POEMA

NÃO


1


Venham todos os meninos nascidos nas palhas
duma mãe camponesa de braços vergados aos molhos de espigas
e dum pai carpinteiro.
Venham todos os vultos das docas sombrias
e todas as mulheres das ruelas de lâmpada vermelha.
Venham todos os moços de braços inúteis
e todas as raparigas de olhos desiludidos
e todos os velhos que não tiveram mocidade.
Venham.
Vamos gritar que não!
Dos nosso braços levantados para regiões desconhecidas,
para multidões de estrelas,
nasceram aeroplanos.
Dos nosso braços abertos para abraçar a terra,
nasceram máquinas inimagináveis.
Mas as máquinas traíram.
E os aeroplanos traíram.
E ficou só um campo cheio de corpos inúteis.
E ficou só um campo coalhado de mortos.
Venham.
Vamos dizer que não!
O sopro de amor que chicoteou as veias
estendeu-nos os braços para novas ferramentas,
para a construção imensa da Cidade Nova.
Mas o corpo ficou-nos agarrado ao braço pegajoso da carne machucada.
E a cabeça desligou-se para sonhos impossíveis.


Mário Dionísio

(«Com Todos os Homens nas Estradas do Mundo»)

6 comentários:

samuel disse...

"Dos nosso braços levantados para regiões desconhecidas,
para multidões de estrelas,
nasceram aeroplanos.
Dos nosso braços abertos para abraçar a terra,
nasceram máquinas inimagináveis".

Um espanto!!! Mas vamos, vamos gritar que não!

Abraço.

Justine disse...

É se os sonhos impossíveis se transformam em possíveis?

MR disse...

Parece-me perceber, neste poema, um apelo à conservação da lucidez mesmo nas condições mais terríveis.

Graciete Rietsch disse...

Dos braços do povo saiu o futuro que foi traído pelos usurpadores. É preciso que o POVO se una e lute gritando "Não passarão"
Mais um poema lindo mas um pouco desiludido.
"mas o corpo ficou-nos agarrado ao braço pegajoso e machucado
E a cabeça desligou-se para sonhos impossíveis"
Isso não acontecerá. O sonho transformar-se-á em vida.

Um grande beijo.

GR disse...

Um belo poema.
Mas Mário Dionísio por vezes intimida-me.

Bjs,

GR

Maria disse...

Terrivelmente bonito!

Um beijo grande.