POEMA

ARTE POÉTICA


A poesia não está nas olheiras imorais de Ofélia
nem no jardim dos lilases.
A poesia está na vida.
Nas artérias imensa cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores constantes,
na bicha de automóveis rápidos, de todos os feitios e de todas as cores,
nas máquinas da fábrica
e no fumo da fábrica.
A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,
no vai-vem de milhões de pessoas ou falando ou praguejando ou rindo.
Está no riso da loira da tabacaria,
vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na doca,
nos braços negros dos carregadores de carvão,
no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
- e só durou esse minuto.
A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas dos comboios a caminho, a caminho, a caminho
de terras sempre mais longe,
nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.

A poesia está na luta dos homens,
está nos olhos rasgados abertos para amanhã.


Mário Dionísio

(«Com Todos os Homens nas Estradas do Mundo»)


(Este é o último poema do ciclo dedicado pelo Cravo de Abril a Mário Dionísio.
A partir de amanhã teremos connosco um outro grande nome da poesia neo-realista do Novo Cancioneiro: Joaquim Namorado)

9 comentários:

samuel disse...

Grande final!
Rasguemos e abramos pois os olhos para o amanhã!

Abraço.

CRN disse...

Sejamos poetas, pois!
Belo ciclo, venha o próximo!

Um abraço!

Maria disse...

Belíssimo poema!
Venha de lá o Namorado.

Um beijo grande.

svasconcelos disse...

Poesia, mais do que sonetos "de fina nata", é, sobretudo, vida, quotidiano, afecto...
beijo,

MR disse...

Gostei muito de acompanhar, neste cantinho de malha da rede, a exposição de poemas de Mário Dionísio.
Já ouvira falar muito dele, mas julgo não ter lido tantas páginas da sua magnífica escrita. Reconheci, nalgumas linhas, a escrita das entre-linhas de outros tempos.
Agradeço, portanto.
Joaquim Namorado e Mário Dionísio são nomes de referência da luta anti-fascista, pela liberdade, a democracia, a paz e o resto que ainda falta.
Não é só poesia que aqui está. É a luta, é a vida.

Anónimo disse...

Só posso dizer: Cravo de Abril,como me tens alimentado!Bem-vindo Joaquim Namorado.
Kina

Graciete Rietsch disse...

Obrigada pelo Mário Dionísio e obrigada também desde já pelo Joaquim Namorado.

Um beijo.

Fernando Samuel disse...

samuel: e o amanhã pode estar mesmo ali...
Um abraço.

CRN: continuamos com o neo-realismo.
Um abraço.

Maria: ele aí está.
Um beijo grande.

smvasconcelos: e luta...
Um beijo.

MR: de facto, são poemas cheios de entrelinhas...(tal como os que se seguem)
Um abraço.

Kina: um abraço amigo.

Graciete Rietsch: um beijo.

Anónimo disse...

a poesia...
anda ardomecida na pele de quem não se sente.
abraço do vale, camarada.