POEMA

ENQUANTO


Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar nas artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e mães,
asndarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das casas;
enquanto isto acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA.


António Gedeão

10 comentários:

Anónimo disse...

Sinto-me bem aqui neste Cravo de Abril, vou agradecer na forma de um Hino de recordações amargas e que noembargam ainda hoje as palavras
"... Vá camarada, mais um passo
Já uma estrela se levanta
Cada fio de vontade são dois braços
E cada braço uma alavanca"

Obrigada, pela companhia e pelas boas palavras
Um abraço
lagartinha de Alhos Vedros

Anónimo disse...

Magnífica recordação. Há quantos anos não lia este poema!
Um grande abraço camarada

Maria disse...

Um poema fortíssimo de resistência, tão bom de ler (e meditar) neste domingo...
Tenho que reler Gedeão...

Um beijo grande

Ana Camarra disse...

Já quase que não me lembrava deste!
Mais uma vez obigado.

O tal titulo é teu!

beijos

Fernando Samuel disse...

lagartinha de Alhos Vedros:
Oiço ruirem os muros
quebrarem-se as grades de ferro da nossa prisão
treme, carrasco, que a morte te espera
na aurora de fogo da libertação...

Obrigado pela visita e pelo comentário. Ainda bem que vieste. Volta sempre.
um beijo grande.

aristides; abraço grande, camarada.

maria: convém ter o gedeão sempre à mão...
Beijo grande.

ana camarra: Um beijo grande, camarada.

Anónimo disse...

"enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho dos olhos... haverá guerra"
(Bob Marley)

Beijo, amigo
Ausenda

Lúcia disse...

Um dos poemas que mais gosto do Gedeão. Um grito: um verdadeiro grito!
Abraço

Lúcia disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
samuel disse...

Eu tenho a sorte de "cometer" (de vez em quando) o tal recital a meias com o Manel Freire, só de Gedeão, onde este poema é quase sempre dito...

Abraço

miguel disse...

um dos mais fortes poemas de apelo, resistência e intervenção. enquanto o homem não for livre, a arte deve ser um meio para a libertação. abaixo o mistério da poesia.