POEMA

CAFÉ


LIX



(Estamos sozinhos no Universo.)


Todas as noites toca um telefone na Lua.

Sou eu, sou eu a marcar o número automático dos poetas de hoje
para gritar cá de baixo em código de astros:

Está lá? Está lá? Aqui Terra, zero, zero, zero, zero, zero.
S.O.S.! Fome, ódio de mil patas, tiranos com cutelos de cinzas,
mortos que só vêem o céu através dos caminhos das raízes
- e as mães a baterem nos filhos
para lhes ensinarem a instrução primária das lágrimas.
Aqui escravos, preguiça, azorragues de chumbo derretido,
exportação de tédio dos palácios dos ricos, carregamentos de bocejos,
suor em latas para discursos de demagogos,
mordaças com restos de bocas de cadáveres,
fúria de túmulos, guerra, raptos, incestos, automóveis imbecis,
saques, mandíbulas nos olhos a roerem o azul
- e os dedos de súbito de ferro-em-brasa nos seios das mulheres,
lodo de sol aparente
que continuam a ser deusas nos jantares de cerimónia
com os colos luzidios das horas empertigadas.
Aqui planeta zero, zero, zero, nada, torres de musgo,
punhais a rasgarem noites em vez de chagas,
países de arame farpado, vulcões de sangue,
batalhas trespassadas do frio dos esqueletos concretos
- e ainda por cima a carne das mulheres só é real um momento,
um momento apenas
e em vão tentamos fixá-la com um sopro de frio
no rasto deste defunto com um caixão às costas
cheio de corações vivos.

S.O.S! S.O.S.!

Fantasmas de todos os planetas! Fantasmas de todos os planetas!
Saltai em pára-quedas no silêncio que há por dentro do silêncio
e vinde salvar-nos!

Vinde salvar os homens
para aqui abandonados ao pesadelo de si mesmos,
só a serem homens,
homens apenas,
homens sempre,
de manhã até à noite,
semi-homens,
infra-homens,
super-homens,
ex-homens...
E fartos, fartos, fartos, fartos, fartos, fartos
desta desistência
de já nem quererem ser deuses!

Nem de transfomarem os cavalos em relâmpagos!


José Gomes Ferreira

6 comentários:

Anónimo disse...

Fernando,

Vou publicar este poema noutro blogue, não sei adjectivá-lo verbalmente.


Abraço

svasconcelos disse...

Fortíssimo! Não conhecia e é de uma força verbal e carga poética imensa! Um grito também e um alerta para a pequenez dos homens...
obrigada pela partilha.
Um beijo!

Maria disse...

Este grito-poema (ou poema-grito?) é soberbo!

Um beijo grande.

Graciete Rietsch disse...

Não encontro palavras para exprimir o que sinto petante este grito de dor e revolta.

Um beijo.

samuel disse...

Quem gritava desta maneira contra a desistência... estava tão longe de desistir!

"e as mães a baterem nos filhos
para lhes ensinarem a instrução primária das lágrimas"... é tremendo!

Abraço.

Fernando Samuel disse...

Anónimo: um abraço.

smvasconcelos: é tudo isso, de facto.
Um beijo.

Maria: ou ambas as coisas...
Um beijo grande.

Graciete Rietsch: um beijo.

samuel: estava no centro da acção...
Um abraço.