ao final da tarde, quando os pardais recolhem assustados aos ramos direitos, em fúria ao céu voltados, o largo da aldeia absorve na cal os últimos raios da primavera. ensaiam-se modas nas gargantas que se despedem para a ceia e para o dia seguinte, que as noites ainda estão frescas e os ossos ja doiem, pelo tempo e pela porrada da pide que, quase todos, conheceram entranhada no sangue pisado que assim brotava. no largo da aldeia, os homens são chaparros deslocados nas ruas da terra que ainda ficou por lavrar. foi só que faltou! contam-se histórias que vêm do fundo da memória, confundindo-se com as memórias infantis que ouviram contar aos avós. algumas são dificeis. e fazem rasar de água os olhos do menino que me sobra neste homem feito. hoje fui a Ervidel. Fui recolher uma história de vida de um camarada poeta. era a que me faltava (e eu até ontem não sabia) para um livro que vamos editar dia 9 de Maio próximo, no museu da terra. (estão todos convidados). «Assalariados agricolas de Ervidel - trabalho e resistência sob o fascismo», assim se chama ele. Mas dizia-vos. Hoje fui a Ervidel. existe uma alegria imensa na frase que acabei de soletrar. Ervidel é uma aldeia vermelha. Não nas casas, que essas, barradas de azul, são de uma alvura cegante, aquando o sol a pino. Vermelha nos corações das suas gentes, tantas vezes confundidas com história da resistência anti fascista, tamanha a sua resistência heroica a tempos dificeis. Hoje conheci o Raimundo. Pessoalmente. que passa muitas vezes na Antena 1 no programa Lugares ao Sul. Fui fazer-lhe umas perguntas. e antes que pudesse abrir a boca, estava dentro de casa dele. logo o pão, a linguiça, o tinto, e a palavra mais bonita do mundo no jeito com que me olhava: camarada. contou-me dos seus dias. da fome, dos pés descalços, da pide rondando os seus muros, dos Avantes que escondia como a reliquia mais sagrada do homem crente. declamou alguns dos seus poemas, que sabe de cor... tem oito livros de poesia cá fora, ao mundo, que a Junta de Freguesia sabe reconhecer os valores da terra. disse-me da sua honra. do seu coração vermelho. entrou para o Partido antes de casar. e casou em setembro de 1958. nessa altura, depois de muito penar, ja vendia refrigerantes. e distribuía avantes. percebi logo, na sua dedicação ao Partido - que ama, que ama muito- que a venda dos sumos era apenas o pretexto onde escondia os papelinhos onde levava a voz dos homens livres, no tempo das nossas trevas. Das muitas histórias - e que virão no livro - conto-vos uma. Um dia, entregando refrigerantes na venda/adega de um lavrador, ao entrar ouviu, aos quatro ou cinco que lá estavam e que não eram da sua condição, dizer mal dos comunistas. de alguns camaradas específicos que não quis enunciar. Ferveu-lhe a revolta no sangue frio... e, tomado pela estopa de que era feito, disse-lhes frontalmente: vocês não estão enforcando só esses homens. vocês estão enforcando a minha classe. Dirigindo-se ao proprietário disse-lhe ainda: da minha parte acabou. vai comprar as gasosas a outro lado que não te deixo aqui mais nenhuma. Ainda ouviu entre dentes: fazes isso a todos ficas sem vender nada. acalma-te, bebe aqui um copo com a gente, pago eu. Ferido no seu orgulho, o Raimundo - assim se conhece o nosso camarada - cuspiu-lhes estas palavras: prefiro a fome - a que sempre me habituaste, tu e os da tua classe - ao perder a honra de camponês (que na verdade nunca deixou de ser, e camponês foi o capote do comunista). Não estou à venda. passem bem.
não sei se de ternura se do vinho cá da terra. mas eu não aguentei. abracei-o e disse-lhe obrigado. chorando. sempre chorando. depois saímos os dois. fomos à adega do Moreira, onde brevemente vamos todos almoçar. vi-os lá a todos. antecipadamente.
era isto que vos queria contar.
Foto: largo da aldeia, Ervidel, 7 de Abril de 2009.
não sei se de ternura se do vinho cá da terra. mas eu não aguentei. abracei-o e disse-lhe obrigado. chorando. sempre chorando. depois saímos os dois. fomos à adega do Moreira, onde brevemente vamos todos almoçar. vi-os lá a todos. antecipadamente.
era isto que vos queria contar.
Foto: largo da aldeia, Ervidel, 7 de Abril de 2009.
4 comentários:
Ainda não conheço Ervidel, mas a avaliar pela emoção com que descreves a terra e as gentes, conhece-los será uma experiência marcante.
Um dia...
brevemente... a julgar pelo meu desejo...
beijo
É DESTA GENTE QUE O MEU POVO PRECISA!!!
tocante.
abraço do vale
Belas histórias nos contas!
Um abração.
Enviar um comentário