Éramos 20 e ocupávamos uma sala da Prisão da PIDE, no Porto - Rua do Heroísmo... - paredes meias com outra sala igual e com igual número de camaradas.
Era Natal.
A notícia chegou-nos à noite - noite fria, fria - através de batidas na parede:
A PIDE ASSASSINOU O ZÉ DIAS COELHO.
Fez-se um silêncio.
Depois, alguém deu um murro na mesa de madeira e disse em voz rouca: Assassinos.
Novamente o silêncio.
Um camarada começa a andar de um lado para o outro a todo o comprimento da sala.
Pouco a pouco, todos o imitámos, alguns com brilho de lágrimas nos olhos.
Todos em silêncio.
À hora habitual, o guarda de serviço veio apagar a luz: era a hora do silêncio de todos os dias, agora interrompido com o barulho da chuva que começara a cair.
Uma voz - alentejana, límpida, clara - emerge do silêncio, cantando baixinho, muito baixinho:
«Noite imensa, noite imensa de amargura,
semeada de baionetas e ameaças.
Uma estrela vem rasgando a noite escura,
traz a morte das algemas e mordaças»
Três, quatro vozes juntam-se-lhe, baixinho, muito baixinho:
«O caminho é pedregoso e duro
mas o sonho que nos guia é puro»
E agora é o coro contido de 20 vozes:
«As espadas, as espadas,
impotentes vão tombar despedaçadas...
E as searas a crescer na terra
são promessas de beleza e pão,
mundo novo, mundo novo,
poderosa e triunfal canção.
de amor, de amor»...
Outra vez o silêncio - e a chuva, agora mais intensa.
Em vários bailiques brilham as pontas acesas dos cigarros.
E faz-se ouvir uma voz serena e cheia de força:
«Até amanhá, camaradas».
9 comentários:
E de olhos marejados lembrei-me da consoada de fraternidade e luta no romance "Aquela Noite de Natal" de José Casanova.
Isto hoje não está para gente fraca... é muita emoção junta.
Um bonito comentário de cid simoes a juntar ao teu post, imenso de ternura e de raiva e de luta, que eu apenas consigo imaginar, até ao grito final!
Um beijo grande.
Como a nossa tristeza.
Como a nossa memória.
Como a nossa força!
cá estamos!
abraço
Excelente memória
Para ti
tudo pelo melhor neste inverno prolongado
e descontente.
Abraço camarada.
Até amanhã e até sempre.
Abraço.
Tão comovida!!! Não consigo dizer nada.
Um grande abraço.
Memórias vivas e intensas sobre um dos acontecimentos mais marcantes do longo período fascista português,que existiu e foi bem cruel.
Tão bonito e tão duro!
Como os Josés Dias Coelhos, ao nosso lado, vivos dentro de nós, nos ajudam à caminhada.
Grande abraço
...memória que é importante preservar.
Um abraço.
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