POEMA

O MONSTRO JULGADO


Desenterremos o monstro
e, mesmo morto, o julguemos.
Mais nojento o foi em vida.
Mais nojento o foi em vida,
com as suas falas mansas,
os seus melífluos gestos,
o seu perfil de navalha,
o seu sonho imperial.
Julguemo-lo pela vergonha
com que nos enlameou.
Julguemo-lo pelos ladrões
que à sua sombra roubaram.
Pois roubaram, prestem contas.
Pois roubaram prestem contas.
Julguemo-lo pelos bandidos
que mataram a seu soldo.
Pois mataram, não mais tenham
ocasião de matar.
Erguei-vos, assassinados,
para o frio julgamento,
em que é forçoso que soe
a vossa condenação.
Julguemo-lo pelos assaltos
às nossas casas quietas,
às horas do nosso sono
merecido e sem remorso.
Julguemo-lo pela traição
que a nós próprios nos impunha
de nos pautarmos por ele,
sob pena de punição.
Julguemo-lo pela suspeita
a que nos habituou
de em tudo espreitarem perigos,
de todos serem espiões.
Julguemo-lo pela incerteza
de cada dia futuro,
no curso dos dias tristes
de miséria e cobardia,
apenas iluminados
pela teimosia heróica
dos militantes da esperança,
ousados e clandestinos.
Julguemo-lo pelas torturas
dos seus carrascos cruéis,
os seus juízes submissos,
os seus campos de concentração.
Julguemo-lo pela maldade.
Julguemo-lo pela frieza.
Julguemo-lo pela mentira,
sua única paixão.
Julguemo-lo pela fé falsa
de antigo seminarista,
com que aos fiéis iludidos
iludia a boa fé.
Julguemo-lo pela herança
de abandono e esgotamento
em que nos deixou os campos,
em que nos deixou as fábricas,
em que nos deixou a pródiga
e vasta leira do mar,
a que nos levou as escolas,
cuja cultura tolheu,
vazias de camponeses,
operários, pescadores,
professores e alunos,
que obrigou a emigrar.
Julguemo-lo pelo cuidado
de guarda-livros mesquinho,
com que serviu os interesses
só da grande burguesia,
a nação espezinhando
com os seus pés descomunais.
Julguemo-lo pela perfídia.
Julguemo-lo pela vaidade.
Julguemo-lo pelos palhaços
que escolheu para ministros,
que nomeou deputados,
que de pobres tornou ricos,
e diante dele tremiam,
e lhe lambiam o cu.
Para sempre o apaguemos
de nosso compatriota,
e até de homem simplesmente,
visto que nunca homem foi.


Armindo Rodrigues

5 comentários:

samuel disse...

Tremendo texto!
Ainda iremos a tempo... mas já tarda!

Abraço.

Anónimo disse...

Então, Soares, Cavaco, Alegre, Sócrates não fazem parte da mesma árvore genealógica que o salazarismo gerou?

Maria disse...

Intensíssimo texto!
Que força nas palavras... quase grito!

Um beijo grande.

Graciete Rietsch disse...

Julguêmo-los e condenêmo-los ontem, hoje e sempre.

Um grande abraço.

Fernando Samuel disse...

samuel: um bocadinho...
Um abraço.

Maria: texto sentido...
Um beijo grande.

Graciete Rietsch: não podem ser perdoados...
Um beijo.