POEMA

CASA DE PENHORES


I

Rua estreita - não sei quem lá passou.
Porta aberta - não sei quem lá entrou.
Não sei - não sei dizer e não me importa,
nem a rua, cansada de ser rua,
nem a porta, cansada de ser porta.

Mas foi aqui, na rua triste e nua,
e junto à porta aberta, fria e larga,
que me surgiu aquela frase amarga
e nunca mais me deixou:
- Schubert empenhou o violino e o mundo não estoirou!

II

Mas não falemos de Schubert... falemos da velha tonta...
- a velha tonta que perdeu a neta
e anda, de porta em porta, a imitá-la...

Diz assim, aflautando a sua fala:

«Ó velha, conta... ó velha, conta
aquela história triste do poeta...»

- A velha tonta que perdeu a neta
todos os dias ajoelha
em frente da lamparina...

(O Cristo empenhou-o a velha
para salvar a neta pequenina...)

E a velha tonta reza à lamparina:

- «Meu Deus, perdoa-me a audácia
de ter teu Filho empenhado...
- Foi por causa da conta da farmácia...
Perdão, meu Deus, perdão!»

- E o Cristo, resignado,
em três meses de juro crucificado,
espera o dia do leilão.


Sidónio Muralha

13 comentários:

Maria disse...

Palavras fortíssimas.
Um retrato que não queremos que exista, mas que temos volte a proliferar por aí...

Um beijo grande

Maria disse...

tememos, e não temos

;))

GR disse...

Um poema lindo,comovente.
Na minha terrinha existia uma casa de penhores, depois do 25 de Abril dizem que encerrou.
Hoje, há várias e com publicidade luminosa à porta.

Bjs,

GR

Pedro disse...

É uma surpresa para a minha namorada:


És o voo de Gagarine

Foste o meu amor primeiro
E último serás nas nuvens da dor.
Pois és para mim o Cosmos recriado,
Big Bang e o fogo primordial,
Supernova e explosão de mil sóis:
Pulsar, nebulosa, galáxia espiral
Mais a poeira das estrelas

E a música das esferas…
Espectro electromagnético,
Súmula gravítica,
És a relatividade tornada quântica!
És um continuum espaço-tempo,
Paradoxo da astrofísica
E os dados do jogo de Deus!

És o voo de Gagarine,
Foguetão, lançamento
E perfeita entrada em órbita:
Bip bip Sputnik
Muito, muito, lá para os Céus
Desafinado a América
E os domínios de Deus.

Ana Camarra disse...

Fernando Samuel

Sobre ouvi histórias das casas de penhores, não me lembrava delas fisicamente, eram histórias do passado, como os meninos sem sapatos, crianças trabalhadoras ou uma sardinha para 4.
Hoje voltaram a existir!

beijo

Anónimo disse...

Estão de regresso, infelizmente.
Isto não pode continuar assim...
Abraço

Sílvia disse...

Sempre que leio este poeta as palavras ficam-me suspensas tal é o maravilhamento que me assalta... Obrigada por reincidires tantas vezes na divulgação de palavras como estas!
(Sabes que dificilmente se encontram os livros de Sidónio Muralha?E eu já insisti por umas quantas livrarias. Mas conheço uma que, dizem, tem relíquias que ninguém encontra noutros sítios... veremos:)
beijos,
Sílvia Mv

Sílvia disse...

Fernando Samuel,
Permite-me divulgar esta informação que certamente interessará a muitos que por cá passam: a única livraria de fundos em Portugal, onde em última instância se pode encontrar um exemplar "que mais ninguém tem", nem Fnac, nem Bertrand ou quejandos. Lá encontrei o Sidónio Muralha(!), "A cabana do pai Tomás" (experimentem encontrar este livro, inclusive na Europa América!) e "Inês vai morrer" da Renata Vigano(que encomendei à Fnac há meses e esta semana disseram-me que está esgotado!).
Esta pérola está aqui:
http://livraria-esperanca.pt
e fica no Funchal.
beijos, boas encomendas:)))
Sílvia MV

samuel disse...

E que mais poderá fazer o Cristo a não ser resignar-se? Já nós...

Abraço.

Ana Camarra disse...

Silvia

Li a "Inês vai morrer" na adolescência, nunca mais o consegui apanhar....

beijos

valquíria d'alameda disse...

Gosto muito da Casa de Penhores. Na minha cidade começam de novo a aparecer. Cria tristeza. Há tanto tempo que se não viam... coisas... Um dia hás-de juntar os poemas que tens ou temos na nossa memória e - dou-te o gozo da escolha - um poema, um conto, uma novela - farás então obra para que ninguém os esqueça. Um beijo
valquíria d'alameda

Sílvia disse...

Ana:
Eu também, emprestado por um camarada! :) E tendo sido um livro que me marcou quis resgatá-lo. Após meses de procura, encontrei-o só na livraria Esperança(ontem, online) e... esgotei-o, para já...
beijos,
Sílvia

Fernando Samuel disse...

Maria: já está a proliferar por aí e de que maneira.
Um beijo grande.

GR: de facto, Abril quase acabou com elas...
Um beijo.

F: Que bela surpresa para a tua namorada.
Um abraço.

Ana Camarra: há por aí casas dessas a abrir por toda a parte; aqui para os meus lados, com frequência há propaganda delas nas caixas do correio.
Um beijo.

Ludo Rex: de regresso e em força.
Um abraço.

Silvia MV: De facto, Sidónio Muralha é um dos grandes nomes da poesia portuguesa. Obrigado pela utilíssima informação.
Um beijo.

samuel: tanto mais que a resignação é apanágio dos cristos...
Um abraço.

Ana Camarra: que grande romance!, eu devo tê-lo por aí.
Um beijo.

Valquíria d'Alameda: Vamos a isso - mas a escolha é difícil.
Um beijo.