vizinhança de boa gente


abro a porta e a alegria pueril dos meus vizinhos meninos invade o meu dia nos carrinhos e nos bonecos amontoados pela lama. zureida, tito, michel e um rol sem fim de primos, sobrinhos, irmãos... tenra idade que me alcunhou de palhaço e me pergunta porque vivo sozinho. faz-lhes confusão a minha (aparente) solidão. mas logo esquecem as perguntas dificeis quando das minhas mãos - do palhaço que sempre nasce no soriso deles - saem balões enfeitados de objectos da sua imaginação. a zureida sempre quer flores e coroas de fadas. o tito pede-me cães e bichos que povoam o seu sentir e lhe fazem adivinhar um futuro junto da bicharada. quando me ponho a caminho do trabalho, fica a criançada dedicada a ser infância nas varinhas mágicas com que polvilham o burburinho da sua idade. ao regressar, se acaso ainda estão pela escola ou ausentes noutras alegrias, abro a janela da cozinha, antevendo a sua estridente chegada. lugar mais que marcado pela nossa cumplicidade, é ve-los debruçados, daí a nada, fazendo entrar a sua companhia... rachando o meu ser sozinho, ocupado com afazeres laborais ou domésticos. se preparo o jantar, pedem-me bolachas ou qualquer guloseima que sabem que lhe guardo. e lá ficam, aos magotes (às vezes apenas a zureida aparece, rosto iluminado pelo sorriso cigano e fácil) pendurados na minha janela, que assim se torna na mais bela do mundo. homenageiam as origens (que se calhar ainda ninguém lhes explicou) fazendo contorcionismos no corpo que mais tarde (talvez assombrados pela mesma solidão que me acusam) conhecerão como sendo primata e dolorosamente finito. às vezes confundem a minha vaidade, fazendo-me crer que o cozinhado cheira bem ou que gostam daqueles bocadinhos comigo. sei hoje que cheiram a flores, a searas vermelhas os seus cabelos de gente brava, criados que foram, que são, a amar a planicie de que são malteses. amantes profundos das entranhas. quando a mãe ou outra mulher lá de casa os chama para a janta, anoitece repentinamente na minha casa. amanhã haverá novamente a lama e os balões. o sorriso cumplice de me saberem um deles. na minha janela arderá novamente a planicie nos potros livres no seu riso. e eu, ainda que por vezes sozinho, sou feliz. obrigado vizinhança... de boa gente.

5 comentários:

Maria disse...

Comoveste-me, António. Deve ser da hora...
:))

És um poeta, sabias?

Um beijo, Camarada

Sérgio Ribeiro disse...

Belo texto, vizinho!
Um abraço amigo

nha disse...

...gostei...tu escreves sempre com muito sentimento!!

Bêjo

Fernando Samuel disse...

Bonito!


Um abraço.

samuel disse...

"Hijos de la luna", como canta uma belíssima canção espanhola...
Belo texto!

Abraço.