Contos do Sul - Antigamente?


Os olhos amarelados denunciavam a nicotina avançando pelo organismo absorto nos dias da fome. Alguma memória de juventude justificando o sorriso fácil, nostálgico, contido. O porta-chaves, em forma de bolota, ganho à batota na venda do Nice das Galinhas, equilibrava as pernas franzinas em cima do desgosto profundo que lhe enchia o dia na luz bafienta do bagaço entre as gengivas da boca deserta de dentes. Sessenta anos ainda mal ganhos, de tanta dureza, e a fome gritante dos filhos na sua própria fome. Canina. Fora-lhe duro tanto remoer. Um ano ausente de ceifas, mondas ou qualquer poda que lhe pudesse ter calhado às sortes. Quanto tempo mais? Quanto tempo mais ? O casaco, comido pela bicheza e pelo suor, não convinha à brasa quarentona que estala na planície. Remendado, é certo, por algum sentido de honra que sempre sobra a quem trabalha, mas gasto. Gasto, tanto como o dia quando o sol não aguenta mais o peso do astro no horizonte anoitecido. Uma palha de trigo ceifado entre o espaço hiante do seu desassossego, e a pele queimada pelo moreno das horas mortas do seu desemprego. Como pagar o ultimo fiado na venda da ti’Ermelinda? Como calar as bocas que se levantam do fundo da miséria?

Aljustrel, 30 de Julho de 2008

6 comentários:

Anónimo disse...

Retrato da herança salazarista no Alentejo.

Sóbrio e dorido como a expressão do homem fotografado.

Nunca poderemos esquecer. Nunca poderemos perdoar.

Campaniça

XICA disse...

Gosto de te ler,gosto sobretudo deste sentir alentejano. Soberbo!

Orlando Gonçalves disse...

Ah o Alentejo, que saudades da terra quente e sobretudo do cheiro. A foto está magnifica.

caminhante disse...

António o titulo peca por alguma duvida (ou será uma afirmação),como sempre uma bela foto (visual e escrita) do sentir Alentejo.
Um abraço operário.
Herlânder

Anónimo disse...

O contra-ponto desta tua narração, tem um nome Vasco Gonçalves, esse foi o Alentejo de quem trabalha, tão generoso quanto efémero.
E a minha saudade a lembrar, algumas experiências vividas, de mão dada com a alegria dos Alentejanos.
Foto e narração, verdades inquestionáveis, felicito-te!
Abraço

Anónimo disse...

Alentejo ainda um dia hás-de cantar.