HÁ DIAS...

Passei um magnífico fim-de-tarde, princípio-de-noite na Casa do Alentejo.
Fui lá para assistir à evocação do 30º aniversário da publicação desse notável romance - um dos grandes romances da literatura portugesa - que é o Levantado do Chão, de José Saramago.

Foi assim: por volta das dezoito horas, terminou a leitura do romance - leitura integral, que durou muitas horas e na qual participaram centenas de admiradores da obra de Saramago.
Depois, o Manuel Gusmão - com o rigor e a profundidade do costume - falou do livro.
Seguiram-se dois grupos corais alentejanos - um feminino: Cantadeiras da Alma Alentejana; e um masculino: Os Amigos das Minas de S. Domingos.
Tinha que ser, sabido que é que o cante alentejano é como que o pano de fundo da história e da luta do povo do Alentejo - dessa história e dessa luta que são personagens principais do Levantado do Chão.

Depois, falou Pilar del Rio, a companheira de muitos anos de José Saramago.
Falou em castelhano mas fez distribuir pela assistência a tradução, em português, do texto que leu.
Falou do «Levantado do Chão, epopeia gigantesca de heróis não reconhecidos apesar de parecerem ter mais força que o sol que nos ilumina e serem, além do mais, a matéria de que todos somos feitos»...
Lembrou que, «Chico Buarque de Holanda, quando quis prestar homenagem aos camponeses sem terra que ocupavam herdades no Brasil (...) compôs um tema a que deu o título de Levantado do Chão, um coral que poderia ser entoado nos cinco continentes em todos os idiomas, bastando que houvesse voz para denunciar o abuso e vontade de erguer-se, de levantar-se, apesar da ideia, habilmente difundida, de que a insubmissão não vale a pena, já que vivemos no melhor dos mundos possíveis»...

Finalmente, falou Jerónimo de Sousa: do romance, de Saramago, do Prémio Nobel, da luta do povo alentejano ao longo dos tempos - desse povo levantado do chão que esteve sempre na primeira fila da luta contra o fascismo; que construiu a mais bela conquista da Revolução de Abril; que enfrentou heroicamente a ofensiva criminosa e destruidora contra a Reforma Agrária, ofensiva iniciada por Mário Soares e continuada por todos os cavacos que lhe sucederam.
E sublinhou que, se é verdade que a atribuição do Prémio Nobel a Saramago prestigiou o escritor, não é menos verdade que a Obra de Saramago prestigiou de igual maneira o Prémio - o que não é de somenos importância neste tempo de descredibilização do Nobel, por efeito de atribuições que outra coisa não são do que instrumentos da ofensiva ideológica anticomunista em curso...
E relembrou Saramago e a sua afirmação de que, para ganhar o Nobel não deixou de ser comunista...
E falou da luta, hoje - dia 6, dia 20, dia 24 - da sua importância, da sua necessidade, do seu papel decisivo e determinante para dar a volta a isto...

Enfim, tudo muito bonito, tudo a deixar toda a gente de papo cheio e com vontade de não sair dali.
Tudo a confirmar que há dias em que um homem deve mesmo sair de casa...


Acabada a sessão, saí da Casa do Alentejo e, ainda levantado chão, resolvi dar um passeio a pé, Restauradores fora, Avenida da Liberdade acima...
Eis senão quando, ali por alturas do Condes se me depara uma multidão de televisões (todas), rádios (todas) e jornais (muitos), tudo numa agitação frenética e febril...
Pensei que tinham chegado atrasados, isto é: que, vindo como lhes competia, enquanto órgãos de informação, fazer a cobertura de uma iniciativa em que se homenageava a Obra do único (até agora) Prémio Nobel da Literatura da Língua Portuguesa, por qualquer problema de trânsito, ou assim, só agora chegavam - e, por isso, nenhum deles tinha estado na Casa do Alentejo...
Enganei-me: de facto, não se atrasaram, chegaram bem a horas ao que iam: chegaram bem a horas para fazer (presumo que em directo integral) a cobertura da inauguração da sede de candidatura de Cavaco Silva...

Lembrei-me, então - e percebi melhor - a postura ética do candidato Cavaco sobre o pouco dinheiro que vai gastar na sua campanha...
Lembrei-me, ainda, de que o candidato Cavaco disse estar «apreensivo com a classe política» e que «não pode contribuir para o espectáculo público do cinismo»...
Lembrei-me, enfim, dos dez anos do Cavaco primeiro-ministro, do Cavaco cinco anos PR e do Cavaco que aí vem...

E pensei para mim que há dias em que um homem não deve sair... da Casa do Alentejo...

11 comentários:

Maria disse...

Vi uma reportagem na televisão. Talvez na rtp1. Uns escassos segundos, claro.
Por estas e por outras às vezes declaro a independência... de minha casa!

Um beijo grande.

samuel disse...

E pensaste muito bem! Infelizmente não podemos viver lá... nesse lugar a que chamamos tantas coisas... como "Casa do Alentejo". Ainda não...

Abraço.

GR disse...

Depois desta tua descrição tão cheia de cor, palavras e música só me resta dizer, como foi lindo! Lisboa por vezes é tão longe! mas no dia 20 é logo ali ao virar da esquina.
Se a RTP é pública e todos nós a pagamos numa das muitas taxas da EDP, porque razão eu sentindo-me lesada e roubada na informação que não dão, não ponho a RTP e EDP em Tribunal? Ou porque tenho(mos) de continuar a pagar este serviço que deveria ser mas não é público? Quantos segundos por semana mostram as actividades do PCP? e dos restantes, quantas horas? Exijo ser indemnizada pela fraude que cometem!
Estou seriamente a pensar fazer algo!

Bjs,

GR

Antuã disse...

Deixa lá os broncos querem-se com os broncos. Para esses ditos jornalistas o Cavaco não está apreensivo mas aprendido.

Graciete Rietsch disse...

Querido amigo e camarada apenas consigo fazer este comntário. O teu post é lindíssimo, pela escrita, pelo conteúdo, "pela esperança combativa" que nos transmite.

Um grande abraço.

do Zambujal disse...

Excelente. Foi bom de ler... sem compensar o peso da ausência na participação. Obrigado.
Quanto à parte final, o espectáculo da hipocrisia do dr. Cavaco Silva está a ultrapassar limites que se esperava não possíveis. A pstura deste homem e do que o rodeia é de nausea(bunda), deprimente... e estimulante (de luta!).


Um grande abraço

Manuel Rodrigues disse...

Pois é... entre a Casa do Alentejo e a sede de candidatura de Anibal de Cavaco Silva Rodrigues Thomaz vai uma distância política de dimensão sideral. São de facto antípodas. A Casa do Alentejo (com tudo o que representa e representou, em especial, naquele dia)é a Casa do Futuro, a nossa grande casa-mãe. A outra, aparenta ultra-modernidade mas cheira a bafio...

Orlando Gonçalves disse...

Conseguiste transmitir uma emoção tal que fiquei com a lágrima ao canto do olhos. É tal qual tu dizes... ele há dias que apetece não sair da casa do Alentejo.

Orlando

Anónimo disse...

Obrigado, cravo de abril, por teres dado de forma tão bela, a noticia, as palavras e o ambiente a pedir futuro, e a antítese do passado que teima em nos submeter.
Como diz o GR, temos todos de denunciar o roubo quer da noticia quer do dinheiro que nos estão a fazer, por isso temos de arranjar forma de na grave geral de 24, a população poder vir para a rua num acto conjunto de protesto com os muitos milhares que farão greve!

Abilio Barros

svasconcelos disse...

Adoraria ter estado na Casa do Alentejo, é um espaço único, lindo!, e ainda mais com o evento que descreveste não deve mesmo apetecer sair...
O cavaco é um hipócrita e demagogo, ainda hoje falava dos custos dos cartazes em campanha, e no entanto não esconde outros , nomeadamente o do erário público que ele próprio utiliza para fazer defender a sua candidatura.
Um beijo,

João Valente Aguiar disse...

E mais, sem "Levantado do Chão" (e em menor grau o "Manual de Pintura e Caligrafia", seria impossível a escrita de outros grandes romances como "Memorial do Convento", etc. Pelo estilo mas, acima de tudo, pela ligação entre narrativa e História que o Saramago fez a partir de então.

"Levantado do Chão", um romance revolucionário, a todos os níveis: pela forma mas pelo refrescar do romance de combate, mostrando como a literatura (e a arte em geral) comprometida com a luta dos trabalhadores e dos povos é uma possibilidade e uma necessidade.

Um grande abraço