POEMA

DEPOIS DE MIM


Um dia (sei-o bem)
os campos ficarão eternamente floridos
e a chaga que me inquieta
deixará de sangrar em todos os peitos.
Os homens já não estarão curvados sobre as terras.
E a leiteira não virá mais trazer-me as bilhas com o seu ar de humildade.

A mulher dos ovos e o homem da fruta,
o rapaz pobre envergonhado de dizer: eu sei,
o camponês prestando contas da estação,
os vultos negros do subsolo,
a linda mãe solteira,
deixarão de sorrir com humildade.

Humildade ficará nos dicionários como esqueleto em museu arqueológico.

Eu próprio nunca mais farei baixar as pálpebras
e deixarei que o sol me inunde bem, nos olhos.

Um dia
(ah! sinto-o bem para além das milhentas folhas de todos os tratados)
uma onda de amor invadirá tudo e todos.
E será uma primavera diferente de todas as primaveras,
porque ainda não foram inventadas as palavras para exprimi-la.

Simplesmente, nesse dia primeiro da nova criação, eu já terei partido.
A minha carne estará funda de mais para sentir o beliscão da alegria.
E os olhos cheios de terra
não verão os homens levantados
nem os campos eternamente floridos
nem a leiteira sem o seu ar de humildade.

Porém que importa?
Um dia, sei-o bem, todos estarão até que enfim de acordo.
Portanto, que importa a minha ausência?
Que importa que eu não venha a saborear os frutos da própria árvore?
Que é isso
ao pé da inabalável certeza desse dia admirável


Mário Dionísio

(«Com Todos os Homens nas Estradas do Mundo»)

7 comentários:

samuel disse...

Também ainda não conheço todas as palavras novas... mas "essa humildade" já risquei do mapa.

Abraço.

Mário Pinto disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Mário Pinto disse...

Que angústia e exasperação, ao ler este poema vivendo a realidade. O futuro é agora, a revolução é hoje!

Um abraço.

MR disse...

A «humildade», neste poema, é a opressão imposta pelos valores da sociedade retrógrada, fechada, elitista, fascista. Significa povo que rasteja sob um poder que lhe é distante.
É uma humildade sem esperança de alguma vez se transformar em orgulho.
É a humilhação imposta, de novo, cada vez mais, aos assalariados.
Muito actual este poema.

Graciete Rietsch disse...

Esse dia surgiu e os abutres encarregaram-se de o fazer recuar.
Mas ele chegará, de facto, e para ficar. Não o verei, certamente,
no entanto estou com aqueles que por ele lutam e fico feliz porque há-de chegar o dia em que o SOL nasça para todos.

Beijos.

Maria disse...

Que maravilha de poema!
A certeza de que O dia chegará!

Um beijo grande.

Fernando Samuel disse...

samuel: também eu, e é um bom começo...
Um abraço.

CRN: é a certeza de que o futuro... virá...
Um abraço.

MR: exactamente!
Um abraço.

Graciete Rietsch: é esse dia que estamos a construir todos os dias...
Um beijo.

Maria: inevitavelmente.
Um beijo grande.