POEMA

O ANDAIME


O andaime era alto,
alto...
(e uma viga estava mal segura...)

Os ladrilhos vermelhos
saltavam de mão em mão
como peixes voadores...;
os aprendizes traziam e levavam
taboleiros de cal;
e os muros cresciam
e abriam-se janelas
e os andares subiam.

O andaime era cada vez mais alto,
mais alto...
(e aquela viga estava mal segura...)
Os operários cantavam - o ritmo dos braços,
o bater dos martelos, era o ritmo da canção
- cantavam e riam...

Em volta, a Natureza representava a comédia
da mais inteira confiança:
o sol baixava num céu calmo, infinitamente azul,
um céu de charco;
da rua subia o marasmo destas horas
em que os burgueses dormem a sesta
e as moscas zumbem nas vitrines;
a canção era a mesma de sempre:
o mesmo bater dos martelos que enchia o silêncio;
um bando de pombas viera poisar,
confiadamente,
no cimo alto das estacas...
(e uma viga estava mal segura...)

Os operários cantavam,
cantavam e riam;
nada lhes dizia
da ameaça que pesava
- em toda a parte a traição do encoberto...

E o andaime era alto...
tão alto que,
quando ele caiu, como uma ave ferida,
o seu corpo ficou desenhado a sangue na calçada,
que era um outro santo-sudário.
Então a canção parou em todas as bocas
e mais as roldanas e o bater dos martelos;
por um momento
tudo parou em redor do mesmo espanto.
Mas a vida continuou
e a Natureza afivelou de novo
a máscara da cega confiança.

- Depois levaram o corpo para a morgue
e lavaram com baldes de água
o sangue
que secara na calçada e tinha
um aspecto repugnante.

A casa é alta,
alta...
tem ascensor, água encanada e uma mercearia
no rés-do-chão;
as andorinhas fizeram ninhos nos beirais;
das varandas debruçam-se cravos e malvas;
uma toalha que enxuga numa janela
é uma bandeira de paz;
a menina loira, do terceiro andar, esquerdo,
namora e vai casar...

Todos os dias
vem um caos destes nos jornais...



Joaquim Namorado

(«Arquitectura»)

8 comentários:

svasconcelos disse...

Um quadro vivo,perturbador, de todos os dias, este poema...
beijo.

Maria disse...

Brutal!
E infelizmente tão actual, ainda...

Um beijo grande.

Graciete Rietsch disse...

Maravilhoso e terrível poema11111
Segurança no trabalho existe em pequena escala e as pessoas continuam despreocupamente a viver as suas vidas porque"estas coisas só acontecem aos outrs". Há muita falta de solidariedade.
Outra tarefa importante da Revolução.

Beijos.

samuel disse...

Durante o minuto que levei a ler este poema...

Abraço.

Nelson Ricardo disse...

É um poema que traz uma descrição muito vívida do quotidiano do trabalho e dos perigos que ele carrega consigo.

O Puma disse...

é assim

quando o poeta se projecta

do oitavo verso

do seu poema

Abraço

GR disse...

Por um minuto todos param,
um minuto depois, tudo volta à sua rotina.
Só os novos órfãos não esquecem.

Bjs,

GR

Fernando Samuel disse...

Para todos:

Este poema de Joaquim Namorado parece uma cópia do «Desastre» de Cesário Verde... no entanto, quando Namorado escreveu o seu «Andaime» ainda o poema do Cesário não era conhecido: as condições de trabalho dos operários da construção civil é que eram as mesmas - que hoje se mantêm, em muitos aspectos.

Abraços e beijos.