carta inventada aos filhos reais


"eu um dia hei-de voltar para repartir com todos o pão que vai faltando porque mo negaram. e as lágrimas e o sangue e o suor que sobrou na procura dele para muitos filhos. hoje tenho a casa cheia... adultos, mais os chinfrim dos netos e bisnetos no desvario que sempre é a infância... ainda que com maquinetas e jogos de luzes. os homens mexeram na lua. está visto. mas a vida esvai-se e ficou a dever-me tudo o que não vivi por ingrata distribuição dos homens que mandam nas coisas de deus e deles próprios. que mão tirana me roubou a alegria ? sou uma mulher velha... feliz, cá como sei, quando olho outras desgraças... mas ainda assim. o salitre do tempo predou-me a carne e estes ossos franzinos mal aguentam a lembrança das estafas do campo. trabalhei para alimentar um mundo de criaturas. e o mundo apenas me soube rebentar. Tenho os filhos e os netos criados. esta a boa verdade. o pior é que outras verdades são bem mais amargas. findam-se-me os dias, e só a louca paixão de quem nos ama não deixa ver. oitenta e quatro anos roubados ao assombro que é a vida. à noite profunda que é a nossa condição. lambi o pó dos caminhos por uma côdea de pão. mordi a sola dos sapatos (do patrão, que eu andei descalça) por uma migalha para os meus pequenitos. galguei serras, vinhedos, sobrados e montes em busca de uma gota de água. gastei sozinha todo o alento distribuido aos pobres de muitos anos. fui à luta. criei no amago da fome filhos de coração farto. filhos que sabem amar as coisas simples. a seu tempo, com os simples de mesma condição, vi nascer netos. dia dez fiz oitenta e quantro anos. vieram todos - furando as gargantas de solidão que nos separam- dar-me um beijo de parabéns. um deles é o António da minha Cátia. Mesmo sem nada lhe dizer ele ficou de vir cá contar isto. espero que saiba desenvencilhar-se das palavras e dizer apenas do coração. esta rapaziada de hoje... nunca se sabe. vou embora. tenho a panela ao lume e uma chusma de bonecas de trapos para fazer. passem bem.

Isabel"



foto: Nos oitenta e quatro anos da «avó» Isabel. ladoeiro, Beira-Baixa, Junho 2010.

10 comentários:

GR disse...

Muito bonito e comovente, o amor expresso à tua avó Isabel.

Bj Grande à avó Isabel e outro para ti.

GR

Graciete Rietsch disse...

Maravilhosa história, maravilhosamente bem contada.
Não sei dizer mais nada.

Beijos

do Zambujal disse...

Bonito! Muito bem (trans)crito!

Um abraço

Anónimo disse...

Está lindíssimo e tenho a certeza que a minha (nossa) avó vai adorar. Lido por ti antes de adormecer ainda fica mais bonito. :)
Beijo Grande
Cátia

Maria disse...

Lindo! Cheio de ternura, como tu sabes escrever...

Beijos.

Fernando Samuel disse...

Bonito, amigão.
Um abraço.

Anónimo disse...

Em tempos que já lá vão, em casa da minha avó, uma sardinha dava para quatro e de barriga vazia não ficavam. Felizmente desses tempos não tenho memória, mas lembro-me dos deliciosos bolos e pão que eram feitos naquele mítico forno pelas mãos vincadas da minha avó. As mesmas que agora dão vida a bonecas de trapos provenientes dos cortinados do meu quarto de infância. Só mesmo a avó Isabel para tudo isto. :)
Muitos Beijinhos e um abraço com saudades
Cátia

judite de aljustrel disse...

muito comovente ,lindo adorei

samuel disse...

Muito bom!

Abraço.

svasconcelos disse...

Muito bonito, António!!! Comoveste-me...e redobraste em mim as saudades da minha avózinha!!!meu deus, que saudades...:((
Parabéns à tua.
beijo