POEMA

INVENTÁRIO DE DOMINGO


No domingo pastoso e lento
há um relógio realejo
redondo como um bocejo
que rói o tempo e o pensamento.

Há o bairro puído e humilhado,
há sempre o disco usado na vitrola
e há uma lágrima que rola
entre o presente e o passado.

E há a chuva, que prevê o calendário,
e há o tédio, e há a monotonia
banal na sua geometria
que vai da gaiola ao aquário.

E há o amor, um amor assim-assim,
burguês, dominical e burocrático
que seria alegre se não fosse dramático,
que seria tudo se não fosse um folhetim.

E há pessoas ancoradas nos salões
horas e horas com olhar fixo e duro
para que os olhos das crianças do futuro
sejam rectangulares como televisões.


Sidónio Muralha

(«Oo Olhos das Crianças» - 1963)

5 comentários:

poesianopopular disse...

E continua...O baile!
Abraço

Maria disse...

Os olhos das crianças serão sempre redondos, amendoados. Mesmo que insistam em formatá-los...

Um beijo grande.

samuel disse...

E continuam... com o olhar fixo e duro, só que os olhos das crianças teimam em resistir.

Abraço.

Graciete Rietsch disse...

E resistirão. Grande, grande poeta, político, lutador é Sidónio Muralha!!!!!! É tão bom ler a poesia dele!
Beijos.

Justine disse...

Como se pode falar de tanta violência de modo tõ belo, tão harmonioso, tão poético???