POEMA

VIAGEM ATRAVÉS DE UMA FATIA DE BOLO-REI


Corria o ano de 1961.
Estávamos à porta do Natal.

Eram quase duas horas da manhã
e eu perguntei-lhe
se queria comer alguma coisa.
Disse que sim. Mas que
estava com muita pressa.

Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lhe
uma sanduíche de fiambre
um copo de vinho
uma fatia de bolo-rei.
Estava de pé
comia como se fosse a primeira vez
desde a infância.

-Há quantos anos
deixa cá ver
há quantos anos é que eu não comia
bolo-rei?
Este é bom, sabe a erva-doce
e a ovos.
(Caíam-lhe migalhas
aparava-as com a outra mão
em concha)

- Comes outra fatia, camarada?

- Isso não.
Estou atrasado já.
Mas se ma embrulhasses...

Através da janela
do quarto às escuras
fico a vê-lo atravessar a Rua da Creche
seguir pela Rua dos Lusíadas.

Nenhum de nós sabia
que estava já erguida a pirâmide do silêncio
à espera dele
num breve prazo.

Quando talvez o gosto do bolo-rei
mais forte do que nunca
tivesse ainda na boca.


Mário Castrim

4 comentários:

Graciete Rietsch disse...

Este poema é triste,triste, mas deixa-nos cá dentr uma raiva tao grande!!!!

Um beijo.

Maria João Brito de Sousa disse...

Concordo, Graciete... deixa-nos revoltados, amargos por dentro, assim a modos que a contrariar o gosto da erva doce que ele ainda levava quando a "pirâmide do silêncio" o envolveu...

Maria disse...

Nem consigo comentar...

Um beijo grande, de olhos molhados.

Olinda disse...

Tao simples e tao "grande".Lembro-me que também me comovi,como agora,quando li este poema pela primeira vez.