POEMA

EDITAL


Já estão a funcionar os moinhos da morte,
prontos,
oleados,
com motores novos e peças de reserva.

A instrução militar é muito vagarosa
e é urgente inventar um novo método.
Ainda não há soldados bastantes este verão;
é preciso incorporar mais cedo.

Não é possível perder tempo, ouviram!
Os moinhos da morte estão prestes a iniciar a sua tarefa,
os depósitos de bombas estão repletos,
as rampas de lançamento distribuídas pelos pontos estratégicos.
Tudo está a postos para o próximo dia M.

Os soldados, porém, são ainda insuficientes.

É necessário acabar com os cursos de Botânica,
de Arqueologia, de Belas Artes e Direito Civil.

É preciso queimar os escritos de Malthus,
destruir o método de Ogino-Knaus,
fuzilar um ou outro poeta recalcitrante.

Não ouvem as velas dos moinhos cortando a atmosfera
nos últimos, definitivos, ensaios?
É necessário inventar uma gigantesca correia-sem-fim
que produza diariamente milhares de soldados,
que taylorize o exército e bata os recordes de produção.

Sábios, estudantes, estadistas, pais de família,
homens e mulheres de boa vontade,
onde quer que habitem,
seja qual for o vosso trabalho,
parem de perder tempo, de tomar chá,
de jogar o xadrez, a canasta, a bisca lambida,
parem de ter ócios, ler jornais, fazer ginástica:
atendam este apelo desesperado
dediquem-se à solução deste problema.

As Escolas de Guerra vão diminuir de dois anos o seu curso.
Os moinhos estão prontos.

Não querelem,
não discutam a Arte pela Arte,
não frequentem exposições:
transmitam-nos ideias - nada é desaproveitável.
A mais humilde sugestão,
a mais aparentemente inútil,
pode ser a faísca reveladora do Grande Acontecimento.

Na doença ou na saúde,
na febre delirante, no banho quente,
na praia, no consultório médico,
nas salas de espera, na paragem dos eléctricos,
trabalhem sem descanso,
tentem,
contribuam.

Não leiam livros, não ouçam música,
não pintem - É UMA ORDEM.
trabalhem sem hesitação;
o problema é urgente.


Egito Gonçalves

5 comentários:

Anónimo disse...

É tudo o que eles querem que façamos... Mas nós estamos a dizer basta... Como escrito hoje no Momentos & Documentos: 'O mundo pode ser regido por outras leis que não o preço para os alimentos e os lucros sobre a miséria. Uma nova economia é possível, assim como foi possível se unir mesmo muitos países e indústrias em defesa do nosso planeta. Um outro mundo é possível, sem bestas, sem deuses, mas com solidariedade...'

Abraço

Maria disse...

E é arrepiante, este poema...

Um beijo

GR disse...

É terrivel demais para ser verdade!
Lutamos, tanto lutamos para que o passado não volte a ser futuro.

GR

Ana Camarra disse...

Fernando Samuel

Talvez esteja a fazer uma associação estranha, mas lembro-me do "Admiravel Mundo Novo" de Aldous Huxley, onde toda a creatividade e sonho era proibido em nome daquela sociedade estruturada onde se nascia destinado a ser Alfa, Beta, ou outra coisa. Eu sei que na época teve muitas leituras, mas também posso fazer a minha, para mim as nossas sociedades chamadas livres condicionam-nos cada vez mais em tudo, até no sonhar.
Comecei a escrever só agora vi onde parei!

Um beijo

samuel disse...

Há sempre quem nos venha vender "problemas urgentes" para nos impedir de viver...