POEMA

HERÓICAS


XX



(Revolução dos marinheiros nos navios de guerra portugueses ancorados no Tejo. Foram vencidos e enviados pelos fascistas para o Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. Futuro, decora este nome, símbolo de infâmia: Tarrafal.)





Lá fora, não sei onde
- talvez dentro de mim -
ouço o ranger dum barco
na invenção das ondas
aladas no vento...


De súbito os fogueiros param trémulos
e perguntam ao fogo: «Para quê?»


Os pilotos largam os lemes
e perguntam às ondas: «Para quê?»


A tripulação desce dos mastros
e pergunta ao vento:«Para quê?»


Milhões de vozes no mesmo instante do mundo
rugem no céu um silêncio de tempestade.

Milhões de bocas paralelas
vão talvez gritar o ódio às máquinas
- mãos que se perderam dos homens -
neste planeta dos dias e das noites
que anda à roda do Sol
movido por um motor
monótono e igual.

Milhões de lábios vão desenhar talvez a mesma cólera
que já pairou no silêncio da criação do mundo.

Sim. PARA QUÊ?

Mas há sempre um dedo a apontar no mapa
a ferrugem dum porto...
Há sempre no horizonte uma ilha azul
onde os frutos dormem nas árvores
a amargura das bocas com sede...
Há sempre a ilusão dum destino
na indiferença das vagas...

E os homens sorriem
tranquilamente desesperados.
E os comboios chegam à tabela
com farrapos da vagabundos nas rodas...
E os mineiros vão a enterrar todas as manhãs...
E o sol acerta-se pelos relógios...
E o trigo cresce para discursos de propaganda
em paisagens de moinhos mortos...
E as máquinas fabricam fome e curvas estatísticas...
E os pássaros caem fuzilados como os poetas...

E o céu parece um poço por cima das cabeças
a reflectir as verdadeiras estrelas
que nunca vimos...
E os navios atracam ao cais com música a bordo
e carregamentos de lágrimas nos porões...
E os namorados casam no fim dos romances.

Tudo exacto e disperso
nesta rede complicada de pequenos destinos...

Tudo caos e miséria
nesta paisagem mecânica
com repetição de flores...

Tudo sem sentido!

Até a morte, onde dantes apodrecia o grande bairro dos pobres,
parece agora oca nos últimos olhos resignados.

Tudo sem sentido!

Só nas fossas do suor
os loucos de sempre
continuam a sonhar
com os olhos sonâmbulos
onde já arderam todas as lágrimas
menos as das manhãs das flores sussurrantes de orvalho...

Nada querem da vida,
nem da morte,
nem do amor...

Mas sorriem confiantes
para as teias de aranha,
a acreditar num Sentido qualquer
para além do sentido das bússolas.

Sorriem para a Sombra
que engrinalda as grades
duma luz absurda
de sol podre.


José Gomes Ferreira

5 comentários:

Justine disse...

Tarrafal, hoje local de memória e símbolo de resistência!

Maria disse...

E nossa obrigação continuar o sonho de quem sonhou assim...

Um beijo grande.

samuel disse...

Que fantástica curta metragem faria com este texto... se soubesse. Pena... que quem sabe, não faça.

Abraço.

Graciete Rietsch disse...

Os loucos de sempre e os mortos que os acompanharam, estiveram ao lado dos Capitães do noso ABRIL e, com o Povo Anónimo. fizeram da revolta uma revolução.
Mais uma vez, camarada, nos apresentas um grandioso poema.

Obrigada e um beijo.

Fernando Samuel disse...

Justine: memória a preservar, para que nunca mais.
Um beijo.

Maria: e assim faremos.
Um beijo grande.

samuel: talvez porque hoje a preocupação dominante é a de silenciar aquele tempo, branqueá-lo...
Um abraço.

Graciete Rietsch: os presos do Tarrafal foram construtores de Abril.
Um beijo.