POEMA À MÃE
No mais fundo de ti,
eu sei que te traí, mãe.
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade
(«Os Amantes sem Dinheiro» - 1947-1949)
5 comentários:
Tão triste!
Abraço.
samuel: e tão belo!
Um abraço.
Nunca tenho palavras para comentar este poema. É belíssimo!
Um beijo grande
Já conheço, já adorava, nem preciso de relembrar, "Os Amantes sem dinheiro" está sempre á mão de semear junto com os "Sonetos" do Luiz Vaz...
beijo
(ao Eugénio também)
Maria: imagina esta cena: numa sessão política, cito este poema; da assistência, eleva-se uma voz jovem e diz o poema todo...
Um beijo grande.
Ana Camarra: ora aí estão dois livros muitíssimo bem acompanhados.
Um beijo.
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