POEMA

TALVEZ A MINHA ÚLTIMA CARTA A MÉMET



Por um lado
os carrascos entre nós
como uma parede a separar-nos
e por outro lado
este coração mal comportado
que me armou uma partida reles.
Meu pequenino, meu Mémet,
o destino vai talvez impedir-me
de voltar a ver-te.
Sei-o
serás um rapaz parecido
com uma espiga de trigo
eu próprio era assim ao tempo da minha juventude,
louro, esbelto e de boa estatura;
os teus olhos serão vastos como os da tua mãe
por vezes com um traço de amargura
de tristeza,
a fronte será clara até ao infinito.
Terás também uma bela voz
a minha era horrível
as canções que cantares
partirão corações.
E serás um conversador brilhante
eu também era mestre em tal matéria
quando não me punham com os nervos em franja.
O mel fluirá da tua boca
Ah Mémet
que devastador de corações
tu vais ser!
É difícil criar um filho sem a presença do pai
não magoes a tua mãe,
se eu não pude dar-lhe alegrias
dá-lhas tu.
A tua mãe
forte e branda como a seda
a tua mãe
ainda será bela quando tiver idade para ser avó,
como no primeiro dia em que a vi
na margem do Bósforo
tinha ela dezassete anos.
Ela era o luar
e a luz do dia
fazia lembrar uma rainha-cláudia,
a tua mãe,
uma manhã como de costume
separou-se de mim: Até logo!
Nunca mais nos vimos.
A tua mãe
na sua bondade a melhor das mães
que viva cem anos
e que Deus a proteja.
Eu, meu filho, não tenho medo de morrer,
mas não obstante
por vezes quando estou a trabalhar
de repente
estremeço
ou então na solidão que precede o sono.
É difícil contar os dias
não podemos saciar-nos do mundo
Mémet
não podemos saciar-nos.
Não vivas na terra
à maneira de um locatário
ou em vilegiatura
na natureza,
vive neste mundo
como se ela fosse a casa do teu pai,
acredita nas sementes
na terra, no mar,
mas em primeiro lugar ama o homem,
sente a tristeza
da árvore que seca
do planeta que se extingue
do animal enfermo,
mas em primeiro lugar a tristeza do homem.
Que todos os bens terrestres
te dêem alegria em profusão,
que a sombra e a claridade
te dêem alegria em profusão,~
mas em primeiro lugar que o homem
te dê alegria em profusão.
A nossa pátria, a Turquia,
é um belo país
entre os demais países
e os seus homens,
aqueles que não se turvaram,
são trabalhadores
meditativos e corajosos,
mas horrivelmente miseráveis.
Já sofremos e havemos de sofrer mais
mas no fim a conclusão será esplêndida.

Tu, neste país, com o teu povo,
construirás o comunismo,
vê-lo-ás com os olhos
tocá-lo-ás com as mãos.

Mémet, morrerei talvez
longe da minha língua
longe das minhas canções
longe do meu sal e do meu pão,
com a nostalgia da tua mãe e de ti,
do meu povo e dos meus camaradas.
Mas não no exílio
não no estrangeiro.
Morrerei no país dos meus sonhos
na cidade branca dos meus melhores dias.
Mémet, meu pequeno,
confio-te
ao Partido comunista turco.
Vou-me embora mas estou calmo
a vida que em mim se apaga
continuará em ti por muito tempo
e no meu povo eternamente.


Nâzim Hikmet

6 comentários:

Justine disse...

Pungente. Até às lágrimas!

samuel disse...

Ler isto depois da notícia da bela merda do Nóbel da literatura... é duro!

Abraço.

Graciete Rietsch disse...

Impossível comentar de tão belo, comovente e sempre apelando à luta.
Que seres tão especiais são estes!!!

Um beijo.

Maria disse...

Este poema não é comentável. Pelo menos eu não tenho palavras...

Um beijo grande.

Anjos disse...

É de uma beleza indescritível por palavras! Tantas emoções!...

É dor e sonho.
É bonita lição de pai a um filho.
É testamento de uma herança de valor infinito.
É ...
...E a vida realmente continua em Mámet, no povo turco, em muitos homens e em muitos povos.

É a imortalidade do poeta/HOMEM!

Abraço

Fernando Samuel disse...

Justine: de acordo.
Um beijo.

samuel: é duro, sem dúvida - e esse nobel vai ser a grande notícia dos próximos tempos...
Um abraço.

Graciete Rietsch: gente que luta por um mundo novo...
Um beijo.

Maria: percebo...
Um beijo grande.

Anjos: é isso tudo que dizes e... ainda mais...
Um abraço.