POEMA

SÓCIO GRANDE + SÓCIOS PEQUENOS


Havia no ar sornice e expectativa;
Não tinha chegado ainda o senhor Tota.
Todos falavam por falar, todos esperavam o senhor Tota.

«As reuniões não se fizeram para dormir.
É preciso fomentar as vendas da loja três.
Então as obras na loja quatro,
são as obras de Santa Engrácia?
E o senhor, o senhor que é que lá está a fazer?
E o senhor, o senhor com os seus cabelos brancos
o que é que vendeu nesta viagem?
Fez o que pôde, não!,
é preciso fazer sempre mais do que se pode.
A mercadoria é de terceira, mas não é boa?,
os senhores é que não sabem vender...
Os senhores é que não a querem vender...
E assim, onde é que isto tudo vai parar?»

O senhor Tota já tinha chegado.

- Senhor Tota, é necessário substituto para a loja oito.
O rapaz coitado só tem um rim
e a acartar, a acartar, tem o outro doente.
Pediu-me para lhe pedir, bem... agora era preciso...
precisava de algum dinheiro para a estreptomicina...
bem, é claro, trata-se de uma vida...

«Mas em que é que ele se meteu?
É a fazenda que tem bacilos?
Não se estejam a rir, é claro que não tem bacilos,
mas isto aqui também não é nenhum saco roto;
O senhor não sabe? O senhor agora que é sócio não sabe?
Então se sabe por que é que não lhe disse?»

Bem, o rapaz é ainda muito novo:
e assim, só com um rim, a acartar, a acartar...
O senhor Tota compreende, sim, os fardos são pesados...
Está bem, senhor Tota, pronto está bem...
Não é nada comigo,
eu ainda tenho os dois, por enquanto...

«Por enquanto?
Não, o senhor não compreende as minhas intenções.
Não é com esmolas que se derruba a miséria;
Deprimir, humilhar o homem nosso semelhante
é deprimir e humilhar a nossa própria dignidade.
E a esmola humilha que a dá e quem a recebe.

Estamos aqui para tratar de negócios
mas sempre lhe direi:

Isto está caótico!
Está tudo caótico!!
São precisas vastas reformas, reformas integrais.
Não se trata agora da estreptomicina
nem do rapaz, coitado, também tenho pena dele
(ele não acarta assim tanto como diz...)
mas como sabe o negócio vai mau.

Um remédio a mais, um remédio a menos, não conta.
O que é necessário, o que é fundamental,
são hospitais, hospitais, muitos hospitais...
Percebe?
Muitos hospitais!!!»

O rapaz morreu.

O senhor Tota ainda não morreu.


Francisco Viana

5 comentários:

samuel disse...

Pois não, não morreu.
Até já "aumentou" o nome para "santander". É um artista e de facto, isto não vai lá com esmolas. Nisso tem o sr. Tota razão.

Anónimo disse...

Confesso a minha ignorância. Este Francisco Viana é o mesmo que escreveu a letra da canção "Feiticeira" cantada por Luís Represas?

Uma prosa poética, com sentido das palavras camuflado, muito fácil de interpretar, mas cujo conteúdo me conseguiu perturbar bastante.

Anónimo disse...

Fernando,
Que diria Soeiro, camarada Fernando?

A revolução é hoje!

Ana Camarra disse...

Uma história exemplar, infelizmente muitos Srs Totas ainda por cá.

beijos

Fernando Samuel disse...

samuel: toda a razão...
Um abraço.

maria teresa: é exactamente esse Francisco Viana que escreveu parte grande das primeiras coisas dos Trovante.
Um beijo amigo.

crn: repetiria o que disse, talvez...
Um abraço.

ana camarra: muitos, muitos... quase se pode dizer: cada vez mais...
Um beijo.