POEMA

ENQUANTO


Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e mães,
andarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA


António Gedeão

5 comentários:

GR disse...

Belíssimo, este triste poema.
O Poeta escreverá e o Povo Lutará convictamente por um futuro melhor.

Gd BJ,

GR

miguel disse...

um dos poemas que mais me marcou e certamente um dos mais poderosos.
obrigado, fernando samuel.

filipe disse...

Sim, abaixo todos os "mistérios" e viva a realidade desnudada pela coragem dos que lutam e dos que a expõem tão vigorosamente, como faz o poeta.
Um abraço!

samuel disse...

Viva a verdade da poesia!

Abraço.

Maria disse...

Este é um poema que devíamos ler todos os dias. Incluindo os que não o conhecem Poderia ser que aprendessem qualquer coisita...

Um beijo grande.