POEMA

ACIDENTE DE VIAÇÃO


Vago, secreto, alheio e disfarçado
no conforme cortejo da cidade,
dobro esquinas e paro separado,
à espera de mim mesmo ou da metade
que ficou sem saber do outro lado.

Ponho letras bastardas a deslado
das palavras cruzadas do jornal,
dou um grito de aviso, arrepiado,
contra a luz encarnada do sinal
e piso, como brasa, o chão molhado.

Fica atrás o meu fato amarrotado,
a sangrar das costuras esgarçadas,
acode o alfaiate convocado,
enquanto vou pensando em gargalhadas,
vivo, secreto, alheio e disfarçado.


José Saramago

3 comentários:

Graciete Rietsch disse...

Quantas vezes dou por mim a passear alheada de tudo o que me rodeia!!!!!
Mas dizer isto como Saramago.....??

Um beijo.

samuel disse...

Deixar para trás o fato... e seguir... é difícil, mas é bom!

Abraço.

Fernando Samuel disse...

Graciete Rietsch: ele observa à maneira do Cesário...
Um beijo.

samuel: e contar como foi é ainda melhor...
Um abraço.