POEMA

(Estamos sozinhos no Universo!)


Todas as noites toca um telefone na Lua.

Sou eu, sou eu a marcar o número automático dos poetas de hoje
para gritar cá de baixo em código de astros:

Está lá? Está lá? Aqui Terra, zero, zero, zero, zero, zero.
S.O.S! Fome, ódio de mil pata, tiranos com cutelos de cinzas,
bandeiras de pele humana, olhos furados de cardos,
mortos que só vêem o céu através dos caminhos das raízes
- e as mães a baterem nos filhos
para lhes ensinarem a instrução primária das lágrimas.
Aqui escravos, preguiça, azorragues de chumbo derretido,
exportação de tédio dos palácios dos ricos, carregamentos de bocejos,
suor em latas para discursos de demagogos,
mordaças com restos de bocas de cadáveres,
fúria de túmulos, guerra, raptos, incestos, automóveis imbecis,
saques, mandíbulas nos olhos a roerem o azul
- e os dedos de súbito de ferro-em-brasa nos seios das mulheres,
lodo de sol aparente
que continuam a ser deusas nos jantares de cerimónia
com os colos luzidios das horas empertigadas.
Aqui planeta zero, zero, nada, torres de musgo,
punhais a rasgarem noites em vez de chagas,
países de arame farpado, vulcões de sangue,
batalhas trespassadas do frio dos esqueletos concretos
- e ainda por cima a carne das mulheres só é real um momento,
um momento apenas
e em vão tentamos fixá-la com um sopro de frio
no rasto deste defunto com um caixão às costas
cheio de corações vivos.

S.O.S! S.O.S!

Fantasmas de todos os planetas! Fantasmas de todos os planetas!
Saltai em pára-quedas no silêncio que há por dentro do silêncio
e vinde salvar-nos!

Vinde salvar os homens
para aqui abandonados ao pesadelo de si mesmos,
só a serem homens,
homens apenas,
homens sempre,
de manhã até à noite,
semi-homens,
infra-homens,
super-homens,
ex-homens...
E fartos, fartos, fartos, fartos, fartos, fartos
desta desistência
de já nem quererem ser deuses!

Nem de transformarem os cavalos em relâmpagos!


José Gomes Ferreira

7 comentários:

samuel disse...

A desistência é trágica...

Anónimo disse...

Não desistamos, Lutemos e Lutemos...
Abraço

Ana Camarra disse...

José Gomes Ferreira, sempre!

(o que eu adoro as Aventuras do João Sem medo!)

Beijos

Justine disse...

Espantoso poema de força!

Maria disse...

Esta cabeça de cabelo branco e olhos para o alto é (ainda, porque presente) tão linda...

Obrigada, Fernando Samuel.

Um beijo grande

GR disse...

Os fantasmas fogem, quando a consciência é pouca!
Estaremos sozinhos?
Desistir é palavra que não conhecemos.
Lutamos, continuaremos a lutar.

Belíssimo poema do Poeta Militante.

GR

Fernando Samuel disse...

samuel: e por vezes é só isso que apetece... felizmente que logo a seguir apetece resistir...
Um abraço.

Ludo Rex: lutamos sempre.
um abraço.

Ana Camarra: há quanto tempo não leio essas aventuras!...
Um beijo.

Justine: ao contrário do que possa parecer, o Zé Gomes era daqueles que nunca desistem...
Um beijo.

Maria: linda, linda, de facto...
Um beijo grande.

GR: Lutaremos sempre!
Um beijo.