POEMA

ENQUANTO


Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães,
andarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das casas;
enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA.


António Gedeão

5 comentários:

GR disse...

Enquanto houve injustiça, lutaremos!
Outro belo poema de Gedeão.

Bjs,

GR

Graciete Rietsch disse...

A poesia é uma arma e António Gedeão sabe bem usá-la.

Um beijo.

samuel disse...

Até lá... tanto caminho para andar!

Abraço.

Justine disse...

FS, não digas a ninguém, mas tenho um post preparado para sair para a semana com este poema:)) Abaixo o misério da poesia, vivá justiça!

Fernando Samuel disse...

GR: bom resumo...
Um beijo.

Graciete Rietsch: uma arama carregada de futuro, como cantaram Celaya/Ibañez.
Um beijo.

samuel: tanto, tanto caminho para andar - com a certeza de que o caminho faz-se caminhando...
Um abraço.

Justine: ainda bem! Lá irei.
Um beijo.