POEMA

CASA DE PENHORES

I

Rua estreita - não sei quem lá passou...
Porta aberta - não sei quem lá entrou.
Não sei - não sei dizer e não me importa,
nem a rua, cansada de ser rua,
nem a porta cansada de ser porta.

Mas foi aqui, na rua triste e nua,
e junto à porta aberta, fria e larga,
que me surgiu aquela frase amaraga
e nunca mais me deixou:

- Schubert empenhou o violino e o mundo não estoirou!

II

Mas não falemos de Schubert... falemos da velha tonta...
- A velha tonta que perdeu a neta
e anda, de porta em porta, a imitá-la...

Diz assim, aflautando a sua fala:

«Ó velha, conta... ó velha, conta
aquela história triste do poeta...»

- A velha tonta que perdeu a neta
todos os dias ajoelha
em frente da lamparina...

(O Cristo empenhou-o a velha
para salvar a neta pequenina...)

E a velha tonta reza à lamparina:

- «Meu Deus, perdoa-me a audácia
de ter teu Filho empenhado...
- Foi para pagar a conta da farmácia...
perdão, meu Deus, perdão!»

- e o Cristo, resignado,
em três meses de juro crucificado,
espera o dia do leilão.

Sidónio Muralha

4 comentários:

samuel disse...

Talvez para nos compensar, os grandes são capazes de escrever sobre isto... coisas assim!

Abraço

Maria disse...

Gostando de poesia e do Sidónio Muralha não me lembro de ter alguma vez lido este poema...

Obrigada, Fernando Samuel.
Um beijo

Justine disse...

Também é uma novidade para mim, este poema do Sidónio...e estou fascinada!

Fernando Samuel disse...

samuel: valha-nos isso...
Abraço.

maria e justine: este poema é do primeiro livro de Sidónio Muralha: Beco - publicado em 1941.
Beijos.