POEMA

NOCTURNO A DUAS VOZES


- Que posso eu fazer
senão beber-te os olhos
enquanto a noite
não cessa de crescer?

- Repara como sou jovem,
como nada em mim
encontrou o seu cume,
como nenhuma ave
poisou ainda nos meus ramos,
e amo-te,
bosque, mar, constelação.

- Não tenhas medo:
nenhum rumor,
mesmo o do teu coração,
anunciará a morte;
a morte
vem sempre de outra maneira,
alheia
aos longos, brancos
corredores da madrugada.

- Não é de medo
que tremem os meus lábios,
tremo por um fruto de lume
e solidão
que é todo o oiro dos teus olhos,
toda a luz
que meus dedos têm
para colher na noite.

- Vê como brilha
a estrela da manhã,
como a terra
é só um cheiro de eucaliptos,
e um rumor de água
vem no vento.

- Tu és a água, a terra, o vento,
a estrela da manhã és tu ainda.

- Cala-te, as palavras doem.
Como dói um barco,
como dói um pássaro
ferido
no limiar do dia.
Amo-te.
Amo-te para que subas comigo
à mais alta torre,
para que tudo em ti
seja verão, dunas e mar.


Eugénio de Andrade
(«Ostinato Rigore» - 1963-1965)

10 comentários:

Graciete Rietsch disse...

Tão lindo o poema! Faz-nos regressar à juventude e às ilusões de então.

svasconcelos disse...

Tanto afecto num poema... lindo!
beijos,

samuel disse...

"Amo-te para que subas comigo
à mais alta torre,
para que tudo em ti
seja verão, dunas e mar"

Para que tudo seja perfeito...

Abraço.

Sal disse...

Até doi, de tão belo.
Só podia ser Eugénio de Andrade!

Obrigada.
BJ

Justine disse...

O tempo da juventude, o tempo de subir aos cumes.
Faço votos para que o "ciclo Eugénio de Andrade" dure bastante:))

Fernando Samuel disse...

Graciete Rietsch Monteiro Fernandes: mais do que isso, até...
Um beijo.

smvasconcelos: é Eugénio de Andrade...
Um beijo.

samuel: este Eugénio anda sempre próximo da perfeição...
Um abraço.

Sal; de facto, ele é único...
Um beijo.

Justine: está para durar...
Um beijo.

Maria disse...

Precisava de ler este poema hoje. Mas fiquei sem palavras...

Um beijo grande

Fernando Samuel disse...

Maria: às vezes, ficar sem palavras é bom...

Um beijo grande.

Ana Camarra disse...

E o amor é assim mesmo, ipsis verbis!
Não é?

Fernando Samuel disse...

Ana Camarra: «fogo que arde sem se ver»...
Um beijo.