aspectos, um regresso ao passado.
Foi o regresso aos campos do Alentejo e Ribatejo das perseguições, das prisões, dos interrogatórios pidescos, das torturas, dos julgamentos sumários, dos assassinatos.
Foi o regresso do latifúndio - antes sustentáculo do fascismo, agora sustentáculo da contra-revolução.

A Reforma Agrária confirmou ser uma componente indispensável da democracia e do desenvolvimento de Portugal.
Por isso ela é indispensável no futuro democrático de Portugal - nesse futuro pelo qual lutamos todos os dias, combatendo a política de direita ao serviço dos interesses do gande capital, e tendo como objectivo conquistar uma política de esquerda ao serviço dos interesses dos trabalhadores, do povo e do País.

Por isso, «A TERRA A QUEM A TRABALHA!» é uma palavra de ordem cheia de actualidade - e cheia de futuro.

POEMA

ORDEM DO DIA


Homens novos temperados pela guerra,
das fábricas enormes e cinzentas
- rasgai poema na terra
com as vossas ferramentas!

Homens das oficinas e dos cais,
dos campos e da faina sobre o mar
- porque não ensinais
os poetas a cantar?

Algemados - não importa por que leis -
seja qual for a vossa raça e a vossa casta,
vinde dizer o que sabeis!
- Por agora é quanto basta.

Vinde das minas, dos fornos, das caldeiras,
vergados da descarga do carvão!
Vinde! Porque chegou enfim o dia
de apressar a tarefa inconcluída!

- E a poesia, esta poesia,
é um facho que vai de mão em mão
pelos caminhos da vida.


Sidónio Muralha

(«Companheira dos Homens» - 1950)

OU TALVEZ NÃO

Estas tragédias, ditas naturais, que de de vez em quando flagelam a humanidade, tendem a despertar os bons sentimentos dos cidadãos - mesmo dos cidadãos que só nessas ocasiões revelam ter sentimentos...

No caso do Haiti, vimos como de imediato se desenvolveu em todo o planeta um movimento de solidariedade para com aquele martirizado povo - solidariedade que, em termos concretos, tem demorado a chegar onde devia, atrasada com demoras à primeira vista inexplicáveis.

Vimos também como artistas famosos de todo o mundo se mostraram solidários, contribuindo, nuns casos, com dinheiro contado, noutros casos oferecendo o lucro de um CD que lançaram ou irão lançar...

A meu ver, todos estes contributos são importantes (desde que cheguem onde devem chegar, insisto) - e mesmo que, como por vezes acontece, por detrás destes contributos haja a intenção, mais ou menos calculada, de a benemérita acção passar a fazer parte dos «currículos humanitários», digamos assim, desses artistas...

Vem isto a propósito de uma notícia publicada no Correio da Manhã na sua rubrica «Vidas de domingo».
A notícia, com chamada de primeira página e quase uma página interior, relata-nos a realização de uma «quermesse de solidariedade e apoio às vítimas do Haiti», organizada por «cerca de 40 figuras da TV».

As «figuras da TV» ofereceram roupas que já não usavam ou que apenas usavam em situações especiais - como é o caso de duas camisolas que ali foram leiloadas: uma do FCPorto, «assinada pelos jogadores», que rendeu 180 euros; outra do Sporting, esta não assinada, que rendeu 510 euros.
Muito disputado foi também «o colete que o presidente da AMI, Fernando Nobre, usou no Haiti», que acabaria por ser arrematado (o colete, obviamente) por 300 euros.

E assim, com estas e outras, a quermesse rendeu 10 mil euros - o que não é nada mau, mas também não é nada por aí além, tratando-se de «figuras da TV»...

Mas não é isso que está em causa.
O que me impressionou foi a forma como tudo aquilo nos foi contado... a sensação que tive de que, em todo aquele relato, a preocupação maior tinha a ver, não com o terrível drama do povo haitiano, mas com a promoção das «figuras da TV»...

Talvez esteja a ser injusto.
Ou talvez não.

POEMA

COMENTÁRIO


Era tão embaladora a sua poesia,
tão vestida de rendas e tão despida de violência,
que ele por vezes adormecia
naquela cadência.

- Coitado.
Trabalhou com tanto afinco
e andou de lá para cá,
de cá para lá,
arrastado
numa tempestade amena...

- Poeta do chá das 5
a poesia dissolveu-se no chá.

Foi pena.


Sidónio Muralha

(«Companheira dos Homens» - 1950)

VOLTANDO À DEMOCRACIA...

Lembram-se de David Kelly?
Era um alto funcionário do Ministério da Defesa da Grã Bretanha.
Era, também, «especialista em guerra biológica».

Foi ele que, em 2003, contestou a afirmação de Blair de que o Iraque estava em condições de «desencadear um ataque químico em 45 minutos».
David Kelly desmentiu, a um jornalista da BBC, tal possibilidade - ao mesmo tempo que revelou que o relatório do Governo que sustentava a patranha fora falsificado pelo director de Comunicação e Estratégia de Blair, um tal Alastair Campbell.

A notícia, divulgada pela BBC, foi como que uma bomba.
O Governo obrigou a BBC a divulgar a fonte da informação divulgada...
E David Kelly foi submetido a interrogatórios e o seu nome arrastado na lama.

Na altura, foi divulgada uma conversa entre David Kelly e um embaixador britânico, David Broucher.

Broucher: «O que acontecerá se o Iraque for invadido?».
Kelly: «Provavelmente serei encontrado morto numa floresta».


O Iraque foi invadido.
E David Kelly foi encontrado morto num bosque...

Na altura, o Governo de Blair entregou a averiguação do caso a um juiz, de seu nome Lorde Hutton - o qual, de um dia para o outro, concluiu tratar-se de suicídio, por corte no pulso.
Caso arrumado.

Há dois meses, um grupo de seis médicos pediu a reavaliação do caso (designadamente o acesso ao relatório da autópsia), alegando - e fundamentando cientificamente a alegação - que, nas circunstâncias, o corte no pulso «não poderia ter causado a morte de Kelly».

O pedido dos seis médicos foi , agora, recusado.
Fundamentos da recusa: logo em 2003, o juiz Hutton emitiu uma ordem que proibe a divulgação do relatório da autópsia por um prazo de 70 anos e proibe a divulgação dos testemunhos obtidos por um prazo de 30 anos...
Caso definitivamente arrumado.

Como se vê, estamos perante um juiz altamente previdente...
Um juiz à altura da democracia blairiana.
Que é, também, a democracia socratiana, e a democracia berlusconiana, e a democracia sarkoziana, e por aí fora...
Todas irmãs gémeas, filhas-da-mãe-democracia-obamaniana.
Todas elas, enfim, constituindo a democracia dominante.

POEMA

SERENIDADE


Serenidade podre como um peixe a boiar.
Paisagem de papel azul esconde a paisagem humana.
As árvores tormentadas são pintadas de luar
e os frutos são de cera, e os ninhos de porcelana.

Serenidade da violência mascarada de afago,
serenidade dos gritos camuflados de trilos,

serenidade como o espelho de um lago
infestado de crocodilos.


Sidónio Muralha

(«Companheira dos Homens» - 1950)

«OLHA QUE ISSO PODE PREJUDICAR-TE...»

A reportagem do Público sobre a manifestação dos trabalhadores da Administração Pública é uma peça estranha.
Não tanto pelo que nos conta, mas especialmente pelo que não nos diz.
Na verdade, sobre a dimensão da manifestação - se os manifestantes eram muitos; se eram poucos; quantos eram - nada nos é dito.
E lá vem a habitual fotografia manhosa, daquelas a que o Público usa recorrer para (não) nos mostrar as manifestações de massas...

Por isso esclareça-se desde já que foram mais de 50 mil, os trabalhadores que, ontem, desfilaram até ao Terreiro do Paço, numa grandiosa manifestação, e que ali afirmaram, inequivocamente, a sua firme determinação de darem continuidade à luta - à semelhança, aliás, do que aconteceu há uma semana com a igualmente grandiosa manifestação dos enfermeiros.

Mas voltando à reportagem do Público: o repórter optou por conversar com alguns manifestantes e ouvir e registar diálogos travados entre eles - diálogos por vezes interessantes e, até, muito esclarecedores sobre as razões que ali os levaram a manifestar o seu protesto e as suas exigências.

Num desses registos diz um manifestante:
«Eu sou comunista. Desde os 16 anos. Desde o 25 de Abril».
Um companheiro aconselha-o a não dizer aquilo em voz alta:
«Olha que isso pode prejudicar-te, pá»


Ora aqui está um diálogo por demais elucidativo do estado da democracia em Portugal - uma democracia em que o facto de um cidadão assumir a sua condição de comunista... «pode prejudicar-te, pá»...

POEMA

EPITÁFIO


A Pátria, de olhos sem fundo como dois buracos,
vela o teu corpo e põe-te uma promessa nas mãos frias...
- tu que foste a força dos fracos,
tu que foste maior que todas as poesias.
Tu, puro e oculto como as cisternas de água,
tu que eras presente e invisível como a aragem,
tu que continuas a ligar-nos pela mágoa
como sempre o fizeste pela coragem.

Por todo o sofrimento, por todas as desgraças,
e em nome das madrugadas que rasgam as vidraças,
a Pátria põe-te uma promessa nas mãos frias.

Largos versos irrompem no teu silêncio de granito,
e tu vives inteiro em cada grito,
tu que foste maior que todas as poesias.


Sidónio Muralha

(«Companheira dos Homens» - 1950)

O PORTO DE ABRIGO

Os terroristas que actuam na América Latina têm nos EUA um porto de abrigo seguro e certo sempre que a sua actividade é detectada e, quando podem, fogem do país onde actuaram.
Não admira, já que, na sua maioria, eles são formados nas experientes escolas de terrorismo daquele país - que é, também, o principal organizador, financiador e beneficiário das actividades terroristas que desenvolvem.

Assim, centenas de mercenários do terror, responsáveis pelos mais bárbaros crimes - como Posada Carriles e Orlando Bosh, para citar apenas dois exemplos - vivem nos EUA, uns gozando de chorudas reformas, outros preparando-se para novas incursões terroristas.

Para lá foi ( e lá está) há uns meses um boliviano chamado Branco Marinkovic.
Filho de um nazi croata, formado na Universidade do Texas, e um dos maiores latifundiários da Bolívia, Marinkovic foi o criador de um grupo terrorista que actuava na região de Santa Cruz e, em meados de 2009, preparou uma acção visando assassinar o Presidente Evo Morales - acção que Marinkovic financiou com 200 mil dólares.
Esse grupo terrorista incorporava vários mercenários europeus (o irlandês Michael Dwyer; o húngaro Arpád Magyarosi) e era chefiado pelo mercenário croata, Eduardo Rózsa Flores.

O grupo terrorista foi desmantelado pelas forças revolucionárias bolivianas e os terroristas que lograram fugir, refugiaram-se... na casa paterna.
E lá estão.
No porto de abrigo seguro e certo.
Na pátria do terrorismo.
Nos Estados Unidos da América.


Registe-se que todos estes facínoras estavam também ligados a organizações nazis muito activas:
Marinkovic liderava a FULIDE, organização que, nas suas manifestações fazia questão de exibir cruzes suásticas, e que estava ligada à Fundação Friedrich Naumann (alemã) - esta, por sua vez, estreitamente ligada ao Departamento de Estado norte-americano.
Por seu lado, um dos assessores principais de Eduardo Rózsa Flores - Jorge Mones Ruiz, é dirigente da UnoAmérica, fundação nazi ligada à CIA.
Registe-se ainda que estas organizações nazis tiveram presença activa nas Honduras ao lado dos golpistas de Micheletti.

Tudo isto a confirmar o acerto do poeta que um dia escreveu que «isto anda tudo ligado»...