POEMA

BALADA PARA UM CONSTRUTOR CIVIL


É este o monumento erguido em tua honra:
um bloco de cimento de cento e vinte apartamentos
Ele é o teu orgulho por ele andaste
de um lado para o outro constantemente discutiste
o preço do ferro e da mão-de-obra deste gratificações
a funcionários municipais assinaste papéis papéis papéis
acordaste em cada manhã impaciente por ver mais um andar
sobre a tua cabeça que fez de noite contas e mais contas
jantaste repetidamente com o engenheiro e os arquitectos
a quem generosamente pagaste os whiskies e o marisco
mostraste algumas vezes à esposa e às amantes o edifício em construção
e passeaste-as no Mercedes dando largas à tua alma de betão
tiveste problemas com o pessoal ameaçaste
os homens que fizeram greve e untaste as mãos
aos que não aderiram e continuaram o trabalho
seguiste passo a passo a construção com a baba na boca
é meu! é meu! disseste para ti mesmo olhando para o alto
tiveste longas conversas com o gerente do Banco que te sorriu e financiou
e a quem prometeste não esquecer no acto da escritura
passaste entre os operários que erguiam as paredes e perguntaste
olá, como vai isso? mas referias-te sempre ao trabalho deles
mandaste pôr uma coroa de flores na campa do servente que
desabou como um pássaro tonto de um andaime do décimo-terceiro andar e
só não acompanhaste o funeral porque a tua filha fez anos nesse dia
fizeste servir na última tarde um almoço para todos
esquecendo alguns ressentimentos e onde havia vinho à discrição
agradeceste pessoalmente a cada um e botaste discurso
mostrando-lhes claramente que és um homem preocupado
que sabe muito bem tudo o que faz

Porém agora que está pronto o monumento
é sobre ti que me interrogo:
Sabes tu quem foram Engels Stravinsky Cesário?
e Van Gogh? E Byron? E Rodin?
Saberás tu que assassinaram Pasolini?
Saberás que Neruda construiu edifícios com pedras preciosas e rubis sangrentos
e que Éluard carregou a sua arma e disparou versos contra os inimigos da França?
Saberás que Aragon amou Elsa nas trincheiras
entre ratos e cadáveres de milhares de crianças fardadas
e que tinham grandes olhos azuis?
Saberás que Camões foi expulso do Império porque ergueu o talento
mais acima que o de todos os outros? E que também Dante foi
espulso de Florença e errou como um pedreiro
à procura de trabalho para morrer feito um cão
longe das portas de ouro da cidade que hoje o reclamam?
Saberás que Fernando Pessoa também olhava para as casas
como quem olha para as árvores?
Será que tu te interessas por estas ninharias?
Oh! como eu gostaria que ao menos pudesses ter presente
o que um dos nossos poetas deixou escrito sobre
as casas as casas as casas!


Joaquim Pessoa

9 comentários:

Antonio Lains Galamba disse...

incrivelmente bonito.
obrigado fernando samuel

um abraço tamanho do mundo

Ana Camarra disse...

Olha não costumo gostar muito de Joaquim Pessoa, outra história que não interessa, mas este está muito bem.
Qualquer dia ainda me convences a comer coelho e favas...

beijos

Anónimo disse...

Não era ele que erguia as casas, por isso tudo desconhecia, tudo o que existia, não era ele que fazia!
(roubado ao Vinicius)

Beijo, amigo

dona tela disse...

Aqui há gato!

Beijinhos.

Maria disse...

Belo e fortíssimo este Joaquim Pessoa.
Vai sendo tempo de o reler, mas falta-me o tempo...

Um beijo grande

(e deixa-me dizer à Ana Camarra que coelho e favas são dois petiscos deliciosos - para quem gosta, eu sei - mas deliciosos...)

Anónimo disse...

Nós sabemos tudo isto, só não sabemos é costruir como o Joaquim Pessoa!

Anónimo disse...

OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO

Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um passáro sem asas
Ele subia com as asas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia por exemplo:
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tão pouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.

De facto como podia
Um operário em construção
Compreender porque um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento

Além uma igreja,à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse eventualmente
Um operário em construção
Mas ele desconhecia
Esse facto extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa,ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
-Garrafa, prato, facão
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário em construção.
Olhou em torno: a gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo o que existia
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.

Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um novo mundo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.

Foi dentro dessa compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo o que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
-Exercer a profissão-
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia

Um facto novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
De edifício em construção
Que sempre dizia "sim"
Começou a dizer "não"
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que o seu macacão de zuarte
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que os seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua fadiga imensa
Era amiga do patrão

O operário disse:Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução

Como era de esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação.
- "Convençam-no" do contrário
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isto sorria.

Dia seguinte o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu por destinado
Sua primeira agressão
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse:Não!

Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão
Porém por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia

Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo contrário
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
-Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
Dou-o a quem quiser
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher
Portanto,tudo o que ver
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.

Disse e fitou o operário
Que olhava e reflectia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria
O operário via casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objectos
Produtos, manufacturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca da sua mão
E o operário disse: Não!

-Loucura!- gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
-Mentira!- disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.

E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fracturas
A se arrastarem no chão
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão.
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário constuído
O operário em construção.

Vinícius de Moraes

Um beijão "enormérrimo", pelo espaço ocupado, pela paciência (?) em ler o poema, por tudo...
O culpado não sou eu é o grande Vinícius, grande em tudo.Fui uma mera carregadora de teclado

Fernando Samuel disse...

antónio lains galamba: um abraço do tamanho da amizade.

ana camarra: lá terás as tuas razões... Quanto ao coelho e às favas, quando provares a sério não vais querer outra coisa...
Um beijo amigo.

utopia das palavras: lá mais abaixo está o Vinícius...
Um beijo amigo.

dona tela: ...escondido com o rabo de fora...
Um beijo.

maria: o problema-tempo continua a ser difícil de superar plenamente, mas vamo-nos ajudando uns aos outros trazendo aos blogues poemas que de outra forma não leríamos nesta altura...
um beijo grande.

poesianopopular: e essa é uma questão de não pequena importância...
Abraço grande.

maria teresa: por mim, reli o Operário em Construção com o prazer com que sempre o faço - e um poema assim, tem espaço prioritário neste blogue.
(é «o outro lado» do poema do Joaquim Pessoa, não é?...)
Um beijo amigo.

Anónimo disse...

É evidente que sim!