POEMA

CASA DE PENHORES



I

Rua estreita - não sei quem lá passou.
Porta aberta - não sei quem lá entrou.
Não sei - não sei dizer e não me importa,
nem a rua, cansada de ser rua,
nem a porta cansada de ser porta.

Mas foi aqui, na rua triste e nua,
e junto à porta aberta, fria e larga,
que me surgiu aquela frase amarga
e nunca mais me deixou:

- Schubert empenhou o violino e o mundo não estoirou!


II

Mas não falemos de Schubert... Falemos da velha tonta...
- A velha tonta que perdeu a neta
e anda, de porta em porta, a imitá-la...

Diz assim, aflautando a sua fala:

«Ó velha, conta... ó velha, conta
aquela história triste do poeta...»

- A velha tonta que perdeu a neta
todos os dias ajoelha
em frente da lamparina...

(O Cristo empenhou-o a velha
para salvar a neta pequenina...)

E a velha tonta reza à lamparina:

- «Meu Deus, perdoa-me a audácia
de ter teu Filho empenhado...
- Foi por causa da conta da farmácia...
Perdão, meu Deus, perdão!»

- E o Cristo, resignado,
em três meses de juro crucificado,
espera o dia do leilão.


Sidónio Muralha
(«Beco» - 1941)

4 comentários:

samuel disse...

Este espantoso poema apresentou-mo há muitos anos uma professora...
Belo poema, grande professora! (ou o contrário...)

Abraço.

Maria disse...

Que maravilha de poema!
Comovente, até. Sem me espantar, pois é poesia... da melhor. E a poesia desperta tantos sentimentos...

Um beijo grande

Graciete Rietsch disse...

Este maravilhoso poema já eu conhecia. Mas, infelizmente agora,as casas de penhores já funcionam de novo quando tinham sido praticamente eliminadas após o 25 de Abril.E com lucros absolutamente ilegais. Como temos retrocedido na caminhada que nessa data iniciamos para o futuro!!!!!!
Um beijo camarada.

Fernando Samuel disse...

samuel: professora à altura do poema e vice versa...
Um abraço.

Maria: comoção, raiva, revolta, carinho, ternura...
Um beijo grande.

Graciete Rietsch: as casas de penhores são hoje em maior número do que eram no tempo do fascismo.
Um beijo.