Numa arrumação de papéis - operação chata mas regra geral de grande utilidade... - veio-me parar às mãos um recorte do semanário O Jornal de 12 de Junho de 1980, com uma entrevista de Augusto Abelaira e Fernando Assis Pacheco ao Poeta José Gomes Ferreira.
Por essa altura, 1980, o Poeta Militante, então com 80 anos de idade, tinha decidido aderir ao PCP e, naturalmente, foi-lhe perguntado «o que é que explica a sua adesão, com 80 anos, ao Partido Comunista?»
Aqui fica a primeira parte da resposta do Poeta Camarada - o resto... fica para amanhã.
«Explico isso muito facilmente. Primeiro: marca a Revolução de Outubro, que foi de uma importância muito grande para mim. Segundo: a Revolução foi sempre para mim um sonho, um desejo ardente, jacobino, foi sempre a minha ideia fixa, o meu misticismo foi sempre o da Revolução. E isso sente-se um pouco em todas as minhas coisas escritas, embora muitas vezes de modo não explícito, mas quem quisesse dar-se a esse trabalho... trabalho, enfim, que não vale a pena fazer. Aconteceu comigo o que aconteceu com outros, até na URSS durante a Revolução de Outubro: e fui conquistado pelo único partido da fraternidade, da liberdade popular, da justiça democrática e da ordem.
Quando ia a um comício, sempre me agradaram os comícios, mas os que mais me impressionavam eram os do PCP, onde os homens me pareciam mais fraternos e entusiastas.
Parece-me que foi o Zé Gomes, o poeta Zé Gomes, que no tempo da fascismo escreveu qualquer coisa parecida: «os homens em multidão são melhores do que são»...
No tempo do fascismo não havia «independentes», mas «simpatizantes, militantes e clandestinos». Bem. Com o desenrolar dos acontecimentos, e com esta divisão que houve, eu, que até tinha qualquer coisa de anarquista herdada dos tempos d'A Batalha e do anarco-sindicalismo (porque o Partido Comunista Português, é preciso não esquecer, é um dos poucos partidos da Europa fundado, digamos assim, por anarquistas, e daí esta estranha coisa de o PCP me parecer diferente dos outros partidos comunistas, com o seu perfil especial de liberdade autodisciplinada) vi que à minha volta as pessoas começaram a julgar-me comunista.
Em 25 de Abril porém, era presidente da Associação Portuguesa de Escritores, e nessa altura atirei-me como ninguém para os jornais, lancei-me na primeira página do Diário de Notícias, na Vida Mundial, no Século, escrevia outro género de crónicas, mais ligadas ao passado, como uma espécie de um contraponto aos que expunham o seu esquerdismo, e de repente comecei a sentir à minha volta que todos me julgam comunista e que sou comunista, eu mesmo começo a sentir-me comunista sem saber como.
Reparo de facto que estou sempre ao lado do Partido Comunista e começo a ser sincero comigo o que é muito importante. Uma pessoa tem de ser sincera consigo própria. Um poeta não pode ser mentiroso, já lá dizia o meu amigo Manuel Ribeiro de Pavia: "um poeta nunca é um mentiroso, fulano de tal é um mentiroso, fulano de tal não é um poeta, é um mentiroso".
... No entanto quando alguém me convidou a entrar para o Partido, lembrei-me que era presidente da Associação Portuguesa de Escritores, e respondi: "Bem vês, sou aqui presidente, temos sócios de muitas tendências, é preciso manter a unidade".
Compreenderam imediatamente. "Unidade" é uma palavra mágica no meu Partido.
Depois comecei a ir regularmente a comícios e a descobrir certas coisas que não via noutros sítios. Pequeninas coisas que me impressionaram, do povo sobretudo. Em certas camadas camponesas, ou de origem camponesa, notavam-se sentimentos que eram como se elas tivessem lido o "Manifesto Comunista" do Marx e do Engels quando diz que é preciso manter o que houve e há de bom nas classes anteriores - a cortesia, a qualidade, por exemplo, eu acho que tudo isso se deve conservar, embora actualizado. O que não quer dizer que não exista gente de todas as espécies nas massas do Partido Comunista, não estou aqui a fazer qualquer apologia.
Uma vez entro no Pavilhão dos Desportos, muitas palmas, muita palmas, e diz-me o Rosa Coutinho: "então você não agradece?". Realizava-se uma grande reunião de sindicalistas. "O quê?", digo eu, "As palmas!, as palmas são para si"...
Quer dizer, todo o Pavilhão dos Desportos a aplaudir-me... Eu era maior do que eu, naquela altura! »
7 comentários:
Vou ficar então suspensa pela 2ª parte da resposta, porque esta 1ª parte já me arrebatou.É linda demais!! fez-me pensar tanto...Obrigada.
Um beijo,
Que coisa bonita!
"Em certas camadas camponesas, ou de origem camponesa, notavam-se sentimentos que eram como se elas tivessem lido o "Manifesto Comunista" do Marx e do Engels..."
Isto poderia não dizer nada de especial sobre os camponeses... mas diz muitíssimo sobre o "Manifesto". :-)
Abraço.
Obrigado pela publicação desta entrevista.
(Jorge)
Venha mais.
Fernando ... estou sem palavras.
Coisa tão linda, estas declarações.
Olha que bela forma de começar o dia.
Que venha, rapidamente, a 2ª parte. Mal posso esperar.
Campaniça
svasconcelos: aí tens a segunda parte...
Um beijo.
samuel: é bem verdade.
Um abraço.
Jorge: abraço grande.
antónio: é para já.
Um abraço.
Eduardo Miguel Pereira: coisa tão linda, de facto.
Um abraço.
Campaniça: ela aí vai...
Um beijo.
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