BRANQUEAMENTO DO FASCISMO (1)

Há cerca de um ano, comentei aqui uma entrevista de Irene Flunser Pimentel (IFP), autora de um livro então acabado de lançar: «A História da PIDE».
Na altura, despertou-me a atenção - e especialmente indignou-me - o facto de, na referida entrevista, IFP ter afirmado que «a PIDE prendeu pouco e matou pouco», afirmação por mim lida como inserindo-se na operação em curso, levada a cabo por um conjunto de historiadores de serviço com o objectivo maior de proceder ao branqueamento do fascismo.

De então para cá, IFP deu entrevistas a vários jornais, rádios e televisões; o livro e a autora foram louvados e incensados; a obra saíu no Círculo dos Leitores - em cuja revista, Mário Soares aconselhava vivamente a sua leitura... enfim, «A História da PIDE» foi notícia grande, tendo-lhe sido, mesmo, atribuído o Prémio Fernando Pessoa.
Comprei o livro na altura e li-o, agora, aproveitando um período de férias.

Independentemente de reconhecer alguns aspectos positivos neste trabalho de IFP - designadamente a sua Primeira Parte, na qual é abordado o processo de criação da PIDE nas suas várias vertentes - a leitura de «A História da PIDE» confirmou-me a conclusão que tirei aquando da entrevista acima citada: trata-se de mais um instrumento da tal operação de branqueamento do fascismo.
Desde logo porque a autora faz sua a tese central dessa operação (por isso muito em voga) de que em Portugal não existiu fascismo.
E nem sequer se dá ao trabalho de o demonstrar: parte desse princípio, aceita-o como se fosse um dado incontestado e incontestável, e já está...
Daí que nas 575 páginas do livro, sempre que fala do regime fascista ela recorra, regra geral, à formulação «Estado Novo», criada como se sabe por Salazar.
E tantos e tão grandes são os cuidados de IFP em afastar o «fascismo» do «regime» que mesmo a palavra «fascismo» - palavra obviamente proibida - só é utilizada quando a autora fala da Itália de Mussolini e nunca em relação ao Portugal de Salazar.

Assim sendo, é natural que IFP não tenha aludido sequer ao facto de haver gente com obra escrita que, não apenas rejeita a tese em voga, como demonstra, inequivocamente, que no nosso País existiu, de facto, um regime fascista com todas as características essenciais dos regimes fascistas.

Outra tese em voga que IFP perfilha é a que concluiu que o PCP foi «o principal adversário político do regime», mas apenas «até ao final da década de 60», altura a partir da qual, diz a tese, foi substituído pelos «grupos de extrema-essquerda e de luta armada».
Tendo em conta que IFP repete exaustivamente esta tese ao longo do livro, sou levado a pensar tratar-se, neste caso, de uma conclusão essencial para os tais historiadores de serviço
que são, ao fim e ao cabo, quem diz como é...
IFP repete e repete a dita tese sem se dar ao trabalho de a demonstrar com factos, e ficando-se pela demonstração através... de citações, entre elas as do ex-inspector da PIDE, Fernando Gouveia - que é, aliás, ao longo do livro fonte na qual a autora amiúde vai saciar a sua sede.

Também neste caso, IFP não faz a mínima alusão a teses que contrariam aquela que fielmente adoptou.
Muito menos se preocupa em olhar para a realidade, para os factos, para o que aconteceu em Portugal nesse início dos anos 70.
E bastar-lhe-ia dar uma olhadela ao que se passou nesse período em que na resistência ao fascismo, segundo diz, o PCP foi substituído pelos «grupos de extrema-esquerda e de luta armada»...
Se o fizesse, ficaria a saber que no decorrer de todos esses anos de 70, 71, 72, 73 e início de 74,
1 - se desenvolveram vastos e fortes movimentos de greves e lutas dos trabalhadores, envolvendo praticamente todas as áreas de actividade;
2 - se realizaram grandes manifestações de massas por todo o País;
3 - no ano de 1973, se realizou o importante 3º Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro;
4 - nesse mesmo ano, o PCP promoveu uma ampla campanha política de massas, traduzida em centenas de comícios, sessões e outras acções de massas nas quais centenas de milhares de portugueses desafiaram publicamente o regime fascista;
5 - a esta campanha política de massas sucedeu-se, de imediato, uma vaga de greves nas quais participaram dezenas de milhares de trabalhadores - greves ocorridas nos primeiros meses de 1974, até ao dia 24 de Abril... já que as greves que estavam marcadas para dia 25 (caso da Mague, por exemplo) assumiram expressão diferente...

Se olhasse para tudo isto e procurasse origens, IFP ficaria a saber, naturalmente, que nenhuma destas lutas e acções teria ocorrido sem... o PCP - e teria constatado que também em matéria de «luta armada» a ARA foi a organização que mais e com maior eficácia agiu.
Ou seja: se IFP olhasse um pouco mais para os factos e um pouco menos para as miragens; se reflectisse um pouco mais sobre esses factos e recorresse um pouco menos às conclusões apriorísticas - as suas conclusões seriam, inevitavelmente, diferentes.
Assim, são um eco das conclusões das chefes...

Mas percebe-se que IFP tenha fugido de olhar para os factos e de proceder à avaliação dos mesmos: é que se o fizesse lá ia a tese oficial pró galheiro...

11 comentários:

Ana Camarra disse...

Fernando Samuel

Acodem-me á ideia imensas coisas a dizer.
Mas vou resumir:
Nasci em 1967, portanto tinha 7 anos acabados de fazer quando se deu o 25 de Abril.
Tenho boa memória, lembro-me de coisas que descrevo e a minha mãe diz "Não pode ser, tinhas 3 anos!"
Das coisas que me lembro, entre outras:
Lembro-me de ter cerca de 6 anos estar a dormir em casa dos meus tios com a minha avó, de madrugada baterem á porta, bater é um eufemismo suave, era a PIDE, lembro-me de vozes iradas perguntarem ao meu tio onde estavam os papeis, entraram no quarto onde estava, viraram as camas, uma velha e uma criança.
Mais, lembro-me de ver o corpo, numas férias de Verão em Vila Real de Santo António, marcado por multiplas cicatrizes da Conceição Matos, que explicou, tinha eu uns dez anos, o que a PIDE lhe tinha feito.
Lembro-me do meu pai chegar a casa todo esmurrado e ensanguentado, vinha do Congresso de Aveiro, teve de dizer ao patrão que tinha ido para uma largada.
Portanto enquanto existirem pessoas como eu e tu, a verdade não pode ser escamoteada.
Desculpa o testamento.

Um beijo

samuel disse...

"Se olhasse um pouco mais para os factos..."

Essa é a grande questão, a que eu acrescentaria:
Será que queria olhar?
Será que lhe convinha?
Será que aos "vitoriosos" de hoje interessa que se conheça verdadeiramente a história das lutas que levaram à tal vitória e na qual muitos deles não participaram e à qual outros (não poucos) trairam?
E iria poir aí fora a perguntação...

Abraço

Chalana disse...

A "História" é sempre escrita pelos vencedores. Neste caso, plos vencedores do 25 de Novembro.

Anónimo disse...

Historiadores da moda, com muitas rosas à mistura. Como é que essa gente pode ser isenta e ver os factos sem preconceitos? Pois é, custa muito ao pensamento dominante reconhecer o heróico papel da única força que teve coragem de combater o fascismo: o PCP. Mas a verdade será sempre a verdade.
Abraço camarada

Anónimo disse...

Este é um livro imoral e ofensivo, da dignidade de quantos sofreram e morreram às mãos dos carrascos fascistas.
Se outras razões não houvessem bastava ser aconselhado por aquele (monte) que me dá vómitos, para ficar-mos a saber antecipadamente o conteúdo, do livro.
Abraço

Anónimo disse...

Cá estaremos nós e muitos mais para desmistificar a aldrabice rosa.

Maria disse...

Algo me disse desde o início para eu não comprar esse livro.... acho que foi o cheiro de onde me veio a informação de que iria ser lançado...
Tenho um defeito terrível: falta de paciência! Mas já não tenho fígado que aguente...

Um beijo grande

Hilário disse...

Fernando,

À mais de 20 anos que esta gente tenta esconder o verdadeiro papel do PCP no combate ao fascismo, e da sua importância na grande revolução do 25 de Abril de 1974.

Ninguém conseguirá, por muito que tente, modificar a verdadeira História.

Um grande Abraço

Fernando Samuel disse...

ana camarra: no teu relato está uma das mil faces que o fascismo assumiu no nosso País - e que é um tempo que não poderemos esquecer nem deixar que branqueiem.
Um beijo, camarada.

samuel: de facto, nem queria olhar para os factos nem lhe convinha fazê-lo - caso contrário não poderia concluir o que... antes de escrever o livro já tinha concluído...
Abraço grande.

chalana: e nós cá estamos para repor a verdade histórica.
Um abraço, camarada.

aristides: o PCP não «cabe» nos esquemas mentais deles: como tudo lhes seria mais fácil se... não existíssemos!...
Um abraço, camarada.

poesianopopular: na verdade há «conselheiros» que cheiram à distância...
Um abraço grande.

antuã: e é o que faremos.
Um abraço, camarada.

maria: estamos fartos de conhecer o «cheiro» deles...
Um beijo grande.

hilário: e a nossa acção na divulgação do que foi o fascismo e a resistência do PCP, é fundamental.
Um abraço, camarada.

Rui Amaro disse...

Que pena que hoje em dia o branqueamento a grande escala seja incentivado por esta literatura aparentemente tão rasca e tão louvada pela crítica (incluindo Soares...!).

Cumprimentos, fantástico blog.

Fernando Samuel disse...

Rui amaro: obrigado pela visita e pelo comentário.
Um abraço.