POEMA

CANTO DE UM PRISIONEIRO

Prisioneiro sem algemas nem grades
sem uniforme e sem arames farpados
privo-me de chorar durante o dia
por maiores que sejam o vexame e a dor
Ansioso cultivo a flor do orgulho
e enveneno de fel as lágrimas que bebo
Também não grito que não mo consinto
nem o consentem neste ordeiro campo
E espero a noite para cantar em surdina
junto as palavras astuciosas e de rosto inocente
atiro-as ao escuro fecundas de rancor
e ainda humedecidas de um suor de sangue
e no íntimo escondendo limas de esperança

Neste universo pacato e sem algemas
nem grades visíveis e todavia existentes
adivinho tímpanos feridos pelo meu canto
e lábios com sede de limas de esperança
e ventres vazios à espera que os fecunde
o cálido e surdo rancor do meu canto

Por isso canto poemas algo inesperados
opacos sussurrantes e gratuitos como ventos
que todavia transportam invisíveis esporos
de sentido fechado como ouriços do mar
de agudos espinhos para mãos inábeis
e escondendo por dentro limas de esperanças

Fernando Couto
(In Poetas de Moçambique)

2 comentários:

Maria disse...

Só mesmo poesia, hoje, porque o que me apetece é chorar....

Um beijo

Fernando Samuel disse...

Maria: há dias assim, depois vêm os outros dias...

Um beijo.