CARTEIRISTAS

Diz o Diário Notícias que «há mil carteiristas identificados pela polícia só em Lisboa» - o que faz da Capital a «capital dos carteiristas»...
Na sua maioria são portugueses, mas já há mais de duas centenas de profissionais oriundos dos países de Leste e do Brasil.

É uma profissão bem paga - «roubar carteiras pode render mil euros num dia» - e com pouco risco - «não costuma dar cadeia».

Actuam em zonas específicas, respeitando cada um a área de intervenção dos outros colegas de profissão.
Fazem intervalos para almoçar e para conviver, sendo a Praça da Figueira um dos pontos de encontro preferidos para as horas de lazer.

No Verão, quando a cidade fica quase deserta, rumam a lugares mais concorridos: Algarve, Sul de Espanha e Fátima - neste caso para uma breve aparição no dia 13 de Agosto...



Posto isto, aqui fica o tradicional (e pelos vistos inócuo) aviso: cuidado com as carteiras!
E com os carteiristas.
Todos, mas especialmente os que não se assumem e que, designando-se por «governantes», todos os dias nos roubam nos salários, nas pensões e reformas, nos subsídios, na saúde, na educação...

POEMA

SALA DE CONCERTOS


LIII


(«Concerto nº 4» de Paganini: Espectáculo em que a peça principal foi a «música concreta» das palmas.)


O arco
do violinista
apareceu de súbito enfeitado
com fitas, bandeirinhas, cores de música,
laços, harmónicas, faúlhas...

E entre foguetes de pizzicatos
e apoteoses de faíscas
romperam dos subterrâneos da rabeca,
enroladas em serpentinas
de carnaval,
pombas com caudas em leque
e aplausos nos bicos
misturados com suor e cabelos
do acorde perfeito
final.

(Bravo! Bravo! Bis!)


José Gomes Ferreira

O SALÁRIO DO CRIME

Venho falar-vos, uma vez mais, da fortuna de Blair - mais precisamente, da fortuna obtida por Blair desde que deixou de ser primeiro-ministro da Grã- Bretanha.

A verdade é que, em consequência da podridão que foi a sua vida enquanto primeiro-ministro, o homem está podre de rico - o que, certamente, o leva a concluir, não apenas que o crime compensa, mas também que quanto mais massivo, mais violento, mais brutal, mais desumano for o crime cometido, maiores serão os proventos financeiros...
Com efeito, a co-responsabilidade de Blair no assassinato de centenas de milhares de pessoas inocentes fez dele um homem cheio de dinheiro.

E agora não sabe o que há-de fazer aos milhões e milhões de euros pagos por matar: gasta milhões e milhões e restam-lhe sempre milhões e milhões...
Por exemplo: o seu património imobiliário - avaliado em 18 milhões de euros - vai agora ser consideravelmente reforçado com a compra de uma mansão na ilha de Barbados, «para passar férias com a família» - e com a compra de uma casa para a filha, uma jovem estudante de 22 anos, por 1,2 milhões de euros.

Estas compras, dizem os «observadores», «relançam o debate sobre quanto dinheiro ganhou Blair desde que deixou de ser primeiro-ministro».
Sendo certo que «só em conferências ganhou uns 25 milhões de euros», não será menos certo que essa é apenas uma pequena fatia da recompensa total pelos crimes cometidos.
E as contas são fáceis de fazer: centenas de milhares de pessoas assassinadas?: centenas de milhões de euros de recompensa.

Já aqui sublinhei várias vezes que a profissão de ex-governante é, no mundo actual, uma das mais rentáveis.
Se esse ex-governante é, como no caso de Blair, um sanguinário criminoso de guerra, os proventos sobem na proporção directa da sangueira provocada.
É assim o salário do crime.

POEMA

SALA DE CONCERTOS


XLVI


(Stockausen. Música electrónica. Viagem espacial.)


Em cada homem
há uma viagem para um planeta longínquo...

(Para os pobres é a Terra.)


José Gomes Ferreira

POR ISSO

A forma como a Festa do Avante! é tratada pelos média dominantes é talvez o exemplo mais flagrante do silenciamento a que esses média submetem toda a actividade do PCP - uma actividade que, recorde-se, é maior do que a soma das actividades de todos os restantes partidos...


A Festa, sem dúvida a mais relevante iniciativa política, artística, cultural, de massas,convivial realizada no nosso País, é o resultado do trabalho voluntário de milhares e milhares de militantes e simpatizantes comunistas - o tal colectivo partidário que tantas azias provoca aos patrões dos desinformadores de serviço...



Por isso, a Festa é um «perigo» que há que sujeitar aos tratos de polé dos «critérios» em voga nos média do grande capital.

Por isso, a construção da Festa é silenciada.

Por isso, ao Programa da Festa, anunciado em conferências de imprensa, são concedidas - quando são... - meia dúzia de linhas.


... Por isso, não surpreenderá se, um dia destes, a Festa aparecer nas primeiras páginas dos jornais como a «grande notícia»do dia.
Por exemplo, uma notícia a informar que a tal Entidade das Contas - que parece existir tendo como objectivo único acabar com a Festa do Avante! - considera que... os comunistas estão errados quando dizem que o lucro da Festa é a diferença entre as receitas e as despesas... ora, a Entidade é que sabe e como a Entidade diz é que é: o lucro da Festa é a soma de todas as receitas...


E é por tudo isso que - como no próximo fim-de-semana confirmaremos - NÃO HÁ FESTA COMO ESTA.

POEMA

SALA DE CONCERTOS


XLII


(Falla.)


Um anjo cigano
inventou um instrumento novo
- viola de sol e nevoeiro
com cordas de nervos de touro.

Para o tocar
é preciso
ouvir missa primeiro.


José Gomes Ferreira

POEMA

SALA DE CONCERTOS


XXXIII


(Lápide.)


Mozart morreu. E no meio da tempestade
de neve e abandono,
dois gatos-pingados
de rendas de luto
e vénias de minuete
lançaram o caixão
na vala comum,
a assobiar.

Todo o planeta
passou a ser a cova viva de Mozart.


José Gomes Ferreira

TUDO NOS CONFORMES

A turba canora que, sob os mais diversos pseudónimos - «comentador», «analista», «politólogo», «jornalista»... - propagandeia a política de direita, todos os dias, em todos os média dominantes, reagiu à candidatura comunista de Francisco Lopes nos moldes esperados.

Hoje, o DN, em meia dúzia de linhas, faz uma síntese rigorosa dos argumentos até agora utilizados pelos colegas de ofício na ofensiva contra o candidato do PCP.
Na sua rubrica «Elevador», o DN coloca Francisco Lopes a «descer».
E explica as razões - que são três, qual delas a mais poderosa:
1ª: é «um homem dos bastidores»;
2ª: tem «um discurso velho, ortodoxo»;
3ª: «e só fala no colectivo».

Devidamente traduzidas, dizem-nos estas razões que o candidato comunista, para estar a «subir», precisaria de:
1º: ter uma prática de defesa da política de direita - condição indispensável para atingir a ribalta medática;
2º: ter um discurso de defesa da política de direita -condição indispensável para que o dito discurso seja considerado «novo»; mais do que isso: «moderno».
3º: nunca esquecer que «colectivo» há só um: o do grande capital e mais nenhum - condição indispensável para uma noção de «colectivo» integrada na defesa da política de direita.


Ora, a candidatura de Francisco Lopes apresenta-se inequivocamente integrada na luta contra a política de direita;
o discurso de Francisco Lopes fala de um novo rumo para Portugal, «assente numa política patriótica e de esquerda, vinculada aos valores de Abril, capaz de realizar os direitos e as aspirações dos trabalhadores e do povo, de assegurar o desenvolvimento económico e o progresso social e afirmar a identidade cultural, a soberania e a independência nacionais»;
e o «colectivo» referido por Francisco Lopes é (utilizando as palavras de Álvaro Cunhal) «o nosso grande colectivo partidário».

Assim sendo, está tudo nos conformes:
os média do grande capital dizem o que lhes compete dizer sobre a candidatura comunista;
a candidatura comunista dará mais força à luta contra a política de direita, até a derrotar e substituir por uma política de esquerda - e «tendo sempre no horizonte o socialismo».

POEMA

SALA DE CONCERTOS


XXX


(«Requiem» de Mozart.)


Ímpeto de rasgar o tecto com as mãos
para gritarmos aos astros,
cá de baixo das labaredas do nosso poste:

«O mistério somos nós.

Fomos nós, os homens,
que criámos a morte.»


José Gomes Ferreira

UMA NOTÍCIA DIFERENTE

Das vidas dos jogadores de futebol muito nos é dito, sendo certo que Ronaldo - com os seus ganhos, os seus gastos, os seus automóveis, os seus relógios, as suas casas, as suas namoradas, a sua mãe, a sua irmã, o seu filho, os seus amuos... - é, de todos, o mais falado.
Acontece que, de vez em quando - muito de vez em quando - surge uma notícia diferente, em que a tradicional coscuvilhice é substituída por algo que vale a pena saber.
É o caso da notícia divulgada pelo Público (a pretexto do recente jogo entre o Sevilha e o Braga) sobre Frédéric Oumar Kanouté, o franco-malinês jogador do Sevilha.

Ali ficamos a saber que Kanouté é um homem que pensa e que, agindo de acordo com a sua consciência, diz o que pensa.
Para ele, «não ser indiferente ao que se passa no mundo é uma obrigação moral».
Assim, o jornal recorda que, há uns tempos atrás, Kanouté festejou a marcação de um golo mostrando uma t-shirt com a palavra «Palestina» - em solidariedade com o povo palestino e denunciando os crimes cometidos pelo governo israelita.

Pelo seu acto solidário, o jogador foi castigado com o imediato cartão amarelo acrescido de uma multa - «por ter veículado uma mensagem política durante um jogo de futebol» - dizia a acusação...
Pois...

Pronunciando-se sobre o que fez e sobre os castigos de que foi alvo, Kanouté afirmou:
«Se recuasse no tempo faria tudo igual. Continuarei a apontar o dedo a todos aqueles que continuam a matar na Palestina. Não posso pactuar com uma injustiça tão grande».


Que marque muitos golos é o que lhe desejo.
E que não desista de «apontar o dedo» - ou a t-shirt ... - a todos os criminosos.

POEMA

SALA DE CONCERTOS


XIV


(«Tristão e Isolda no Teatro de S. Carlos. Vejo mal o palco, por causa da coroa. Maldita Coroa Real! Vontade de derrubá-la e esmagar alguns parvos da plateia. Atrás de mim o escultor Dias Coelho, mais tarde assassinado pela PIDE, ao lado de uma rapariga.)


Atrás de mim na Geral
dois jovens efémeros da mãos dadas,
Filtros de Suor na pele ardente,
aproveitam esta melodia
para fingir que se amam
na mentira de se amarem eternamente...

Enquanto eu continuo na minha ilusão com musgo
de amar ninguém em toda a gente.


José Gomes Ferreira

HONDURAS: O FASCISMO

Nas Honduras, os fascistas - no poder graças ao apoio do Governo de Obama - prosseguem a sua acção criminosa.
Bastaria o que acima é dito para ficarmos com uma ideia aproximada da situação existente naquele país.
Ou seja: sabendo-se o que é o fascismo, as práticas brutais a que recorre, oe métodos terroristas que utiliza, não é difícil imaginar as consequências dessas práticas e desses métodos.
No entanto, todos os dias chegam notícias com exemplos concretos da repressão, da violência, da brutalidade que pesam sobre o martirizado povo hondurenho.

Notícias que os média dominantes ocultam, como lhes compete - e como os seus «critérios informativos» impõem: na verdade, se esses média informassem sobre a repressão, a brutalidade, os crimes cometidos, como é que poderiam continuar a «informar» sobre a «democracia» exemplar existente naquele país?...


Eis a mais recente notícia chegada das Honduras:
Berta Oliva, presidente do Comité de Familiares de Detidos e Desaparecidos, acaba de anunciar a descoberta de uma vala comum com mais de 100 cadáveres de pessoas assassinadas nos últimos três meses.


Entretanto, a luta do povo hondurenho pela liberdade e pela democracia continua.
E continuará.
Até que os fascistas locais e os seus chefes superiores instalados na Casa Branca sejam definitivamente escorraçados das Honduras - o que acontecerá, mais tarde ou mais cedo.

POEMA

SALA DE CONCERTOS


X


(Primeiro intervalo no Teatro de S. Carlos. Sorrimos uns para os outros. «Então como está?» «Há muito que não o via!»... Musgo. Teias de aranha nos ouvidos. Fascismo de «smoking». Passo pelos corredores escondido atrás de mim mesmo.)


Disseram-lhes
que estavam vivos
por disciplina de cemitério.

E todos acreditaram
já com os pés em ângulos rectos.

Mas vivos que são?
Mortos incompletos.


José Gomes Ferreira

NO CAMINHO DE ABRIL

Já havia quatro candidatos: três anunciados (Manuel Alegre, Fernando Nobre e Defensor de Moura) e um por anunciar (Cavaco Silva).
No entanto, nenhum dos quatro se posiciona como opositor da política de direita - essa política que há 34 anos vem devastando Portugal e os portugueses; flagelando as condições de trabalho e de vida dos trabalhadores e do povo; destruindo Abril, as suas conquistas históricas, a sua democracia avançada, a sua Constituição; entregando a soberania e a independência de Portugal nas garras do grande capital internacional.

Assim sendo, que esperar destes candidatos?
De Cavaco - que durante dez anos, enquanto primeiro-ministro, foi um implacável executor dessa política e enquanto PR foi um seu fidelíssimo apoiante - o que há a esperar é mais do mesmo.

De Alegre - que durante mais de três décadas, enquanto deputado e dirigente do PS, disse que sim ao essencial dessa política e que, enquanto candidato, é apoiado pelo partido que, no Governo, aplica implacavelmente essa política - o que há que esperar é mais do mesmo.

É claro que há diferenças entre estes dois candidatos: Cavaco não é Alegre e Alegre não é Cavaco...
O que quero dizer é que, no que respeita à questão essencial e que tem que ocupar o centro do debate destas eleições presidenciais - a política praticada há 34 anos por sucessivos governos PS/PSD/CDS-PP - as diferenças são mínimas, irrelevantes, insignificantes.

É deste cenário «mais do mesmo» que emerge, frotalmente contra o «mais do mesmo» e por um novo rumo para Portugal, a candidatura do PCP, protagonizada por Francisco Lopes, membro do Secretariado e da Comissão Política do Comité Central do PCP.

Trata-se de uma candidatura que, sem rodeios nem ambiguidades de qualquer espécie, diz ao que vem e o que quer: uma candidatura que se afirma inequivocamente contra a política de direita e que integra e se insere na luta das massas populares; que defende uma política patriótica e de esquerda vinculada aos valores de Abril, aos direitos e aspirações dos trabalhadores e do povo, ao desenvolvimento e progresso social, à nossa identidade cultural, à nossa independência e soberania.

Trata-se da candidatura que faltava: de esquerda e ao serviço dos valores da esquerda.
Ou seja: uma candidatura que visa dar um contributo para a derrota da política de direita e a conquista de uma política de esquerda - no caminho de Abril.

POEMA

SALA DE CONCERTOS


IX


(Visão de Mahler. Improviso durante a audição na Rádio da Primeira Sinfonia. Sim, Abelaira: gosto muito do Mahler - que me soa às vezes como uma espécie de Schubert trágico.)


Marcha fúnebre
com os vivos todos em caixões
e o cadáver atrás, a pé, sozinho,
ao som da filarmónica
que marca o passo a fingir vida
na poeira morta
do caminho.

Filarmónica transcendente
que afinal
só toca a valsa banal
da morte nua de toda a gente.


José Gomes Ferreira

OFERTA AO SR. MINISTRO

O ministro da Defesa - o inimitável Santos Silva - acaba de proceder a uma das mais bizarras representações alguma vez protagonizadas por qualquer governante de qualquer país do Planeta: disse ele que o Governo português vai «enviar espiões militares para o Afeganistão e para o Líbano».

Podia tratar-se de uma daquelas estórias que se contam no Dia das Mentiras.
Mas não: o ministro Santos Silva informou mesmo.
E teve a preocupação de o fazer em entrevista a um jornal - certamente para garantir que a informação chegue a todo o mundo, inclusive aos países onde os anunciados espiões vão exercer a anunciada espionagem...

Falta agora que o ministro, em nova entrevista ou através de um comunicado, complete a informação, divulgando currículos e outros dados importantes sobre os espiões que vai enviar.

Aqui fica, como oferta minha ao ministro Santos Silva, a sugestão sobre o tipo de informação a divulgar:
Fulano de tal, de X anos de idade, natural de..., morador em..., de profissão espião, chegará ao aeroporto de tal, no Afeganistão (ou no Líbano), no dia tal, às tantas horas, no voo nº Y da companhia de aviação Z.

POEMA

SALA DE CONCERTOS


II


(«Sonata a Kreutzer» tocada por Menuhin, no Tivoli.)


Que crime confessa Beethoven
nesta sonata?

Matou talvez em sonhos
a Sempre-Apetecida
com mãos de quem não mata.

E agora confessa o crime
- farto do amor eternamente sublime.

(Beethoven:
ai de quem não ama
como quem morre
- na cama.)


José Gomes Ferreira

O PRECONCEITO

A pretexto da aproximação da data do seu 90º aniversário natalício, Nadir Afonso - nome grande da pintura portuguesa - foi entrevistado por João Céu e Silva, para o Diário de Notícias.

Para além de grande pintor, Nadir Afonso é um personagem excêntrico até dizer chega e com um complexo de superioridade que o faz apresentar-se, entre outras coisas, como o supra-sumo do saber universal em matéria de arte e estética (e não só) - imagem que perpassa por toda a entrevista, repetidamente, exaustivamente, até ao incómodo...

A dada altura, na sequência de uma desenfreada manifestação de saber por parte do entrevistado (no desenvolvimento da ideia, que é a dele, de que aquilo que há de perpétuo e imutável na obra de arte são as suas raizes matemáticas), o entrevistador perguntou-lhe se leu «o Estudo de Álvaro Cunhal, A Arte, o Artista e a Sociedade».
Responde Nadir Afonso: «Não li, mas posso acrescentar que para ele os bons pintores eram os do seu partido»...

O homem podia ter dito apenas a verdade, só a verdade e nada mais do que a verdade: «Não li» - e ninguém lhe levaria a mal por isso.
Todavia, optando por pronunciar-se sobre o que não leu, e deixando-se levar pelo preconceito estúpido, fez figura de... fez má figura, pronto...

Não deixa de ser interessante, no entanto, que com a sua afirmação preconceituosa, Nadir Afonso «recrutou» para militantes do PCP figuras como Giotto, Da Vinci, Miguel Ângelo, Tintoretto, Rubens, Mantegna, Hoblein, Murillo, Goya, Miró, Velásquez, Rembrandt, Chagall... - isto para citar (de memória) apenas alguns dos artistas que, porque apreciados por Álvaro Cunhal, terão que ser, segundo Nadir Afonso, «do seu partido»...

Procurei - e encontrei - uma afirmação de Nadir Afonso, proferida há tempos numa outra entrevista:
«Sou uma competência em arte, mas sou um analfabeto, um atrasado mental em muitas disciplinas»...
Admita-se-lhe a «competência» e perdoe-se-lhe o resto...

POEMA

CINZAS


XXVI


(Derrocada.)


Vale-me, orgulho,
ou lá o que és
deste chão peninsular
- e ata-me aos pés
o pedregulho
dos cadáveres hirtos lançados ao mar.

Vem com mãos de metal
endireitar-me a espinha
e ordena que se cale
esta voz a chorar dentro da minha.

Ergue-me da lama onde o céu atola
os corações dos sapos caídos da lua
e leva-me pela gola
de rua em rua.

Abre
na súplica deste meu olhar de desprezo
um clarão de desafio de sabre
ao mundo em peso.

E dá depois um destino de asas pretas
à sombra dos meus passos
- cabeça erguida, a atirar planetas
para os espaços.

Eu, o poeta militante,
que por ódio à dor que se mascara
desci do meu mirante
e vim para a rua de lágrimas na cara.

Não lágrimas de mãos postas
ao luar gemebundo
(a fingir que trago às costas
a dor do mundo)...

...Mas estas - vede -
lágrimas de cicatriz
que correm no sangue da sede
dos homens viris.

Lágrimas que só ostento
para as guardar secretas
(o eterno tormento
de todos os poetas).

Ah! mas que nenhum Sonho, nenhuma Voz me embale
- nem a tua, orgulho, que possuis
a limpidez de um punhal
em mãos azuis.

Não me tragas penugens de regaços
quando me deito,
nem me leves nos braços
para outro leito.

Não me persuadas
de que há nos meus versos palavras de magia
que vão à frente, de lâmpadas atadas,
a iluminarem a morte que nos guia.

Nem me iludas de que posso transformar a Terra
e arrancar os mortos das mortalhas
com os meus versos de tremor de terra
- afinal pássaros de nuvens a cantar nas muralhas.

Não, orgulho. Dá-me apenas esta lâmina de olhos nus
com lágrimas por dentro a rasgarem a realidade
-para poderem ver bem o fel, o suor, o pus
e a solidão da Verdade.


José Gomes Ferreira

«LIBERDADE DE INFORMAÇÃO»

A repressão fascista nas Honduras prossegue todos os dias - com perseguições, prisões, ameaças, assassinatos - no meio de um espesso manto de silêncio por parte dos média dominantes à escala mundial.
Com a noção clara de que não tem condições para romper esse manto de silêncio, o Cravo de Abril não desistirá, apesar disso, de, modestamente, prosseguir na denúncia dos crimes cometidos pelos fascistas das Honduras, apoiados incondicionalmente pelo governo de Obama.

A mais recente vítima mortal (conhecida) das forças repressivas foi Teresa de Jesús Flores Elvir, de 52 anos, dirigente da União dos Trabalhadores do Campo, cujo corpo foi encontrado, sem vida e apresentando evidentes sinais de tortura, próximo da cidade de Siguatepeque, no Centro do País.

A repressão, incidindo essencialmente sobre membros da Frente Popular de Resistência, faz-se sentir igualmente de forma brutal sobre os trabalhadores em luta por melhores condições de trabalho e de vida: pelo menos cinco jovens foram abatidos a tiro no decorrer de manifestações populares e mais de três mil pessoas foram detidas e interrogadas.
Não obstante a brutal repressão, os trabalhadores hondurenhos preparam uma greve geral - por melhores salários e contra a nova Lei do Trabalho Temporário.

Tudo isto - insisto - é silenciado pela comunicação social dominante, para a qual as Honduras só existem em «notícias» sobre pretensos «êxitos» do governo fascista - que apelidam de «democrata»... porque, dizem, «foi eleito democraticamente»...
Nem mesmo a violenta repressão sobre os trabalhadores dos órgãos de comunicação social hondurenhos consegue despertar nos seus colegas, por esse mundo fora - os portugueses incluídos, é claro - o mínimo sinal de solidariedade.
E no entanto eles têm sido, desde o golpe militar - e continuam a ser, mais de um ano depois do golpe - um dos alvos preferenciais dos fascistas.
Recorde-se que, só este ano, foram assassinados nas Honduras nove jornalistas.

Mas nada disso é «notícia»...
Aos média dominantes nacionais e internacionais, que - nunca é demais lembrar - são propriedade do grande capital, não lhes chega o espaço e o tempo para proclamar o seu indefectível apego à sacrossanta «liberdade de informação»...

POEMA

CINZAS


XXIV


(Soeiro Pereira Gomes, tão altivo e humano, que combatia na clandestinidade contra o fascismo, morreu de um cancro. Sinto vergonha de existir.)


Hoje até remorsos tenho
dos meus pobres versos a fingirem de subversivos
que os mortos do rebanho
lêem com o arreganho
de se julgarem vivos.

(No fundo, evasão
para futuros sem chão.)


José Gomes Ferreira

ERA LINDA, A MINHA PROFESSORA

Há que dizer das memórias o que dizemos das conversas: que são como as cerejas: pegamos numa, e outra e outra se lhe juntam numa por vezes ininterrupta sucessão...
Foi assim que, depois de escrever o post de ontem, a memória da minha velha professora insistiu em ficar - e ficou.
Certamente porque o que aqui deixei escrito sobre ela não apenas estava longe, muito longe, de corresponder ao que ela foi, mas poderia, até, prestar-se a injustíssimas confusões...

Lembrei-me das cartas que trocavamos quando, após ter terminado a instrução primária, vim para Lisboa; das longas conversas que tínhamos sempre que eu me deslocava à aldeia. (conversas em que, a dada altura, eu lhe ensinava o que, entretanto, fora aprendendo: que os comunistas não comiam criancinhas...; que Salazar fora um aliado dos franquistas e dos nazis, etc, etc...)

Depois, a PIDE caçou-me.
A boa Senhora fez todos os esforços para me visitar na prisão, escrevendo a todas as pessoas que ela pensava que poderiam autorizar uma visita...
Naturalmente, não conseguiu autorização.
Então, passou a escrever-me: cartas que, obviamente, nunca me foram entregues...

Entretanto, mandava-me através da minha família aqueles mimos que é uso darmos às pessoas de quem muito gostamos: chocolates, bolos, queijos, paios... cigarros...
E livros! - a prenda de aniversário, todos os anos, e cuja escolha obedecia, obviamente, a um determinado critério que, com o tempo, foi evoluindo.
Foi assim que começou por me oferecer o «Rob Roy», de Walter Scott, a que se seguiu, do mesmo autor, o «Ivanhoe»...
Depois, ao terceiro ano, algo a levou a oferecer-me um livro de poemas: «Obras Poéticas», de Manuel Bandeira e, no ano seguinte, surpreendentemente (ou talvez não...) «A Cabana do Pai Tomás», de Harriet Beecher Stowe (?)...
O penúltimo livro foi «Chiquinho», de Baltazar Lopes e o último «O Diário», de Anne Franck...
Guardo-os ainda hoje, todos, com as suas lindas dedicatórias, cheias de amizade, de carinho, de ternura.


Quando saí da prisão, uma das minhas primeiras visitas foi para ela: reformada, morava, então, em Évora, e lá passei um fim-de-semana. Conversámos sobre tudo, em longas conversas que apenas eram interrompidas para ela fazer as suas orações, que não dispensava...
E, ao longo dos anos, fomo-nos encontrando.

E quando, na sequência dos acontecimentos que levaram ao fim da União Soviética, os jornais e televisões levavam por diante uma feroz, raivosa e ameaçadora campanha anti-comunista, ela deslocou-se a Lisboa, de propósito... e ofereceu-me a sua casa para eu me refugiar, se fosse necessário...

Era linda, a minha professora.

POEMA

RUAS DESERTAS


XVII


Vou a cantar! Vou a cantar!

...mas cada vez mais próximo da Esquina
onde está talvez à minha espera...
a Garra.

Saída do outro lado do Ar...
a Garra.
Pendida da pele da sombra...
a Garra.
Implacável no silêncio curvo...
a Garra.

Mas talvez não seja ainda naquela Esquina.
Talvez só na outra mais adiante
onde se vê uma ave a esvoaçar
na somba do muro...

(O melhor é cantar! O melhor é cantar!)


José Gomes Ferreira

DUAS DIFERENÇAS

«Tarrafal - Memórias do "paraíso"» é o título do magnífico post há dias publicado pelo Cantigueiro - que hoje faz três anos de idade e merece festa rija - e no qual é feita referência a um recém-publicado livro sobre o Campo de Concentração do Tarrafal - livro que parece ser mais uma peça da poderosa operação de branqueamento do fascismo que um bem equipado exército de estoriadores está a levar a cabo.

A leitura desse texto do Samuel, trouxe-me à memória - vejam bem! - a minha professora da instrução primária - uma excelente Senhora, fervorosa católica (em casa de quem travei conhecimento com a Sagrada Família), cheia de bondade, com um coração do tamanho do mundo.
Para além das muitas coisas úteis que me ensinou - e aos meus colegas - ela, talvez por dever de ofício naquele tempo longínquo em que as fotografias de Salazar e de Carmona nos olhavam, severas, da parede da sala de aulas, ensinava-nos também que os comunistas comiam criancinhas e matavam os velhinhos com uma injecção atrás da orelha...
E ensináva-nos, sobretudo, que devíamos estar gratos a Salazar - «Um Santo!» - por nos livrar dos males do comunismo e dos males da guerra.

Passava-se isto uns anos após o fim da II Guerra Mundial, guerra da qual, garantia-nos a excelente Senhora, Salazar tinha livrado Portugal e os portugueses, mantendo-se neutral, em fidelidade à velha aliança com a Inglaterra.
(registe-se que essa era a versão geral que corria, difundida pelos propagandistas de então do regime fascista - que, como se sabe, foram os primeiros branqueadores de serviço...)

Entretanto, o tempo foi passando e a «tese» da «neutralidade» de Portugal na II Guerra Mundial foi caindo no esquecimento.
Eis senão quando, um estoriador actual a retoma.

Sobre o assunto, ouçamos o que nos diz Álvaro Cunhal, no seu notável trabalho «A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril (A contra-revolução confessa-se», no sub-capitulo 5, intitulado «Uma "tese" fantasista»:

«Utilizada na operação de "branqueamento" da ditadura, aparece uma nova tese a fazer furor. É seu autor Fernando Rosas, um dos historiadores que sustenta que Salazar, na sua política externa e nas suas alianças internacionais no tempo da Segunda Guerra Mundial, não teria estado ao lado da Alemanha de Hitler e da Itália de Mussolini, mas sim ligado à velha aliança com a Inglaterra (...) A política de "neutralidade" de Salazar, desde o início da guerra, teria tido como objectivo "a sua sobrevivência no fim do conflito e no pós-guerra" e "garantir os grandes objectivos estratégicos" da "inalterada fidelidade à aliança britânica" (...) a determinante da política externa de Salazar, durante a Segunda Guerra Mundia, não foi a simpatia, o apoio, o desejo de uma vitória alemã, mas a "fidelidade à aliança inglesa"».

Vejam, então, o que são as coisas: dezenas de anos passados, Fernando Rosas vem repetir a lição da minha velha professora da instrução primária.

Com duas diferenças:
1 - ela não era historiadora nem estoriadora, como o Fernando Rosas é; e
2 - ela era uma excelente pessoa.

POEMA

RUAS DESERTAS


IX


(E o vento trouxe este coro de presos do Aljube)


«Ouve, Noite:
só nós, os que não acreditamos no céu,
tivemos a coragem de gritar a esta carcaça a fingir de vida: NÃO!

Nós, sem morte nem mundo,
para aqui a apodrecer nas tumbas do sol secreto
e a sonhar com um céu para os outros na Terra
que só o ódio vê.

E é esta a nossa guerra.
E é esta a nossa fé.»


José Gomes Ferreira

ENFIM, É A CRISE...

Vá lá a gente entender estas coisas: entidades altamente responsáveis - designadamente o ministro da Agricultura - dizem que não há qualquer razão para que o preço do pão aumente.
Entretanto, o preço do pão não só já aumentou como vai aumentar mais - e «bastante», diz quem sabe...
Enfim, é a «crise».

Trata-se, então, de um aumento «sem razão» - e há-de ser brutalmente reconfortante, para os que já começaram a pagar o primeiro aumento e estão condenados a ter que pagar o segundo, saber que «não há qualquer razão» para esse aumento...
Imagine-se o que seria se houvesse «razão» para o aumento!...
Enfim, é a «crise».

Mas há mais: informam os jornais que, a partir de Setembro, «comer num restaurante, tomar o pequeno almoço numa pastelaria ou simplesmente beber uma bica no café da esquina, vai passar a ser mais caro».
E diz quem sabe que até «os copos de água podem deixar de ser de graça».
Enfim, é a «crise».


Aumentos com «razão»? Sem «razão»?
Para o caso tanto faz: com «razão» ou sem ela, diz a «crise», há que pagar.
E com «razão» ou sem ela, tudo aumenta - excepto, claro, os salários de quem trabalha e vive do seu trabalho, mas também nesse caso é a «razão» a mandar: não aumentam os salários mas, em compensação, aumentam os lucros do grande patronato, uma coisa dá para a outra, não sei se estão a ver a «razão» da coisa, isto é da «crise»...

Enfim. é a «crise» - que, como o primeiro-ministro não se cansa de nos ensinar, «toca a todos»...

POEMA

CAFÉ


LIX



(Estamos sozinhos no Universo.)


Todas as noites toca um telefone na Lua.

Sou eu, sou eu a marcar o número automático dos poetas de hoje
para gritar cá de baixo em código de astros:

Está lá? Está lá? Aqui Terra, zero, zero, zero, zero, zero.
S.O.S.! Fome, ódio de mil patas, tiranos com cutelos de cinzas,
mortos que só vêem o céu através dos caminhos das raízes
- e as mães a baterem nos filhos
para lhes ensinarem a instrução primária das lágrimas.
Aqui escravos, preguiça, azorragues de chumbo derretido,
exportação de tédio dos palácios dos ricos, carregamentos de bocejos,
suor em latas para discursos de demagogos,
mordaças com restos de bocas de cadáveres,
fúria de túmulos, guerra, raptos, incestos, automóveis imbecis,
saques, mandíbulas nos olhos a roerem o azul
- e os dedos de súbito de ferro-em-brasa nos seios das mulheres,
lodo de sol aparente
que continuam a ser deusas nos jantares de cerimónia
com os colos luzidios das horas empertigadas.
Aqui planeta zero, zero, zero, nada, torres de musgo,
punhais a rasgarem noites em vez de chagas,
países de arame farpado, vulcões de sangue,
batalhas trespassadas do frio dos esqueletos concretos
- e ainda por cima a carne das mulheres só é real um momento,
um momento apenas
e em vão tentamos fixá-la com um sopro de frio
no rasto deste defunto com um caixão às costas
cheio de corações vivos.

S.O.S! S.O.S.!

Fantasmas de todos os planetas! Fantasmas de todos os planetas!
Saltai em pára-quedas no silêncio que há por dentro do silêncio
e vinde salvar-nos!

Vinde salvar os homens
para aqui abandonados ao pesadelo de si mesmos,
só a serem homens,
homens apenas,
homens sempre,
de manhã até à noite,
semi-homens,
infra-homens,
super-homens,
ex-homens...
E fartos, fartos, fartos, fartos, fartos, fartos
desta desistência
de já nem quererem ser deuses!

Nem de transfomarem os cavalos em relâmpagos!


José Gomes Ferreira

O SILÊNCIO É DE OURO

Ainda em relação ao «caso Freeport» - que, como sabemos, está praticamente arrumado... - surgiram agora (Correio da Manhã de hoje) alguns dados curiosos ligados às contas bancárias de alguns dos «intervenientes no processo».
Trata-se de coisa insignificante (que certamente será bem resolvida um dia destes) e que se resume a uma diferençazinha detectada entre os rendimentos declarados desses «intervenientes» e os depósitos que os mesmos «intervenientes» fizeram nas suas contas bancárias.
Temos assim que, por exemplo:

Charles Smith (dono da Smith & Pedro)
Declarou de rendimentos 179 980 euros - depositou no banco 1 837 097 euros.

Manuel Pedro (dono da Smith & Pedro)
Declarou 307 246 euros - depositou 1 600 086 euros.

Júlio Monteiro (tio de José Sócrates)
Declarou 62 162 euros - depositou 1 339 190 euros.

José Manuel Marques (ex-responsável do Instituto de Conservação da Natureza)
Declarou 240 885 euros - depositou 635 710 euros.

Carlos Guerra (ex-responsável do Instituto de Conservação da Natureza)
Declarou 298 212 euros - depositou 726 145 euros.

José Dias Inocêncio (ex-assessor da Câmara Municipal de Alcochete)
Declarou 236 786 euros - depositou 595 372 euros.


Como se vê, as diferenças entre o declarado e o depositado são consideráveis - e susceptíveis de suscitar múltiplas conjecturas.
Mas atenção: nada de conclusões precipitadas: também nesta matéria não vai haver problema. Isto porque, ao que parece, todos os «intervenientes no processo» se recusam a esclarecer a proveniência dessas diferenças.
E, a acreditar na notícia (e eu acredito), fazem-no legalmente (digamos assim).
Como? É simples: invocando uma coisa chamada «direito ao silêncio» - coisa essa que, como se está mesmo a ver, permite aos «intervenientes» nada dizer sobre o assunto.

Assim se prova que o silêncio é de ouro...

POEMA

CAFÉ


LV


(Manhã de domingo. As igrejas enchem-se de esqueletos vestidos de medo.)


Doente de febres subtis
posso lá reduzir o Sonho do Maior Segredo
a esta burocracia de morte mole!

Não, não invejo esta gente
que ajoelha feliz
diante do Medo
com feições de sol.


José Gomes Ferreira

UM VÓMITO

Mário Soares não gostou do «reaparecimento público» de Fidel.
Porquê?: porque Soares não gosta de Fidel - e muito menos de o ver vivo...
Soares não gostou do discurso de Fidel.
Porquê?: porque Fidel «não disse nada de importante» - e Soares só gosta dos discursos que digam coisas importantes, como os do Obama e os dele próprio...

Para além disso, pergunta Soares, do alto das suas bochechas flácidas, «Em que qualidade falou? Como velho líder, há meio século, ou como proprietário de Cuba?» - e responde: «Não o disse. Porque realmente não disse nada».

Posto isto, Soares embala na espiral de provocações em que é exímio praticante, ao mesmo tempo que recorda «Fidel há cinquenta anos»; recorda a viagem que fez a Cuba, em 1964 e que o deixou «pessimamente impressionado» com aquele «comunismo à soviética, puro e duro».
E recorda que «muito mais tarde, bastante depois da normalização democrática portuguesa, que se seguiu ao delírio do PREC» - ou seja, depois de ele, Soares, ao serviço da CIA, ter encabeçado a contra-revolução que liquidou Abril e recolocou Portugal nas garras do imperialismo norte-americano - encontrou-se com Fidel «numa reunião da Comunidade Ibero-Americana», na qual também participou Cavaco Silva, então primeiro-ministro.
Diz Soares que, no decorrer da reunião, «Fidel queixou-se da falta de solidariedade para com Cuba, dos países presentes. E citou Portugal, cuja Revolução ele disse ter ajudado».
Ora, perante isto, a «coragem» do Soares não se fez esperar - como é sabido, Soares sempre foi muito «corajoso» no combate aos comunistas e não tão corajoso no combate aos fascistas (talvez por saber que os comunistas não lhe faziam mal e que os fascistas eram capazes de lhe mandar umas taponas ou até mais...).
«Coube-me responder-lhe», declama Soares.
E respondeu assim a Fidel: «O Senhor não ajudou a Revolução, ajudou o PCP, o que é diferente, porque quis fazer de Portugal uma Cuba europeia» - e acrescentou mais umas quantas provocações típicas de um agente da CIA em exercício.
Ora, perante tanta «coragem», Fidel ficou sem palavras... ainda tentou responder-lhe, «mas o Rei de Espanha resolveu interromper a sessão e convenceu Fidel a não responder...»
E pronto, a «coragem» de Soares venceu a «cobardia» de Fidel...

Criado para todo o serviço do capitalismo explorador e opressor, Soares é assim: uma criatura repelente, nojenta, execrável, abjecta - um vómito.

POEMA

CAFÉ


LIII


(Hoje vi no Campo Grande um autêntico rebanho de ovelhas. E outro de carneiros. E outro de homens: nós, os portugueses de mil novecentos e quarenta e tal.)


Olha as ovelhas como são!
Tão diferentes daquelas
verdes ovelhinhas
da minha imaginação
- sim, verdes da cor do limão -
que na infância de outros prados
vinham comer à mão
luas amarelas.

Estas não.
Parecem lama aos bocados
com lã de terra
- os estupores!
Talvez na Primavera
rebentem em balidos de flores.

(Enquanto eu apascento
lobos de vento...)


José Gomes Ferreira

SE ELES O DIZEM...

O Presidente da República decidiu interromper as férias para ir ver os fogos.
Antes, informou a comunicação social - e esta, como lhe competia, informou «os portugueses» da decisão presidencial.
Uma hora depois, o primeiro-ministro tomou igual decisão e fez chegar a notícia à mesma comunicação social, que a divulgou igualmente.

Com «os portugueses» informados da sacrificada interrupção de férias dos dois, lá foram, os dois, ver os fogos, ou seja, fizeram uma reunião com a Autoridade Nacional da Protecção Civil. Da reunião ambos saíram satisfeitos - mais do que satisfeitos: o Presidente saíu «bastante mais descansado» e o primeiro-ministro «bastante menos preocupado».
Porquê?: porque, disse o Presidente, «há uma maior eficácia» no combate aos fogos; e porque, disse o primeiro-ministro, «há um melhor grau de eficácia».

É certo que, dizem os factos, nas duas primeiras semanas de Agosto arderam 58 mil hectares, o que constitui mais do que a soma das áreas ardidas nos anos de 2007 e 2008.
Mas que importância tem isso?
Então não é verdade que, como diz o Presidente, «há uma maior eficácia»?
Então não é verdade que, como diz o primeiro-ministro, «há um melhor grau de eficácia»?

Ora, se eles o dizem...

POEMA

CAFÉ


XXXVIII


(A gente da mesa vizinha só fala em dinheiro, negócios de compra e venda... E, no entanto, temos de salvar o mundo, homens. Dar-lhe outro sentido.)


Tudo vendem e compram: sonhos, estátuas de sebo,
palácios para idílios de espectros,
sorrisos de crocodilo,
frio arrancado das lanças...

Só não percebo
porque não vendem luar a metro
e as estrelas a quilo
(para caixões de crianças).


José Gomes Ferreira

O EUROMILHÕES...

O Diário de Notícias tem um fraquinho pelo Bloco de Esquerda.
Não sendo um caso raro no panorama dos média dominantes em Portugal - os quais, sabe-se bem porquê, tratam o BE com carinhos maternais - a verdade é que o DN dá cartas na matéria, muitas vezes mais parecendo ser órgão oficioso daquele partido.

Todos os dias - todos! - o DN tem algo para dizer aos seus leitores sobre o BE. E o que diz é sempre altamente elogiativo - inclusive quando compara a actividade dos diferentes partidos, como aqui mostrei no comentário à peça em que o DN, falando das «rentrées», e iludindo a realidade, apresentava o BE como campeão absoluto da actividade partidária.

Na sua edição de hoje, o DN dedica 4-páginas-4 do seu precioso espaço a uma entrevista com Francisco Louçã.
Curiosamente, o entrevistador - João Céu e Silva - começa por informar os leitores que o entrevistado «foi contrariado até ao fim» nas suas investidas para, no decorrer da entrevista, fazer «propaganda» partidária...
Mas isso é o entrevistador a falar... já que, lendo a entrevista, o que se nos depara é que ele, entrevistador, não só aceita a propaganda feita como boa, mas estimula-a activamente através de perguntas feitas com a conta, o peso e a medida necessários para propagandear o BE através da propaganda ao seu líder...

E é com esse mesmo objectivo de oferecer aos leitores informação sobre o entrevistado que o entrevistador, depois de traçar o habitual «perfil» elogiativo do entrevistado, produz este vibrante e dinâmico pedaço de prosa (sublinhados meus):
«Antes de partir para férias, Francisco Louçã aceitou dar uma entrevista a poucas horas de mais um comício da "digressão" partidária algarvia do Bloco de Esquerda. Mal acabou a conversa, foi enfiado numa carrinha e ala para o convívio de cidadãos de esquerda que o esperava a poucos quilómetros. De madrugada, embarcaria num avião para iniciar um período de férias. Fica a promessa de regresso para fazer a vida difícil ao Governo e ao recém-eleito líder do PSD, Pedro Passos Coelho. E um apoio declarado ao socialista Manuel Alegre como ponte para a esquerda.»...

Escreve João Céu e Silva que Louçã, «não se queixou» por ter sido «contrariado até ao fim» da entrevista nas suas investidas para fazer «propaganda» partidária...
Pudera!: com esta propaganda feita pelo entrevistador que necessidade tinha o entrevistado de se auto-propagandear e ao seu partido?

Ainda na edição de hoje do DN:
uma entrevista de página inteira ao eurodeputado do BE, Rui Tavares;
1/4 de página com uma «intervenção» de um «deputado do BE»;
uma notícia sobre uma «exigência» do «BE da Madeira»;
uma notícia sobre a «posição do BE» acerca «do fecho dos SAP das Misericórdias»...

Não há dúvida: o DN é o euromilhões do BE...

POEMA

CAFÉ


XXXV


(Pastoral escrita de propósito para uma canção de protesto
de Fernando Lopes-Graça que mantém, inflexível, um coro
de canções populares e revolucionárias.)


Ó pastor que choras,
o teu rebanho onde está?
- Deita as mágoas fora,
carneiros é o que mais há.

Uns de finos modos,
outros vis por desprazer...
Mas carneiros todos
com carne de obedecer.

Quem te pôs na orelha
essas cerejas, pastor?
São de cor vermelha,
vai pintá-las de outra cor.

Vai pintar os frutos,
as amoras, os rosais...
Vai pintar de luto
as papoilas dos trigais.


José Gomes Ferreira

SEM BATER À PORTA

Segundo a lenda, em 13 de Agosto de 1917 ocorreu a 4ª aparição de Nossa Senhora aos pastorinhos.
A 1ª fora em 13 de Maio como todo o mundo sabe, e a 6ª e última em 13 de Outubro - desconhecendo-se as causas da sua interrupção (definitiva, pelo menos até agora).

De acordo com uma tradição iniciada em 1940, é no 13 de Agosto que, todos os anos, os emigrantes peregrinam até Fátima e ali, num cenário de múltiplas orações e cânticos, fazem os mais diversos pedidos à Senhora - sendo o mais comum, naturalmente, o de «saúde e sorte».

Assim foi este ano, em que milhares de emigrantes rumaram ao Santuário de Fátima.
Contudo, com uma ligeira diferença em matéria de pedidos à Virgem Maria: desta vez, segundo as notícias, «um dos pedidos mais frequentes dos emigrantes foi o de que a crise não os afecte».
Não há notícia, até agora, de qualquer resposta ao pedido feito.

Entretanto, a crise continua - afectando exclusivamente os trabalhadores (emigrantes ou não) e favorecendo exclusivamente os donos dos grandes grupos económicos e financeiros, cuja pátria é o mundo - e, por isso, nunca emigram, como o prova o facto de, entre os milhares de emigrantes que se deslocaram a Fátima, não haver um único dono de grupo económico e financeiro...

Na verdade, os donos dos grandes grupos económicos e financeiros não só não peregrinam como os seus palácios são locais de peregrinação, regularmente frequentados, há milénios, por Nossa Senhora e pelo Pai e pelo Filho e pelo Espírito Santo - que fazem parte da Casa e da Família e, porque têm chave, entram sem bater à porta.

POEMA

CAFÉ


XXXIV


(Cantámos em redor da Estátua.)


Em multidão
os homens parecem maiores do que são.

Nela
a nossa voz,
tão rude quando cantamos sós,
parece mais bela.

Num coro de cantar
sai cá para fora
tudo o que há em nós de sol-treva no luar.

(O resto - os sonhos mesquinhos -
fica para a solidão
dos caminhos.)


José Gomes Ferreira

MATAR, MATAR, MATAR

«Falsos positivos» são aqueles milhares de colombianos, regra geral jovens, raptados pelos criminosos a soldo do chefe de criminosos Uribe e que, depois de assassinados, são apresentados publicamente como guerrilheiros «mortos em combate» - assim confirmando o êxito do regime do narcotraficante Uribe no combate contra os «terroristas»...

Comentando a descoberta de uma vala comum com 2000 corpos, em Macarena, a senadora Piedad Córdoba afirmou: «Aqui foi onde começou realmente a política que se conhece como "falsos positivos»: os assassínios a sangue frio para reclamar recompensas, para conseguir promoções, para pedir férias...»

Na verdade, todos estes crimes têm origem numa «instrução secreta» dada por Uribe em 2005 - uma espécie de ordem para matar, matar, matar - que eu pago...
Por um lado o facínora Uribe tinha necessidade de mostrar obra feita ao patrão Bush.
Por outro lado, os criminosos recebiam prémios pelos assassinatos que faziam, e trataram de matar, matar, matar...
E como, matar guerrilheiros das FARC ou do ELN não só não era fácil como implicava riscos..., os assassinos escolheram heroicamente o caminho mais fácil e mais rentável: passaram a assassinar jovens que nada tinham a ver com a guerrilha, apresentando-os, depois, como se fossem guerrilheiros.
E o narcotraficante Uribe - medalha da liberdade de Bush e criado para todo o serviço de Obama - pagava, pagava, pagava...

Foi assim - a matar, matar, matar - que o criminoso Uribe construíu a «democracia colombiana».
Tão apreciada pelos seus patronos dos EUA e da União Europeia - e tão louvada pelos média dominantes.

POEMA

CAFÉ


XXXIII


(O pedestal da Estátua ficou coberto de flores.
Último ritual do Movimento de Unidade Democrática
em torno do monumento de António José de Almeida.)


Montes e montes de flores...

Mais uma vez os nossos mortos
rasgaram o chão
para darem o sol
- o outro, o subterrâneo -
às rosas ardentes
que levámos na mão
como uma bandeira pintada
pelo coração.

Montes e montes de flores...


José Gomes Ferreira

SEM COMENTÁRIOS

António Dias Lourenço é, naturalmente, tema maior no Avante! de hoje.
Ali podemos ler, para além de aspectos vários da história da sua vida de revolucionário, declarações feitas pelo próprio em momentos diversos e sobre temas diversos.
Aqui ficam - sem comentários - extractos de algumas dessas declarações.


Clandestinidade
«Em 1941, fui atirado para o Alentejo, deram-me mais o Algarve e, como era pouco, deram-me mais Gouveia e a Covilhã... De bicicleta, de bicicleta... E eu era o único «ciclista» que fazia isto tudo. Tínhamos de fazer longos percursos... O Álvaro Cunhal - que estava no Norte - às vezes vinha durante toda a noite a pedalar até Lisboa, reunia durante o dia e ia na noite seguinte outra vez para o Norte, de bicicleta. A gente conhecia Portugal com a geografia das botas.»

«Tivemos de criar formas de o Avante! sair, mesmo com o assalto da polícia a uma tipografia. Tínhamos sempre mais do que uma tipografia a fazer o mesmo Avante!. Algumas vezes a polícia assaltava ou impedia que uma tipografia fizesse o jornal e faziam festa: "Acabou-se, conseguimos!". Nessa altura estava o Avante a ser distribuído porque tinha sido feito noutra tipografia.»


Prisão e tortura
«Eu já sabia que eles gostavam de ver a cara dos presos sob a tortura. E resolvi construir para a minha cara um ligeiro sorriso constante. Mesmo debaixo das dores mantive sempre um sorriso.
A mim não me háo-de ver a cara torturada».


Tribunal
Juiz: «É verdade que o senhor reingressou no PC em 1954 logo após a sua fuga do Forte de Peniche?
Dias Lourenço: «Só reingressa quem sai... e eu orgulho-me da haver abraçado a causa do comunismo desde os alvores da minha juventude e de manter até hoje sem interrupções a honrosa condição de comunista, qualidade que espero conservar até ao último alento da minha vida.»


Felicidade
«O que me faz mais feliz é ver toda essa gente nova que vem ao Partido, para pegar na bandeira e andar para a frente»
«Estar neste combate é uma felicidade».

POEMA

CAFÉ


XXVIII


(No Rossio os ardinas vendem em Separatas da «Seara Nova» duas canções do Graça: a «Mãe Pobre» com versos de Carlos de Oliveira e a «Jornada» com versos meus.)


Dia de chuva na cidade
triste como não haver liberdade.

Dia infeliz
com varões de água
a fecharem o mundo numa prisão.
E alguém a meu lado com voz múrmura que diz:
«está a cair pão.»
Ah! que vontade de gritar àquela criança seminua
sem pão nem sol de roupa:
«Eh! pequena! Deita-te na rua
e abre a boca...»

(Dia em que urdo
este sonho absurdo.)


José Gomes Ferreira

ESQUERDA E «ESQUERDA»

A propósito da ofensiva em curso contra o Serviço Nacional de Saúde (SNS), o Diário Económico ouviu António Arnaut.

Arnaut teve, como é sabido, um papel destacado em todo o processo de construção e aprovação do SNS, facto que o entrevistador recorda, explicando ser essa a razão pela qual ele é considerado o «pai do Serviço Nacional de Saúde».
Por seu lado, Arnaut (diz o jornal) «aceita com orgulho a paternidade» - uma «paternidade» que, talvez por modéstia e para que se saiba que não foi ele sozinho o criador do SNS, «gosta de partilhar».
E «partilha-a» destacando «três grandes apoiantes do SNS»: «Basílio Horta, Rui Pena e Sá Machado».

O destaque é, provavelmente, justo mas certamente injusto.
Justo, talvez, porque é possível que os três nomes citados tenham dado um contributo positivo para a criação do SNS.
Injusto, sem dúvida, porque como António Arnaut muito bem sabe, ninguém apoiou mais todo o processo de construção e aprovação do SNS do que o Grupo Parlamentar do PCP.
Esquecer isso, revela, no mínimo, uma clamorosa falta de memória.
E fiquemo-nos por aqui...

Quanto à defesa do SNS face à ofensiva actual visando liquidá-lo, se Arnaut quiser olhar para a realidade facilmente constatará que, também aí, o PCP está na primeira fila da luta - uma luta que se trava contra os que querem liquidar o SNS na Constituição (caso do PSD com o seu projecto de revisão constitucional) e, simultaneamente, contra os que o vão destruindo com a aplicação de medidas devastadoras (caso do Governo PS/Sócrates, com os encerramentos de centros de saúde, urgências, maternidades, etc, etc).

Aliás, e como Arnaut não ignora, o PCP é o único partido que dá garantias de travar essa luta até ao fim, já que do PSD e do CDS sabe-se o que há que esperar e do PS... bem, do PS
só há que esperar aquilo que a sua prática ao longo dos últimos 34 anos tem mostrado... e que Arnaut tão bem define ao dizer: «Com o PS na oposição o SNS estará melhor defendido. Porque o PS na oposição é de esquerda».

Ficamos assim a saber, pela boca do destacado militante António Arnaut, que o seu partido, o PS, só é de «esquerda» quando é necessário fazer o papel de «oposição»... de forma a obter votos de esquerda que lhe permitam ir para o governo desempenhar o seu verdadeiro papel de protagonista principal da política de direita.

Pergunto: e Arnaut? É de esquerda? Ou é de «esquerda»?...

POEMA

CAFÉ


V


(Epitáfio para um morto pela polícia.
Morreu com tanta simplicidade, tão anónimo!)


Não. Não descanses, morto!

Tu que não morreste na cama
mereces o destino diferente
de não te desfazeres em lama
como toda a gente.

Não descanses, morto!

Para que de ti e da Terra se evole
outra espécie de sol...


José Gomes Ferreira

A TAREFA DO GOVERNO

Há quinze dias comentei aqui a notícia sobre aquela medida em tempos anunciada por Sócrates a bem do «acesso a saúde oral das crianças, das grávidas e dos idosos»: o «cheque-dentista» - que, afinal, não tinha cobertura e levou os dentistas a deixar de atender portadores do cheque careca enquanto o Governo não pagasse os 4 milhões de euros que lhes deve...

Agora, são os passes sociais: a Associação Nacional de Transportadores Rodoviários de Pesados de Passageiros (Antrop) informou que se o Governo não pagar os cerca de 15 milhões de euros em dívida para com as transportadoras, estas deixarão de vender passes sociais, com as consequências que isso terá para milhares e milhares de pessoas.

Amanhã o que será?
Sabe-se lá: com um Governo destes tudo é possível.
Entenda-se: tudo, excepto fazer qualquer coisa de útil para a maioria dos portugueses.
Excepção que se percebe se tivermos em conta que o tempo não chega para tudo, e que satisfazer plenamente os interesses dos grandes grupos económicos e financeiros é tarefa que rouba o tempo todo ao primeiro-ministro e ao seu Governo - e rouba tudo à maioria dos portugueses.

POEMA

CAFÉ


I


(De novo em Lisboa. Sensação do mundo desarrumado.)


Quem foi o arquitecto
que fez este Café
tão longe da natureza
e tantos homens de pé?

Criado: põe esta gente na rua!
E abre um buraco no tecto
que eu quero ver a lua.


José Gomes Ferreira

DÁ GOSTO DIALOGAR ASSIM

O título da notícia do Público informa-nos que «Estados Unidos estão "abertos ao diálogo" com o Irão».

Lendo este título, qualquer leitor distraído concluirá que, ao contrário do que dizem os «anti-americanistas primários», o Governo dos EUA não impõe decisões à força, procura soluções consensuais, dialoga...

Lendo a notícia que se segue ao título, ficamos a saber de que «abertura ao diálogo» se trata.
É a secretária de Estado Hillary Clinton - a própria - que, numa dúzia de palavras dialogantes nos explica como é.
Diz ela: «Continuamos abertos ao diálogo» - e logo acrescenta: «Mas eles sabem o que têm que fazer».
«Eles» são, obviamente, os iranianos; e «o que têm que fazer» é, obviamente, obedecer às ordens do Governo dos EUA e desistir do seu programa nuclear, de modo a - diz Hillary Clinton - «tranquilizar a comunidade internacional».

Se o Governo iraniano persistir na desobediência, então, está esgotada a incomensurável paciência do Governo de Obama e acabou-se o diálogo...
E, como dizia há dias um alto responsável militar dos EUA, o plano de ataque ao Irão está preparado e pode ser desencadeado a qualquer momento, é só chegar a ordem...

Dá gosto dialogar assim...

POEMA

PROVÍNCIA


XLII


(Despedida da Serra. Em Lisboa começou a luta pela ilusão da Liberdade.
Mas o que é bom é lutar, ver combater, contar ilusões nos comícios...)


Aqui ficas, melodia,
que nunca encontrei
por mais que a buscasse
nas bocas, por lei,
cosidas na face...

Aqui ficas, minha sombra,
na terra deitada
- à espera, sozinha,
da Noite da Espada
Fora da Bainha.

Aqui ficas, minha raiva,
a sonhar que furas
os olhos das rãs
- com estas mãos puras
de tecer manhãs.

Aqui ficas, meu sonho,
para um dia pores
todo o sol que queiras
nas cristas das flores,
e inventar bandeiras.

Aqui ficais, meus olhos,
na luz que pisamos,
na cor dos redutos
- pendidos dos ramos
a fingir de frutos.

Aqui ficas, outono,
sangue que reluzes
nos pinheiros tortos
e ensinas, nas cruzes,
a preguiça aos mortos.

Aqui ficas, morte,
que a morte é assim
- este dar ao mundo
o que o mundo em mim
gela num segundo.

(Só tu não ficas, solidão,
no domir longo dos pinhais.
- Levo-te no coração
para os vendavais
da multidão.)


José Gomes Ferreira

A MAIS BELA HOMENAGEM

Foram muitos os amigos e camaradas que ontem e hoje, na capela da igreja de S. Francisco de Assis e no cemitério do Alto de São João, pestaram homenagem a António Dias Lourenço.

Foi a homenagem a uma vida de intervenção constante na defesa da justiça social, da liberdade, da democracia, do socialismo, do comunismo.

Foi a homenagem a uma militância intensa, corajosa e coerente que se prolongou por 78 anos, 42 dos quais vividos no tempo do fascismo e, desses, 17 passados nas prisões fascistas - onde continuou a lutar, resistindo a todas as torturas, defendendo o seu Partido e os seus camaradas, evadindo-se de Peniche numa fuga toda feita de coragem e de determinação, após a qual voltou a integrar a organização clandestina do PCP.

Foi a homenagem a um construtor de Abril, a um protagonista maior da nossa Revolução e das suas conquistas históricas, a um combatente de todos os dias na defesa dessas conquistas face à ofensiva da contra-revolução.

Foi, enfim, a homenagem a um revolucionário de corpo inteiro.

Lutar, lutar sempre, em todos os momentos e em todas as circunstâncias e fossem quais fossem as consequências dessa opção, foi, pode dizer-se, o lema da vida do militante comunista António Dias Lourenço.

E não são apenas os comunistas a reconhecer a importância dessa postura lutadora e a homenageá-la:
Numa das lojas de flores nas imediações do cemitério, uma jovem, a Sandra, foi comprar seis cravos.
A florista perguntou-lhe se os cravos eram para «o senhor do PCP» cujo corpo «está ali na capela», e que «passou tantos anos na prisão».
Perante a confirmação, a florista preparou um belo arranjo floral com doze cravos vermelhos, entregou-os à jovem, recusou-se a receber o dinheiro, e disse-lhe: «É o meu obrigado a uma pessoa que sofreu tanto por todos nós».
Esta foi, talvez, a mais bela homenagem prestada ao dirigente comunista, ao revolucionário António Dias Lourenço, no dia em que milhares de camaradas e amigos se despediram dele com um «Até amanhã, camarada» - que é um compromisso de prosseguirem a luta à qual António Dias Lourenço dedicou toda a sua vida: a luta por uma sociedade liberta de todas as formas de opressão e de exploração.

POEMA

PROVÍNCIA


XXXVI


(Ao porco que todo o dia e toda a noite grunhe
em forma de símbolo debaixo do meu quarto, na casa da senhora Rosinha.)


Eh! vizinho porco,
todo o dia de borco
a fossar na terra onde nasceu!
Ensine ao aldeão
a sua lição
de pensar menos no céu
e mais no chão.

(Na terra, camponês,
também há estrelas
que tu não vês...
Mas hás-de vê-las.)


José Gomes Ferreira

OUTRAS HIROSHIMAS NOS ESPREITAM...

Este ano, pela primeira vez, representantes dos governos dos EUA, da França e da Grã-Bretanha estiveram presentes nas «cerimónias de Hiroshima» - e, asim tendo sido, também o secretário-geral da ONU lá esteve, pela primeira vez...

O embaixador dos EUA no Japão depositou uma coroa de flores «em memória de todas as vítimas da II Guerra Mundial» - e assim se baldou a falar concretamente de Hiroshima e dos que ali semearam o CRIME, o HORROR: os EUA.
O primeiro-ministro do Japão falou do «horror e do sofrimento causados pelas armas atómicas» e da «responsabilidade do Japão em liderar o combate para construir um mundo sem armas nucleares» - e assim se baldou a enunciar os culpados do «horror e do sofrimento causados pelas armas atómicas», os que, concretamente, lançaram o «horror e o sofrimento»: os EUA.
O secretário-geral da ONU, como se esperava, também não disse nada.
Quer isto dizer que, quando o essencial fica por dizer, o que se diz não passa de blá-blá-blá.

Quer isto dizer, portanto, que, como era previsível, continuará a vigorar a monumental patranha lançada na altura pelos criminosos de guerra Truman e Churchill, justificando o CRIME.
Patranha que persiste apesar de ter sido claramente desmentida pelos documentos secretos desclassificados, pelos EUA, em 1995 - há 15 anos!
Esses documentos desclassificados, provam, inequivocamente, que, quando as bombas atómicas foram lançadas, o Japão estava irremediavelmente vencido; que o imperador do Japão decidira render-se desde 20 de Junho; que o Japão perdera quase toda a aviação e marinha e a sua defesa antiaérea tinha sido desfeita pelos 7 mil raids dos B-29 norte-americanos; que a capital, Tóquio, tinha sido exaustivamente bombardeada pelos norte-americanos, provocando 125 mil mortos e feridos, etc, etc, etc.

Quer isto dizer, igualmente, que as «cerimónias de Hiroshima» de ontem foram mais uma farsa, mais um insulto à memória das centenas de milhares de homens, mulheres e crianças inocentes, vítimas dos criminosos objectivos expansionistas do imperialismo norte-americano.

Entretanto, longe de Hiroshima - nos EUA, sentado junto à piscina da sua casa - Theodore Van Kirk, que é o único ainda vivo dos tripulantes do bombardeiro B-29 que lançou a bomba sobre Hiroshima (Enola Gay se chamava o bombardeiro, assim baptizado pelo piloto Paul Tibbets em homenagem a sua mãe...) repete-se em sentidas manifestações de «orgulho» pelo que fez nesse dia 6 de Agosto de 1945.

«Senti-me orgulhoso de estar no Enola Gay» - diz o monstro.
«Se fosse hoje voltaria a lançar a bomba atómica» - diz a besta.
E confessa que «o único objecto pessoal» que, nesse dia, levou consigo foi... «a Bíblia» - «em formato de bolso», para poder tê-la junto ao coração quando lançasse a bomba atómica...

Quer tudo isto dizer que, neste 65º aniversário de Hiroshima, Theodore Van Kirk, dizendo o que sente, disse o que os governantes dos EUA pensam.
Outras hiroshimas espreitam os povos do mundo.

POEMA

PROVÍNCIA


XXXIV


(Saltimbancos.)


Ao som dum sol-e-dó
vão dois maltrapilhos
a ensinar os filhos
a dançar no pó.

Que pena esta gente sem pão
não ter
imaginação
para sofrer!


José Gomes Ferreira