POEMA

NÃO SEI SE É UMA MEDALHA


Alguma vez
um cigarro aceso sentirá o delicioso
sabor de te fumar de repente
o ombro direito?

Pois
sobre isso eu juro
que tudo é pura mentira.

Juro
que nunca um cigarro LM
apagou sua idiossincrásica boca de lume
no calor escuro da minha omoplata.

E também juro
que nunca plagiei um cinzeiro moçambicano
sentado a cheirar o bafo da própria cinza
com o subchefe de brigada Acácio
um deus fantasmagórico envolto
na especial nuvem de tabaco
mistura de Virgínia com pele.

E também confesso
que se esta invenção tivesse acontecido
muito provavelmente seria em mil novecentos
e sessenta e seis à tarde numa certa Vila Algarve
enquanto pela duodécima vez
eu abanava a cabeça
e dizia: - Não sei!

Por acaso
a mancha desta mentira está.
Não sei se é uma medalha.
Mas não sai mais.

(1967)

José Craveirinha
(In Cela 1)

4 comentários:

samuel disse...

Uma coisa que desespera os "novos-ricos da democracia" com falta de passados é existir tanta gente com memórias e marcas de cigarro na omoplata...

Abraço

Crixus disse...

se tivesse acontecido tinha sido em mil novecentos e sessenta e seis ou noutro qualquer ano dos quarenta e oito anos de ditadura fascista, que os africanos sofreram, pelo menos tanto como cá. Abraço

Fernando Samuel disse...

samuel: fizeste-me arrepiar. Memórias sofridas mas vivas...
Um abraço amigo.

crixus: sim, pelo menos tanto como cá - e os métodos eram, essencialmente, os mesmos.
Um abraço amigo.

GR disse...

Não podemos esquecer o sofrimento do passado.
Todos os dias temos que lembrar (sobretudo aos jovens) que as medalhas de hoje, foram um Não! cheio de dor, dos heróicos Resistentes!

GR