POEMA

ANTI-ANNE FRANK

Esta criança esquálida,
de riso obsceno e olhares alucinados,
nunca apertou nas mãos a fria face pálida,
nunca sentiu, na escada, as botas dos soldados,
nunca enxugou as lágrimas que aniquilam e esgotam,
nunca empalideceu com o metralhar de um tanque,
nem rastejou num sótão,
nem se chama Anne Frank.

Nunca escreveu diário nem nunca foi à escola,
nem despertou o amor dos editores piedosos.
Nunca estendeu as mãos em transes dolorosos
a não ser nos primores da técnica da esmola.

Batem-lhe, pisam-na, insultam-na, sem que ninguém se importe.
E ela, raivosa e pálida,
morde, estrebucha, cospe, odeia até à morte.

Pobre criança esquálida!
Até no sofrimento é preciso ter sorte.

António Gedeão

4 comentários:

Maria disse...

Terrivelmente bonito...
Obrigada

Um beijo

samuel disse...

É seguramente uma das coisas mais terríveis que o Gedeão escreveu.

Abraço

Anónimo disse...

Não conhecia este poema. É mesmo de António Gedeão? Onde foi publicado?

IMPRESSÃO DIGITAL
"Os meus olhos são uns olhos
E é com esse olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros, gnomos e fadas
num halo resplandecente.

Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes. Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes."

António Gedeão

Fernando Samuel disse...

maria: um beijo também para ti.

samuel: uma das coisas mais terríveis e... mais corajosas.
Um abraço.

maria teresa: é mesmo do António Gedeão e foi buscá-lo ao mesmo livro onde se pode encontrar o belíssimo Impressão Digital: Poesias Completas, Colecção Poetas de Hoje, Portugália, 1964.
Um obrigado grande pelo poema que partilhou com os visitantes do Cravo de Abril.