POEMA

TU, PIEDADE


(Os jornais e os filmes divulgam, com terror sinistro, a existência dos campos de concentração hitlerianos. Montes de esqueletos.)


Tu, piedade,
que vens lá do fundo
da raiz do instinto
e és capaz de incendiar o mundo
para aquecer um faminto.

Tu que me embalas
com a voz rouca
da cólera do amor
que deixa na boca
o frio das balas
e todo o amargor
da outra sede
que só se sufoca
com pus e suor
- e os dedos sangrentos
na cal da parede
dos fuzilamentos.

Tu que me afagas
como quem estrangula
com mãos de bandido...
E beijas as chagas
com lábios de gula
e chumbo derretido.

Tu que só amas
a dor com esgares
nos gritos das chamas,
nas cordas dos potros,
na cruz do Rabi
~para assim chorares,
através dos outros,
o que dói em ti.

Tu que me levas
de rastos na estrada
ao fundo da rampa
onde só há trevas
- raiz misturada
de estrelas e trampa.

Tu que descobres
toda a secura
de cinza nos frutos
que há na ternura
de chorar os pobres
de olhos enxutos.

Tu, piedade,
mãe de todas as mães
e de todos os vícios,
que lambes como os cães
oe vergões dos cilícios.

Dá-me lágrimas reais
na cara a correr
como se a pele sangrasse...
Dessas que deixam sinais
e fazem doer
por dentro da face.

Dá-me lágrimas geladas
como dedos nos gatilhos
em noite de lobos...
Que eu quero baptizar com elas
todos os filhos
da fúria das cadelas,
dos réprobos e das ladras,
de estrupos e de roubos.

Dá-me o ódio frio
que vem lá do fundo
do bafio das prisões
- ódio que há-de salvar o mundo
num dia de lágrimas nos olhos,
quentes como corações.


José Gomes Ferreira

7 comentários:

samuel disse...

Dia que poderá bem ser, finalmente, o princípio do fim do ódio...

Abraço.

Graciete Rietsch disse...

Piedade, caridade, esmola ,sopa de pobres..... só geram conformismo e afastam as pessoas da verdadeira luta por um mundo novo. No meu dicionário essas palavras e outras equivalentes não existem e são integalmnte substituídas pela palavra justiça.

Grande poema.

Um beijo.

Maria disse...

Um belo poema de uma raiva especial, militante... e no entanto terno...

Um beijo grande.

Mário disse...

Considerando a piedade uma linha inultrapassável, ao contrário da caridade, recordar ao homem a sua condição é parte das particularidades virtuosas deste poeta, militante. Por outro lado, ainda aguentando o destroço permanente que o paradigma que viveu tentava conseguir na sua mente, procura transmitir aos homens que existe outro dia, só um dia, o dia.
Imenso José Gomes Ferreira!

Obrigado Fernando Samuel!

Justine disse...

O Horror. E a esperança...

Fernando Samuel disse...

samuel: o dia novo...
Um abraço.

Graciete Rietsch: Justiça, Solidariedade, Fraternidade...
Um beijo.

Maria: na militância há sempre ternura...
Um beijo grande.

Mário: o Dia pelo qul continuamos a lutar e que conquistaremos.
Um abraço.

Justine: ... E a lucidez...
Um beijo.

Op! disse...

Estou mesmo farto da piedade, desta piedade que me dão mas que não preciso: QUERO OS MEUS DIREITOS!