A PORTUGAL
Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de nascido nela.
Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.
Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, de vileza,
de mesquinhez, de fátua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol caiada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço: mas ser's minha, não.
Jorge de Sena
(com este «A Portugal» - poema escrito no exílio, em 1962, poema amargo, amargo... - encerra-se este ciclo dedicado a Jorge de Sena, com o qual o Cravo de Abril homenageou o Poeta cujos restos mortais foram - finalmente! - trasladados para Portugal)
8 comentários:
Jorge de Sena é um poeta amargo, corrosivo, crítico, porém tantas vezes certeiro e hei-de mais e melhor. Mas não partilho do seu anti-patriotismo, embora consiga entende-lo...
Finalmente regressou à terra que ele mesmo admitiu pertencer, mesmo não a querendo, mesmo sendo terra de ninguém...
Se ainda estivesse entre nós,e atento ao Portugal dos nossos dias,desconfio que os seus poemas seriam os mesmos...carregados da mesma amargura.
beijos,
* hei-de lê-lo mais e melhor
Não pode ser mais amargo... e acho que foi um caminho praticamente sem retorno.
Daí que tenha ficado na dúvida sobre se esta trasladação recente, sobretudo por via de algumas presenças na cerimónia, foi de facto uma honraria, ou mais uma desconsideração...
Abraço.
Forte. E amargo. Certeiro, sempre.
Mas belo, ao mesmo tempo.
Bonita homenagem do Cravo de Abril ao grande Jorge de Sena.
Um beijo grande
Para quê palavras? é mais uma realidade vivida e sentida de maneira não menos patriotica, díria até - mais patriótica pelo facto de ser tão sentida!
Obrigado pela divulgação!
Abraço grande.
Regressou finalmente à vida e com a homenagem, entre outras, do ministro do colectivo que tanto defendia.
A revolução é hoje e já votei CDU no 21.
como eu compreendo esta sensação de não querer...
a minha realidade não foi a dele, mas vi outras que bem podiam ser a nossa.
não conhecia(sei tão pouco sobre tanta coisa), e este, vou ter de o declamar.
abraço do vale
smvasconcelos: de acordo com tudo, excepto com a classificação de «anti-patriotismo»...
Um beijo.
samuel: pelas presenças e, especialmente, pelas ausências: afinal, pelo que me apercebi, quem lá estava, era essencialmente o «Portugal» deste poema...
Um abraço.
Maria: é como, em meia dúzia de palavras, dizes...
Um beijo grande.
poesianopopular: a Pátria é o povo...
Um abraço grande.
CRN: quem vota longe da Pátria, vota mais cedo...
Um abraço.
duarte: bem gostaria de te ouvir a declamar este poema...
Um abraço.
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