É TEMPO DE LUTAR

«Sócrates anuncia um ano terrível aos portugueses», diz a primeira página do Diário de Notícias de hoje - e enuncia algumas das malfeitorias ontem anunciadas pelo primeiro-ministro.

É o PEC3 seguindo o caminho do 1 e do 2: cortes brutais nos salários, nas pensões, nos serviços públicos, em tudo o que diz respeito a direitos e interesses de quem trabalha e vive do seu trabalho - e benesses à fartazana para os que vivem à custa do trabalho dos outros: os grandes grupos económicos e financeiros.

Mas atenção: o «ano terrível» é o próximo, pois apesar de o ano actual ser o que se sabe , «é em 2011 que a austeridade vai sentir-se mais».

A «receita» é velha: conhecem-na e aplicaram-na todos os governos dos últimos 34 anos, desde o 1º do Soares até ao actual do Sócrates, passando pelos do Cavaco, do Guterres, do Barroso/Lopes..., e cada um indo mais longe do que o anterior, cada um afundando o País mais do que o anterior, e todos, cada ano, anunciando aos portugueses «um ano terrível».

34 anos de «anos terríveis» para os mesmos de sempre, é demais.
É tempo de pôr fim aos «anos terríveis» para a imensa maioria dos portugueses.
É tempo de dar a volta a isto.
É tempo de fazer de cada ano que aí vem um «ano terrível» sim, mas para aquela escassa minoria de exploradores e lacaios que tem enchido os bolsos à nossa custa.

É tempo de lutar.
Ontem foi o que vimos.
Amanhã seremos mais e mais fortes.

POEMA

ANGINA DE PEITO


Se metade do meu coração está aqui, doutor,
a outra metade está na China,
no exército que desce em direcção ao Rio Amarelo.

E depois, todas as manhãs, doutor,
o meu coração é fuzilado na Grécia.

E depois, quando os prisioneiros mergulham no sono,
quando a calma regressa à enfermaria,
o meu coração parte, doutor,
todas as noites
parte para uma casa
velha de madeira em Tchamlidja.

E depois, faz dez anos, doutor,
que nada tenho nas mãos para oferecer ao meu pobre povo,
só uma maçã,
uma maçã vermelha: o meu coração.

É por isso, doutor,
e não por causa da arteriosclerose, da nicotina, da prisão,
que tenho esta angina de peito.

Olho à noite por entre as grades
e apesar de todas as paredes que me pesam no peito,
o meu coração bate ao ritmo da estrela mais longínqua.


Nâzim Hikmet

QUE FAZER COM ESTE BARRETO?

António Barreto - exactamente, esse em quem estão a pensar... - foi a Coimbra fazer uma palestra sobre «Desenvolvimento Regional e Cidadania».

Não sei a que propósito - talvez na parte da Cidadania... - disparou contra a Constituição da República Portuguesa.
Como é sabido, Barreto odeia a Lei Fundamental do País desde que ela foi aprovada e, quando foi ministro da agricultura do governo contra-revolucionário de Mário Soares, maltratou-a, espezinhou-a, violou-a, rasgou-a - de tal forma que se houvesse justiça tinha ido, justamente, parar com os costados à choça...
Mas não foi: pelo contrário, subiu na vida, não lhe falta nada - a não ser o que sempre lhe faltou: vergonha, dignidade, seriedade...

Então, sobre o assunto disse o animal, em Coimbra, que «há direitos a mais na Constituição».
E explicou: «na Constituição, o cidadão português tem todos os direitos e mais alguns. Tem direito à saúde e à educação de graça, à habitação» - enfim, um autêntico desbragamento de direitos...
Mas, pior, muito pior do que isso - diz a besta - é que a maior parte desses direitos constitucionais não são «direitos fundamentais» - e «é essencial distinguir entre direitos fundamentais e direitos sociais e económicos».

Para o quadrúpede, «direitos fundamentais são o direito à privacidade, à integridade humana individual, direito à boa reputação, de voto, de expressão e de circulação» - todos os outros direitos não são fundamentais...
Por isso, diz a cavalgadura, esses direitos todos que estão na Constituição - como o direito ao trabalho, ao salário, à saúde, à educação, à habitação, à velhice, à infância... -não deveriam lá estar porque não são fundamentais - além de que «não são compatíveis com o período de crise económica que o País atravessa».

Digam lá: que fazer com este Barreto?

POEMA

A PROPÓSITO DO MONTE ULUDAG



Faz sete anos que nos olhamos
olhos nos olhos
esta montanha e eu
e ninguém arreda pé
nem ela nem eu.
Contudo, já nos conhecemos bem.
Ela sabe rir e zangar-se
como tudo o que leva a vida a sério.

Porém
sobretudo no Inverno
sobretudo à noite
sobretudo quando o vento sopra do sul
com os picos nevados
as florestas de pinheiros
as pastagens
os lagos gelados,
ela move-se ao de leve no sono
e o eremita que vive lá no cimo
com a barba comprida e descuidada
e a túnica ao vento
desce até à planície a ulular
a ulular à frente do vento.

E às vezes
sobretudo em Maio, de manhã cedo
toda azul, sem quaisquer limites,
imensa, feliz livre
ela eleva-se, semelhante a um mundo novo.

E há dias em que por vezes
se assemelha à sua imagem nas garrafas de limonada...

E calculo que num hotel que nunca vi
as esquiadoras passam bons momentos
a beber conhaque com os esquiadores.

E há dias
em que um desses serranos de sobrancelhas negras
e calças de burel, amarelas e largas,
por ter sacrificado o vizinho no altar da sacrossanta propriedade
vem, como nosso hóspede,
passar quinze anos na cela colectiva número dezassete...


Nâzim Hikmet

O POVO HONDURENHO VENCERÁ

Há 15 meses - feitos precisamente hoje - um golpe militar derrubou o Presidente das Honduras, Manuel Zelaya, e entregou o poder a um agente do imperialismo norte-americano, fascista, de seu nome Micheletti.

Desde logo, o povo hondurenho decidiu resistir ao golpe fascista, consciente das consequências dessa decisão - consequências que não se fizeram esperar...
De então para cá, a repressão tem sido brutal - mas o povo resiste.
Prisões, torturas, assassinatos multiplicam-se por todo o País - mas, por todo o País, o povo resiste.
E não desiste de resistir - sempre consciente das consequências dessa decisão.
Trata-se, de facto, de uma resistência corajosa e heróica e que assim é vista por milhões de trabalhadores de todo o mundo que não desistem, também, de manifestar a sua solidariedade aos heróicos resistentes.

A resistência nas Honduras é obra do povo.
Demonstram-no as massivas acções levadas a cabo por todo o País com a participação activa de centenas e centenas de milhares de pessoas.
Um exemplo claro disso é o que diz respeito ao abaixo-assinado posto a correr pela Frente Nacional de Resistência Popular, exigindo a reposiçã da legalidade democrática: a convocação de uma Assembleia Constituinte e o regresso do presidente legítimo, Manuel Zelaya, e de todos os exilados: no espaço de cinco meses foram recolhidas 1 342 876 assinaturas (para compreender o significado deste número - por si só altamente significativo... - basta dizer que ele corresponde a cerca de 20% do total da população e a mais de 30% dos eleitores inscritos).
Acrescente-se que, por decisão dos seus subscritores, a petição não será enviada para qualquer dos actuais poderes do Estado - que eles consideram ilegais e ilegítimos - mas para a ONU e para a Organização dos Estados Americanos.

Assim se resiste nas Honduras.

Quinze meses depois do golpe fascista perpetrado pelo governo de Obama e concretizado pelos seus homens de mão nas Honduras, e após quinze meses de resistência heróica por parte do heróico povo hondurenho, o Cravo de Abril manifesta uma vez mais a sua solidariedade aos resistentes, assumindo o compromisso de prosseguir a denúncia da repressão fascista e a divulgação da resistência - tanto mais que essa repressão e essa resistência são cirurgicamente silenciadas pelos média do grande capital.
O POVO HONDURENHO VENCERÁ!

POEMA

ACERCA DA VIDA


A vida não é uma brincadeira,
deves tomá-la a sério,
como faz, por exemplo, o esquilo,
sem nada esperar
nem fora nem para além da vida.
Quer dizer: a tua única preocupação será viver.
A vida não é uma brincadeira,
deves tomá-la a sério
e a tal ponto a sério
que de mãos atadas, por exemplo, de costas para a parede,
ou num laboratório
de bata branca e óculos enormes,
morrerás para que os homens vivam,
os homens a quem nem sequer viste a cara.
Morrerás sabendo
que nada é mais belo, nada é mais verdadeiro do que a vida.
Deves tomá-la a sério
e a tal ponto a sério
que aos setenta anos, por exemplo, plantarás oliveiras
não para herança dos teus filhos, não
mas porque não acreditarás na morte,
temendo-a embora,
mas porque a vida pesará mais na balança.


Nâzim Hikmet

«UM SOCIALISTA NA EUROPA»

Ao intervir no Fórum Mundial de Líderes da Universidade de Columbia, o secretário-geral do PS, José Sócrates, por distracção, apresentou-se como «socialista».
Dado que, nos EUA, socialista é sinónimo de comunista, os presentes... nem queriam acreditar no que tinham ouvido:

Mas o que é isto!!??
Um comunista aqui, no Forum Mundial de Líderes da Universidade de Columbia?
Era o que faltava!
E estou em crer que um ao outro mais afectado pela brutal revelação, há-de ter esboçado o clássico incitamento que a circunstância impunha:
Vamos a ele!...

Quem não ganhou para o susto foi José Sócrates, que, naquele momento, deve ter visto toda a sua vida a andar para trás e a sua categoria de líder em perigo de vida...
Com uma série de pares de olhos fixando-o - severos, implacáveis, demolidores - o secretário-geral do PS, perturbado, apressou-se a esclarecer o público presente de que «um socialista na Europa é o que aqui nos Estados Unidos se chama liberal democrata».
A assistência, esclarecida, respirou fundo e riu - assim como quem diz: Ah bom!, se é assim, és cá dos nossos, podes ser «socialista» à vontade.
E pronto: os «liberais democratas» aplaudiram o «socialista», este retribuíu, e tudo terminou em bem.

Sócrates regressou Portugal certamente ainda mais «socialista» (e ainda mais de «esquerda») do que era antes da viagem aos EUA.
Que assim é, confirma-o aquele que é, sem dúvida, o maior «socialista» de todos os tempos - Mário Soares - que ainda ontem, em entrevista ao Diário de Notícias afirmava, sério (isto é, sem se rir) que «o Partido Socialista deu uma guinada à esquerda» e «até já usa a palavra "camarada"»...
Se o «amigo americano» leu a entrevista, lá tem o Soares que explicar o que quer dizer quando diz «camarada»...

POEMA

O MESMO CORAÇÃO E A MESMA CABEÇA



Não é para me gabar,
mas atravessei de um jacto, como uma bala, os meus dez anos de prisão.
E se deixarmos de lado as dores no fígado,
o coração está igual, a cabeça é a mesma de antes.


Nâzim Hikmet

O NEGÓCIO DA GUERRA

Com o aval do seu Congresso e do seu Presidente, os EUA concretizaram um histórico negócio de venda de armas à Arábia Saudita - negócio histórico, na medida em que constitui a maior transacção de sempre no género: o negócio está avaliado em 60 mil milhões de dólares.

Com esta compra, a Arábia Saudita passará a dispor, designadamente, de mais 84 caças F-15 e mais 200 helicópteros (Apaches, Black Hawks e Little Birds) - armamento que não lhe fazia falta nenhuma, mas... os amigos são para as ocasiões, negócios são negócios e a venda de armas é o alimento número um da besta imperialista.

Com este negócio, os EUA confirmam-se como o maior vendedor de armas do planeta e, portanto, aquele que maiores lucros arrecada com o negócio da guerra.
Registe-se que mais de 66 por cento das armas vendidas no mundo são proveninentes do país que tem como Presidente o Prémio Nobel da Paz...
O que significa que há armas oriundas dos EUA em todos os países do mundo.
Armas que fazem guerras...
Guerras que, depois, «obrigam» os EUA ao «sacrifício» de mandar os seus caças F-15, os seus helicópteros (Apaches, Black Hawks e Little Birds)... para instalar a «paz»...

Não há dúvida: o negócio da guerra é o que está a dar.
Mais ainda se ele for feito em nome da «paz»...

POEMA

DA MORTE



Entrem lá, meus amigos, sentem-se,
sejam benvindos, trazem-me alegria.
Já sei, entraram pela janela da cela enquanto eu dormia
não deixaram cair nem a garrafa de gargalo fino
nem a caixa vermelha de medicamentos.
Aí estão todos de mãos dadas à minha cabeceira
com uma palidez de estrela nos rostos.

Como é estranho
Pensava que estavam mortos
e como não creio em Deus nem no além
lamentava não lhes ter ainda
oferecido uma pitada de tabaco.

Como é estranho
Pensava que estavam mortos
entraram pela janela da cela
Venham pois, meus amigos, sentem-se
sejam benvindos, trazem-me alegria.

Hachim, filho de Osman,
porque me olhas com ar de caso?
Hachim, filho de Osman,
como é estranho
não tinhas morrido, meu irmão,
em Istambul, no porto,
durante um carregamento de carvão para um barco estrangeiro?
Caíste com o balde no fundo do porão
foi o cabrestante do cargueiro a içar-te
e antes de ires repousar para sempre
o teu sangue, muito vermelho, lavou a tua cabeça negra.
Quem sabe aquilo que sofreste.

Não fiquem de pé, sentem-se,
pensava que estavam mortos
entraram pela janela da cela
com uma palidez de estrela nos rostos
Sejam benvindos, trazem-me alegria.

Yakup, da aldeia de Kayalar,
olá, velhote,
não estavas morto, também tu?
Não tinhas ido para o cemitério sem árvores
deixando aos filhos a malária e a fome?
Fazia um calor horrível nesse dia
Então, não estavas morto?

E tu Ahmed Djemil, o Escritor?
Vi com os meus próprios olhos
o teu caixão descer à terra
creio mesmo estar lembrado
que o teu caixão era pequeno demais para o teu tamanho.
Deixa, Ahmed Djemil,
vejo que ainda conservas o velho hábito,
uma garrafa de medicamento, não de raki,
bebias dessa maneira
para poderes fazer cinquenta piastras por dia
e para poderes esquecer o mundo na tua solidão.

Pensava que estavam mortos, meus amigos,
afinal estão à minha cabeceira de mãos dadas
Sentem-se, meus amigos, sentem-se,
sejam benvindos, trazem-me alegria.

A morte é justa, diz um poeta persa,
ceifa o pobre e o xá com igual majestade.
Hachim, porque te espantas?
nunca ouviste falar de um xá
morto no porão de um navio com um balde na mão?
A morte é justa, diz um poeta persa.

Yakup,
como ficas belo quando ris, querido velho,
nunca te vi rir assim
quando estavas vivo...
Mas espera que eu acabe
A morte é justa, diz um poeta persa...

Deixa essa garrafa, Ahmed Djemil,
não vale a pena zangares-te, eu compreendo-te
Para que a morte seja justa
é preciso que a vida seja justa.

O poeta persa...

Porquê, meus amigos, porque me deixam assim sozinho?
Onde vão vocês?


Nâzim Hikmet

QUE GRANDE CAMBADA!

Em tempo de «crise»... não se limpam armas...
Aí estão, a demonstrá-lo, os dois intrépidos guerreiros do momento - José Sócrates e Passos Coelho - exibindo as mesmas armas sujas na representação da farsa que tem como primeiro objectivo garantir a continuação da política de direita.
Ambos cheios de razão, chamam-se, um ao outro, mentirosos. Ambos mentindo, dizem-se, um e outro, portadores de projectos e políticas diferentes.

Por seu lado, os média dominantes - cumprindo o destino que lhes está reservado - relatam os aguerridos duelos de palavras travados pelos dois protagonistas da farsa como se de uma batalha se tratasse - e com tal colorido o fazem que, por vezes, até parece que os próprios média acreditam no que escrevem...

Tudo isto terminará, para já, com... o Orçamento de Estado aprovado, ou seja, com o caminho aberto para que a política de direita - com Sócrates ou com Passos, com o PS ou com o PSD, para o grande capital tanto faz - prossiga a destruição dos interesses e direitos dos trabalhadores, do povo e do País.
E tudo isto terminará quando os trabalhadores e o povo decidirem tomar nas suas mãos o seu próprio destino.

Protagonistas da farsa são, também, o actual e alguns ex-presidentes da República, os tais que, em acto de tomada de posse, juraram pela sua honra «defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa» - mas que, como a realidade mostrou, nem defenderam, nem cumpriram, nem fizeram cumprir a Lei Fundamental do País, antes pelo contrário.

Cavaco Silva tem-se desdobrado em conselhos, advertências e apelos ao entendimento entre os dois principais partidos da política de direita: o dele e o que não é mas podia ser dele. Por isso, como hoje nos diz uma afamada empresa produtora das chamadas sondagens de opinião, «será reeleito com larga maioria»...

Agora, foi a vez de entrar em cena o ex-PR Jorge Sampaio que se manifestou preocupado com a não aplicação dos «inevitáveis sacrifícios» que a «crise» exige...
E, mostrando de que «sacrifícios» está a falar, ensinou que «os portugueses reagem bem quando se explica os sacrifícios que é preciso serem feitos»...
O que precisamos, então, é de bons... explicadores...

Por seu turno, o omnipresente Mário Soares - pai da política de direita e ex-PR - veio, ontem, apelar ao «bom senso» do PSD e do PS com vistas a um acordo sobre o Orçamento de Estado, isto é, sobre a continuação da política de direita.
E aproveitou para ensinar o que sabe e praticou em matéria de «inevitáveis sacrifícios»: em fala de mestre, e apontando caminhos ao actual Governo PS, lembrou que, quando foi primeiro-ministro, ele, Soares, roubou «o 14º mês aos portugueses»...
Ora, como a «crise» actual é a mais grave de sempre, o melhor é começar a pensar não apenas no 14º mas também no 13º mês, pelo menos...

Que grande cambada!

POEMA

ELES



Eles que são inúmeros
como as formigas na terra,
os peixes na água,
as aves no céu,
eles que são poltrões,
corajosos,
ignorantes
e sábios,
eles que são crianças,
eles que fazem tábua rasa
e eles que criam,
serão, com as suas aventuras, o objecto único deste livro.

Eles que, deixando-se enredar nas teias do traidor,
atiram com o chapéu
e, abandonando a arena ao inimigo,
correm a fechar-se em casa,
e eles ainda que trespassam o traidor à punhalada,
eles que riem como a árvore jovem,
eles que choram prematuramente,
eles que injuriam pai e mãe,
serão, com as suas aventuras, o objecto único deste livro.

E o ferro
e o carvão
e o açúcar
e o cobre vermelho
e os tecidos
e cada um dos ramos da indústria
e o amor
e a tirania
e a vida
e o céu
e a planície
e o oceano azul
e as melancólicas vias fluviais
e a terra lavrada e as cidades,
um dia tudo muda de feição,
quando manhã cedo, nos confins das trevas,
apoiando no chão as mãos calosas e pesadas
eles se levantarem.

São eles que reflectem
nos espelhos mais sábios
as imagens mais coloridas.
No nosso século, eles venceram,
eles foram vencidos.
Deles muita coisa se disse
e para eles foi dito
que não tinham nada a perder
a não ser as grilhetas.


Nâzim Hikmet

ASSIM SE FAZEM AS NOTÍCIAS

Assim se fazem as notícias:
esta diz, em título:
«Obama oferece solução negocial aos iranianos».

Lido isto, o leitor será levado a concluir desde logo que Obama, num gesto de boa vontade, «ofereceu» aos iranianos a «solução» para o diferendo (sobre o programa nuclear) que opõe EUA e Irão - e que essa «solução» passa por negociar, dialogar, procurar um acordo.
Prosseguindo a leitura, o leitor ficará a saber que «o Presidente dos EUA estendeu a mão às autoridades iranianas» - o que só confirma a conclusão anteriormente tirada...


Aqui chegado, de duas uma: ou o leitor não lê a notícia até ao fim e guarda na memória a imagem de Obama a estender a mão aos iranianos e a oferecer-lhes a solução...
ou a notícia até ao fim... e - se não for distraído, se estiver atento às armadilhas desinformativas dos média dominantes - perceberá então o verdadeiro significado das palavras utilizadas por Obama.
Ou seja: perceberá que, no linguajar do Império, «oferecer solução negocial» significa que o governo do Irão deve obedecer incondicionalmente às ordens do governo dos EUA.
E que «estender a mão» significa aquilo que o governo de Obama explica em meia dúzia de palavras: «caso o Irão não respeite os seus deveres, sofrerá as consequências».


POEMA

DA PRISÃO DE ISTAMBUL


Em Istambul, no pátio da prisão,
depois da chuva, num dia soalheiro de Inverno,
ao mesmo tempo que
as nuvens
as telhas vermelhas
os muros
e o meu rosto
tremelicam nas poças do chão,
assumindo
toda a coragem
toda a cobardia
toda a força
toda a fraqueza
que há em mim,
penso no universo,
no meu país,
em ti.


Nâzim Hikmet
(Prisão de Istambul, Fevereiro de 1939)

ALÍCIA ALONSO

De 28/10 a 7/11 realiza-se, em Havana, o Festival Internacional de Ballet, cuja primeira edição data de... logo a seguir ao triunfo da Revolução Cubana, obviamente.
A relevância deste Festival pode medir-se pelas companhias que ali se farão representar: Royal Ballet de Londres, English National Ballet, Scala de Milão, American Ballet Theatre, entre muitas outras.

A organização do Festival está a cargo do Ballet Nacional de Cuba - considerada uma das cinco melhores companhias de ballet clássico do mundo - dirigido por aquela que foi a maior bailarina cubana de sempre e uma das maiores bailarinas mundiais: Alícia Alonso.
Aliás, o próximo Festival ocorre «en el año de homenagen a la prima ballerina assoluta Alícia Alonso».

À semelhança do que tem acontecido nas edições anteriores do Festival, Alícia Alonso, em nome do Ballet Nacional de Cuba, enviou convites a pessoas de vários países.
Só que, desta vez, da lista dos convidados consta um nome invulgar e certamente inesperado para a imensa maioria das pessoas.
Com efeito, a grande bailarina cubana convidou o Presidente dos EUA, Barack Obama, para assistir ao Festival.
Mas Alícia Alonso fez mais: convidou Obama a levar consigo os cinco cidadãos cubanos injustamente presos há doze anos nos EUA.

Aí está um convite bem direccionado e oportuno e que, se fosse correspondido, me levaria (a mim e a milhões de pessoas) a aplaudir o Presidente Obama - o que só lhe ficava bem.
Sendo certo que, se isso acontecesse, Obama deixaria de ser aplaudido todos os dias por todos os soares do planeta - o que só lhe ficava bem.

Para já, os meus aplausos vão para quem os merece: Alícia Alonso.

POEMA

DOMINGO



Hoje é domingo.
Pela primeira vez, hoje
deixaram-me sair ao sol,
e eu,
pela primeira vez na vida,
espantado de o ver tão longe
tão azul
tão vasto,
imóvel olhei o céu.
A seguir sentei-me na terra, com respeito,
encostei-me à parede branca.
Nesse instante, nada de ideias.
Nesse instante, nem luta, nem liberdade, nem mulher.
A terra, o sol e eu.
Sou feliz.


Nâzim Hikmet

(Poemas da Prisão e do Exílio)

DEUS DORME

Ettore Gotti Tedeschi, presidente do Instituto para as Obras Religiosas - mais conhecido por Banco Vaticano - está a ser investigado por suspeita de branqueamento de dinheiro.
Para já, e à cautela, a polícia financeira italiana bloqueou os 23 milhões de euros correspondentes a duas transacções suspeitas: uma para o JPMorgan de Frankfurt; outra para um banco italiano.

Estamos, então, perante mais um escândalo envolvendo o Banco Vaticano e um Banqueiro de Deus (nome pelo qual são conhecidos todos os presidentes do referido Banco).
Em muitas memórias está ainda presente o escândalo do envolvimento do Banco Vaticano na falência fraudulenta do Banco Ambrosiano, de que era o principal accionista.
Na altura o Banco Ambrosiano reciclava dinheiro da Cosa Nostra, a máfia siciliana, num processo no qual desempenhava importante papel a loja maçónica P2, ligada à CIA (ver O Padrinho, de Coppola»
Era então presidente do Banco Vaticano (portanto, Banqueiro de Deus) o sinistro arcebispo Marcinkus, cujo envolvimento neste, como em vários outros casos semelhantes, só não o atirou para a prisão porque o Papa João Paulo II não deixou, opondo-se sempre aos pedido de juizes italianos para o interrogarem.
Aliás, Marcinkus, que foi Banqueiro de Deus de 1971 a 1989, contou sempre com o apoio incondicional quer de Paulo VI quer de João Paulo II - e era um homem cheio de sorte...
De tal forma que o único Papa que se preparava para correr com ele (e com mais uns tantos cardeais...) - João Paulo I - «apareceu morto» em circunstâncias que só não são, como é hábito dizer-se, «misteriosas», porque está mais do que provado que foi assassinado...

Sobre o desfecho da mais recente golpaça... logo veremos...
Para já, e como é seu hábito, a Santa Sé manifestou-se surpreendida e reafirmou a sua confiança, toda a sua confiança, em Ettore Tedeschi - o seu Banqueiro de Deus e que, como tal, é «especializado em ética financeira».
Vejam bem as designações que eles inventam!...
Entretanto, ao que tudo indica, Deus dorme...

POEMA

ADEUS


Fiquem em paz, meus amigos
fiquem em paz
Eu vou partir
convosco no coração
e a minha luta na cabeça.
Fiquem em paz,
amigos meus,
fiquem em paz.
Não quero ver-vos na praia
alinhados como aves num postal
Não quero os vossos lenços a acenar, não, isso não.
Vejo-me inteiro nos olhos dos meus amigos.
Ó meus amigos
meus irmãos de luta
meus companheiros de trabalho
Adeus sem uma palavra.

As noites vão fechar o ferrolho da porta
Os anos vão criar teias de aranha na janela
E eu cantarei na prisão a minha canção de combate.
Tornaremos a ver-nos, amigos, tornaremos a ver-nos
Juntos, sorrindo, olharemos o sol
bater-nos-emos lado a lado
Ó meus amigos
meus irmãos de luta
meus companheiros de trabalho.
Adeus.


Nâzim Hikmet



Nâzim Hikmet é o Poeta que segue nesta teimosa insistência do Cravo de Abril em partilhar diariamente um poema com os seus visitantes.
Para os amigos que, eventualmente, desconheçam o Poeta e a sua Poesia, aqui ficam algumas notas informativas.
Brevíssima biografia: nasceu em 20.1.1902, em Salónica (então parte do Reino Osmânico), filho de pais cultos, pertencentes à classe dominante da época, mas que se opunham à ditadura vigente. Em 1917 entrou para a Escola de Cadetes de Heybekiada, em Istambul. Começou a escrever poesia aos 14 anos e um seu professor ajudou-o a publicar os primeiros poemas numa revista. Em 1920, após a ocupação de Istambul pela »Entente», abandonou secretamente a cidade e, com um amigo, foi juntar-se ao Movimento de Libertação, sob o comando de Ataturk. Aí chegam-lhes notícias da Revolução Russa - notícias que os fizeram meter-se a caminho de Moscovo. Hikmet inscreveu-se na Universidade Comunista dos Trabalhadores de Leste.
Conheceu e privou com vários artistas soviéticos, entre eles Meyerhold e Maiakovski que o influenciaram duradouramente. Por essa altura adere ao Partido Comunista Turco.
Acabado o curso, Nâzim regressou à Turquia.
Em 1932, na sequência de uma onda de perseguições e prisão de comunistas, foi preso - tendo sido amnistiado dois anos depois. Em 1938, com base numa provocação, Hikmet foi acusado de preparar uma revolta na Marinha e preso. Viria a ser libertado doze anos depois, em 1950, graças a uma ampla campanha internacional de solidariedade. No ano seguinte, doente, partiu para o exílio.
Morreu de enfarte de miocárdio a 3 de Junho de 1963, de manhã cedo, quando ia comprar os jornais.

Sobre a sua Poesia escreveu Philippe Soupault:
«Dele se pode escrever que foi um poeta universal. E este elogio deve ser meditado porque poucos poetas atingiram uma audiência mundial e porque significa que, apesar da alta qualidade da sua poesia, Nâzim Hikmet nunca quis isolar-se numa torre de marfim. Quis (e conseguiu) fazer-se entender por todos aqueles a quem chamava irmãos. Em todos os seus poemas, até nos mais íntimos, exaltou a amizade. Era sempre a amigos que se dirigia, e eram inúmeros os seus amigos. Fez voto de ser fraterno desde que começou a escrever, porque para ele a Fraternidade não era palavra vã, essa mesma que se grava, ou antes, gravava, no frontão dos monumentos públicos em França. O seu primeiro e o seu último poema são poemas fraternos. Fala aos homens, aos seus irmãos, da sua existência íntima, do seu amor, das suas viagens, das suas experiências, porque pretende não só "contar-lhes a vida" mas também associá-los à sua vida.
A obra de Nâzim Hikmet é a legenda do nosso século. Nenhum outro poeta da nossa época terá, como ele, sabido exprimir esta angústia que nos paralisa em plena era atómica, onde a nossa única defesa é a confiança que depositamos, que não podemos deixar de depositar, no homem. O poeta propõe-nos essa necessária confiança, mais, impõe-no-la. A poesia de alguém que sofreu tanto, mas que nunca perdeu a coragem, está colocada sob o signo da esperança. Não se receie aceitar toda a obra de Nâzim Hikment como uma mensagem.»

(POEMAS DA PRISÃO E DO EXÍLIO - edição «& etc», 2000)

A HORA É DE LUTA!

«VAMOS LUTAR!

JUNTOS - QUE OS OBJECTIVOS SÃO COMUNS!

TODOS - QUE A LUTA É DE TODOS!

É assim que a CGTP-IN apela à participação dos trabalhadores na Jornada de Luta de 29 de Setembro - de todos os trabalhadores: no activo ou aposentados; com vínculos efectivos ou precários; a trabalhar ou no desemprego.


Mostra a realidade que a luta de massas é o caminho para travar e derrotar a política de direita ao serviço dos interesses exclusivos do grande capital e para construir uma política ao serviço dos interesses dos trabalhadores, do povo e do País - e sabemos todos que quanto mais forte e participada for a luta mais depressa esse objectivo será alcançado.
Por tudo isso, é preciso fazermos da Jornada de 29 de Setembro uma poderosa demonstração da força organizada das massas trabalhadoras.

A hora é de luta!
Vamos a ela!

POEMA

INTERVALO (para uma Arte poética)


(O meu filho Raul José foi julgado, absolvido e depois enviado para o Regimento Disciplinar de Penamacor. Viva o silêncio insurrecto!.)


A poesia não é um dialecto
para bocas irreais.
Nem o suor concreto
das palavras banais.

É talvez o sussurro daquele insecto
de que ninguém sabe os sinais.

Silêncio insurrecto.


José Gomes Ferreira


(Interrompo aqui o ciclo de poesia dedicado ao «Poeta Militante». Tratou-se de uma selecção feita a partir dos poemas escritos entre 1931 e 1956. Para uma segunda fase, sem data marcada, ficam... os que faltam.)

«SOLDADOS DE CRISTO»

«Soldados de Cristo»: assim eram designados os soldados norte-americanos durante a guerra do Vietname.
Quem assim os designou foi o então arcebispo de Nova Iorque, Cardeal Spellmann - que era o Cerejeira lá do sítio...
O pio arcebispo via nos brutais bombardeamentos sobre as populações; nas bombas de napalm lançadas sobre escolas, hospitais e povoações; nos hediondos massacres praticados, via em tudo isso expressões perfeitas da pureza da fé cristã...
E a verdade é que as palavras de Spellmann, o seu estímulo à barbárie, a sua visão das coisas, perduraram nas forças armadas dos EUA, sendo uma realidade nos dias de hoje.

Como é sabido, os «soldados de Cristo» nunca lutaram no seu país, que jamais foi invadido fosse por quem fosse: todas as guerras em que participaram ocorreram a milhares de quilómetros de distância das suas terras, das suas casas, das suas famílias - o que, certamente, pesa muito na maneira com fazem a guerra...
Tanto mais quanto as guerras em que participaram foram, regra geral, guerras de ocupação - e, por isso mesmo, muito mais propícias à aplicação dos conselhos cristãos de Spellmann...

Conselhos que eles têm seguido, por vezes com requintes de cristandade spellmanniana.
Recordo, só a título de um-exemplo-um, o ocorrido na estrada Kweit/Bassorá, quando da primeira guerra do Iraque, em 1991: soldados iraquianos, que já se haviam rendido, foram enterrados vivos no deserto pelos «soldados de Cristo»...

Mas a história está cheia de exemplos da aplicação das piedosas práticas destes cristianíssimos exemplares...
Aqui fica a última que me chegou:
O Washington Post, citado pelo Público, informa que um grupo de soldados norte-americanos que combateu no Afeganistão foi acusado de «matar civis por desporto».
Em Dezembro do ano passado, esses «soldados de Cristo», por divertimento, formaram aquilo a que, apropriadamente, chamaram «equipa de matança»...
E mataram, por divertimento, um número ainda indeterminado de pessoas - civis, obviamente, porque matar os que combatem de armas na mão é mais difícil, exige coragem e acarreta riscos...

Mas não mataram apenas: depois de matarem homens, mulheres e crianças, os bravos e cristianíssimos soldados «desmembravam os cadáveres e guardavam ossos das vítimas como recordação» - e para que os seus feitos heróicos ficassem gravados para a história, registavam-nos em fotografias...

Digam lá: estes heróis são ou não são verdadeiros «soldados de Cristo»?

POEMA

COMBOIO


XXXVI


(Regresso a Lisboa no comboio rápido da noite. De repente, a sensação de me encontrar perdido e sozinho no meio dos astros. Angústia. Preciso de ver alguém. Vou puxar o sinal de alarme.)


O comboio saltou dos carris
e esguio de angústia
vai agora em plena solidão de silvos
no voo dos ossos das madrugadas.

Sobe, sobe no céu,
rompe as nuvens,
fura o Tempo,
meu comboio alimentado de carne humana
- braços, pernas, olhos, sexos, corações,
às pàzadas.


José Gomes Ferreira

A ARMADILHA

«Se Fores à Televisão, Camarada», é o título de um pequeno opúsculo escrito por Mário Castrim, nos anos 80, no qual alertava os militantes comunistas para as múltiplas armadilhas de que eram alvo por parte dos entrevistadores de serviço.
O título (bem como o objectivo...) é inspirado no célebre «Se Fores Preso, Camarada» - texto emblemático da história da resistência ao fascismo, no qual Álvaro Cunhal alertava os militantes comunistas para as múltiplas armadilhas a que estavam sujeitos no decorrer dos interrogatórios da PIDE...
E lá que havia semelhanças entre uma coisa e outra, havia...

Lembrei-me disto ao ler a entrevista de Francisco Lopes ao Diário de Notícias de hoje...- entrevista de leitura imperdível, dada a clareza, a serenidade, a convicção e a frontalidade com que o candidato comunista responde ao cerrado interrogatório e sublinha os aspectos essenciais que fazem da sua candidatura uma candidatura diferente de todas as outras. Singular. Única.

A entrevista é conduzida por João Céu e Silva - de quem, há coisa de um mês, aqui falei a propósito de outra entrevista: ao líder do BE.
(recordo que, nesse caso, o entrevistador foi altamente elogioso para o entrevistado e canalizou grande parte das perguntas no sentido de... «justificar» os elogios...)

Já para a entrevista a Francisco Lopes, o «critério» do entrevistador foi o outro...
Ou seja, aquele que, de acordo com as normas em vigor nos média dominantes, estabelece que os entrevistados comunistas sejam obrigados a pronunciar-se sobre todos os acontecimentos internacionais manipulados e utilizados por esses média, todos os dias, no quadro da ofensiva ideológica anticomunista.
Assim, as cinco primeiras perguntas colocadas ao candidato do PCP às presidenciais foram sobre... Cuba e o Muro de Berlim...

Resta dizer que as respostas do candidato Francisco Lopes foram por demais esclarecedoras: para os leitores e talvez, também, para o entrevistador...
Ou seja: não caíu na armadilha.

POEMA

COMBOIO


XXXIII


(Carta mental para o filho preso.)


Agora que estás sozinho,
chora com coragem de homem
o teu destino insubmisso,
a ouvir a chuva nas grades,
caída de olhos alheios.

Rumor frio
que tanto aquece os sonhos
e dá à morte
a intimidade adormecida dos seios.


José Gomes Ferreira

O PATRÃO É QUE MANDA...

Os patrões da União Europeia deram ordens para que, a partir do próximo ano, os Orçamentos dos Estados-membros sejam aprovados previamente em Bruxelas.
Os governantes reagiram como se esperava: sim, senhor, o patrão é que manda...
Como dizia um célebre governante antepassado dos actuais: «Manda quem pode, obedece quem deve».

No que diz respeito a Portugal, trata-se de mais uma brutal machadada desferida sobre a independência do País - mais uma a juntar a tantas outras desferidas nos últimos 34 anos pelos sucessivos governos dos partidos da política de direita - em ostensiva violação e flagrante desprezo pela Constituição da República Portuguesa.

Sobre a constitucionalidade do cumprimento desta ordem dos patrões da UE, o Público foi ouvir a opinião de vários «constitucionalistas».
Destes, apenas um considera a medida inconstitucional, sublinhando, a propósito, que desde que Portugal entrou para a Comunidade Europeia, tem-se assistido a uma «progressiva e deslizante perda de soberania a favor da UE».

Quanto aos restantes «constitucionalistas»... acham bem, acham que sim, senhor, acham que não há qualquer inconstitucionalidade, acham que assim é que é, acham que ainda é pouco...
Um deles diz mesmo que se trata, apenas, de «um pequeno passo no processo de integração europeia»...

Manda quem pode... obedece quem é invertebrado.

Por isso, os ex, actuais e futuros governantes dos partidos da política de direita esfregam as mãos de satisfação com a medida - com isso confirmando, todos, a sua condição de governantes fora da Lei Fundamental do País.
Satisfeito, está também o Presidente da República - certamente esquecido de que, quando tomou posse, jurou pela sua honra «defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa».
Satisfeitos estão ainda, por dever de profissão, os habituais - e bem remunerados - comentadores e analistas de serviço à propaganda da política de direita.

Há dias, em comentário num blogue, escrevi que, por muito menos do que estes indivíduos estão a fazer, foi Miguel de Vasconcelos atirado pela janela em 1640.
Hoje, num outro blogue, escrevi que, comparado com esta cambada, Miguel de Vasconcelos era um grande patriota.
E está tudo dito.
Para já.

POEMA

COMBOIO


XXXII


(Em casa do Arménio e da Ilse Losa. Entretenho a dor com sonhos absurdos. A fuga de todos os presos das cadeias da PIDE.)


Conspiração com o luar
para a fuga geral dos presos
ajudado por um super-homem de aço fluido.
herói de histórias aos quadradinhos.

Foi ele que adormeceu os guardas
com o sono conservado em câmaras frigoríficas nas caves,
para uso especial dos senhores do mundo com insónias.

Depois
a lua-punho
arrombou o telhado
com a força terrível dos sonhos
- e ouviu-se um clamor:

«Eh! Acordados da certeza pura,
pés inchados de súbito com asas,
agarrem-se ao luar.
Fujam!»


José Gomes Ferreira

DR JEKYLL e MR HYDE

O «Estado Social»tem sido muito falado nos últimos tempos.
O que não admira sabendo-se que ele é componente importante da farsa que José Sócrates e Passos Coelho representam, cada um desempenhando o papel de opositor do outro - e ambos sabendo que essa representação é fundamental para assegurar a alternância que, mascarada de alternativa, é indispensável ao prosseguimento da política de direita.

Dos dois farsantes, Sócrates é, de momento, o que representa o papel mais difícil: ao mesmo tempo que, enquanto líder do PS, se apresenta como um defensor intransigente e indefectível do «Estado Social», enquanto primeiro-ministro... faz a política de direita - aliás, a única que sabe fazer - e vai destroçando o que ainda resta do Estado Social de Abril.

Assim, no comportamento de Sócrates há algo de Dr. Jekyll/Mr. Hyde, célebre personagem criado por RL Stevenson e que ora parecia ser uma excelente pessoa, ora era um assassino cruel .
A falar do «Estado Social», Sócrates é o excelente Dr. Jekyll.
A governar, Sócrates é o assassino cruel... do Estado Social.

Nos jornais de hoje, podemos encontrar um exemplo do que acima é dito:
Sócrates/DR. Jekyll, num gesto cheio de «Estado Social», decidiu baixar todos os medicamentos em 6%.
Sócrates/Mr. Hyde, num gesto muito seu, decidiu reduzir a comparticipação do Estado na compra de medicamentos - e, num requinte de crueldade hydeana, decidiu ainda que a redução dessa comparticipação incidia exactamente nos medicamentos mais utilizados
Resultado: o preço de todos os medicamentos mais utilizados vai subir entre 70 a 90%.

Mas a crueldade de Sócrates/Mr. Hyde não descansa: enquanto o excelente Sócrates/Dr. Jekyll, incansável, repetia e repetia as suas juras de amor eterno ao «Estado Social», ele, o assassino cruel, tomou outra decisão das suas: a partir de agora, os pensionistas mais pobres deixam de ter acesso a medicamentos gratuitos - que é como quem diz: morram para aí e quanto mais depressa melhor...

Mas não há problema: amanhã - ou hoje ainda, quem sabe? - o excelente Sócrates/Dr. Jekyl virá dizer-nos, que no «Estado Social» ninguém toca!, só por cima do meu cadáver!...
E os média dominantes - experientes, diligentes, reverentes, obedientes, subservientes - farão chegar a boa nova ao bom povo português.
Enquanto Sócrates/Mr. Hyde palita dos dentes os resíduos do Estado Social.

POEMA

COMBOIO


XXX


(Soneto torto, improvisado depois de conversar sobre Arte com um filho preso. É impossível fazer versos bons quando se sofre. A poesia nasce do frio e do desdém.)


Onde estás, chave perdida
daquela sala
onde eu dantes guardava vida
para depois imaginá-la?

Quarto às escuras
em que nenhuma chave
agora cabe
nas fechaduras...

Sala deserta
onde nunca entraria
mesmo que encontrasse a porta aberta.

Não, não quero tornar a inventar a vida
nem dar lógica de beleza à dor
no quarto da chave apodrecida.


José Gomes Ferreira

BASTONARICES

A história é simples e conta-se em meia dúzia de palavras: um grupo de advogados oficiosos está sem receber o pagamento dos seus honorários desde Abril; além de não receberem os honorários, os referidos advogados oficiosos têm sido forçados a adiantar do seu bolso o dinheiro para as despesas que os processos exigem; face a esta situação, e após várias tentativas goradas de receberem o que lhes é devido, resolveram pôr em tribunal quem lhes devia pagar mas não paga: o Estado.

A esta situação reagiu, irritado, o Bastonário da Ordem dos Advogados.
Disse Marinho Pinto: «é à Ordem dos Advogados que compete liderar esse processo».

Estava eu tentado a, pela primeira vez na minha vida, concordar com o Bastonário, eis senão quando o dito dispara uma rajada fulminante contra a iniciativa dos advogados, acusando-a de «servir objectivos de propaganda eleitoral».

Ora, com tal acusação, o que me parece que o Bastonário faz é condenar os advogados com salários em atraso e absolver o devedor dos salários...
Isto para além de, com o disparo, estar a desviar as atenções daquilo que, de facto, está em causa: o dinheiro que o Estado devia pagar mas não pagou...
Acresce que, como o Bastonário não fundamenta os supostos objectivos eleitoralistas, ficamos apenas a saber que o Bastonário acha que sim... - razão mais do que suficiente para eu achar que não...

Confesso que já não suporto estas bastonarices...

POEMA

COMBOIO


XXIX


(Hora da visita. A Srª Ermelinda, que vela pelo meu filho, também estava à entrada com a cestinha onde ia aquela sopa tão boa que fervia desde as seis da manhã.)


Entretanto cá fora
as mães aquecem com os dedos
as merendas nos cestos.

Outras sorriem
com inquietação de cilada.

São as que esconderam limas de sonho no pão
para os filhos cortarem as grades
e fugirem esta noite
pelos lençóis
da solidão rasgada.


José Gomes Ferreira

Jornal de Parede FDUNL - I

Todas as semanas, desde Setembro do ano passado, afixo um jornal de parede na cantina e no bar da minha faculdade - Direito da Universidade Nova de Lisboa. No presente ano lectivo, este é o primeiro (carregar na imagem para ver maior)!

SOBRE O ORÇAMENTO DE ESTADO

Prossegue a representação teatral dos partidos da política de direita - PS, PSD e CDS/PP - em torno do Orçamento de Estado.
Lendo-os ou ouvindo-os, o cidadão distraído - e que, por distracção, votará num deles... - julga estar perante uma intensa batalha política travada entre inimigos irreconciliáveis, cada um batendo-se por um projecto distinto e antagónico em relação aos restantes, todos capazes de tudo para defender «o interesse nacional»...
No entanto, se o cidadão distraído quiser deixar de o ser e puxar um pouco pela memória, lembrar-se-á que é assim todos os anos e que esta farsa já dura há 34 anos;
lembrar-se-á, também, que eles - os inimigos irreconciliáveis... - todos os anos têm aprovado o OE;
e concluirá, finalmente e sem receio de errar, que assim acontecerá também este ano.
(e se deixar mesmo de ser distraído, o cidadão - atento e lúcido - mudará definitiva e radicalmente o sentido do seu voto nas próximas eleições...)

A coisa é simples:
Tratando-se, como se trata, do Orçamento de Estado da política de direita - ou seja do OE feito à medida dos interesses do grande capital - ele será naturalmente aprovado pelos partidos que politicamente representam os interesses do grande capital.

Porquê, então, esta «guerra» tão assanhada?
Porque é preciso continuar a distrair o cidadão distraído, atá-lo, prendê-lo, amarrá-lo, algemá-lo ao voto no mais do mesmo que é, afinal, o voto no Orçamento de Estado da política de direita - seja qual for o partido de turno no governo.

Ontem, Mário Soares - sempre ele... - apelava ao PS e ao PSD para que chegassem a um acordo sobre o OE.
No seu linguajar embusteiro, o pai da política de direita assegurava que o OE é indispensável para resolver os muitos problemas existentes, «em primeiro lugar os problemas daqueles que estão a passar mal, os que não têm emprego», etc, etc.
E é enquanto chefe da contra-revolução ao serviço do grande capital que avisa: «Não é com manifestações que os problemas se resolvem»...

É claro que Soares sabe que o OE vai ser aprovado.
E sabe que quem o vai aprovar são os mesmos partidos que sempre o têm aprovado, desde que ele, Soares, em 1976, iniciou a política de direita - com os resultados visíveis na situação dramática do País.

E sabe que é com a luta, designadamente com as manifestações, que os problemas se resolvem: os problemas dos trabalhadores, obviamente.

Porque os problemas do grande capital, esses são todos resolvidos pelo Orçamento de Estado que Soares quer que seja aprovado e que os partidos da política de direita irão aprovar.

POEMA

COMBOIO


XXI


(O Eugénio de Andrade espera-me num Café. Atravesso as ruas do Porto - a cidade onde nasci - com os punhos cerrados de dor.)


Não nasci por acaso nestas pedras
mas para aprender dureza,
lume excedido,
coragem de mãos lúcidas.

Aqui no avesso da construção dos tempos
a palavra liberdade
é menos secreta.

Anda nos olhos da rua,
pega lanças aos gestos,
tira punhais das lágrimas,
conclui as manhãs.

E principalmente
não cheira a museu azedo
ou a musgo embalado
pela chuva na boca dos mortos.

Começa nos cabelos das crianças
para me sentir mais nascido nestas pedras.

Porto
- cidade de luz de granito.

Tristeza de luz viril
com punhos de grito.


José Gomes Ferreira

O MAIS COLOSSAL EMBUSTE

Anteontem, à medida que relembrava aqui o golpe sangrento do Chile, vieram-me à memória outros golpes semelhantes ocorridos noutros países do continente americano: Guatemala, 1954, derrubamento do governo progressista de Jacobo Arbenz;
Brasil, 1964, derrubamento do governo progressista de João Goulart;
Granada, 1983, derrubamento do governo progressista de Maurice Bishop;
Honduras, 2009, derrubamento do governo progressista de Manuel Zelaya....
E por aí fora.

Com efeito, a História está cheia de exemplos de governos progressistas legítimos - e haverá algum governo progressista que não seja legítimo?... - derrubados por golpes militares de inspiração fascista ou fascizante.

No continente europeu como no asiático, no africano como no americano, dezenas de golpes militares reaccionários, qual deles o mais brutal, foram levados à prática, esmagando a democracia e a liberdade e cada um deixando atrás de si um imenso rasto de dor, de sofrimento e de sangue.

Há, no entanto, um traço comum a todos esses golpes que importa assinalar: os Estados Unidos da América estavam lá, em todos eles, na sua organização, planificação e concretização; na imediata entrega do poder a governos fascistas; no apoio incondicional a esses governos e às suas práticas criminosas.
Essa é uma verdade incontestável.

E também é verdade que não há memória de um só caso em que o imperialismo norte-americano tenha estado do outro lado, isto é, do lado dos povos que, através de lutas heróicas, se libertaram de ditaduras fascistas.
(E, nesse sentido, nunca é demais relembrar o nosso caso: os EUA estiveram com o regime fascista de Salazar/Caetano até ao dia 24 de Abril de 1974 - e estiveram com a contra-revolução desde o dia 25 de Abril de 1974...)

No entanto, todos os dias os média dominantes, pelas mais diversas formas, no dizem que os EUA são o expoente máximo da democracia, da liberdade e dos direitos humanos - com a agravante de milhões de pessoas, em todo o planeta, acreditarem que assim é...

E esse é, certamente, o mais colossal embuste da História - e o que mais trágicas consequências tem para toda a Humanidade.

POEMA

COMBOIO


XX


(A Ilse e o Arménio Losa, de braços abertos, na Estação.)


Cidade de braços que me procuram
e estreitam
nas pedras,
nos cafés,
no passado de neblina
- correm ao meu encontro
os vivos e os mortos,
sobretudo os mortos,
mortalhas de granito,
31 de Janeiro,
o meu pai ainda criança
a fugir do Barredo
já com os olhos de transformar o mundo
diante da morte do Primeiro Sonho
nas barricadas do nevoeiro
com fúria e fel.

Agora chove
na cidade dos braços que me procuram
e teimam em trazer-me o sol
com outra pele.


José Gomes Ferreira

SALAZAR HAVIA DE GOSTAR DE LER

Há dias, falei-vos aqui dos analistas de serviço e do principal argumento por eles utilizado contra a candidatura de Francisco Lopes: «é um desconhecido», ou: «só é conhecido na Soeiro Pereira Gomes»...

Mais recentemente, falei-vos de um tenente-coronel reformado que, repetindo o que Salazar dizia e mandava dizer há décadas, afirmava que «o PCP recebia ordens do Partido Comunista da União Soviética» - e que isso legitimava a prisão, a tortura e os assassinatos de comunistas...

Hoje falo-vos de Ricardo Araújo Pereira (RAP) que, na Visão, escrevendo sobre a candidatura de Francisco Lopes,
1 - repete - fazendo humor - o que os analistas de serviço - falando a sério - dizem do candidato comunista, e
2 - repete - fazendo humor - o que o tenente-coronel reformado - falando a sério - disse sobre o PCP.


Tapando o nariz; tomando as devidas precauções higiénico/sanitárias; e munindo-se de ilimitada paciência, qualquer cidadão está em condições de ler até ao fim o texto de RAP.
Quem o fizer, constatará que parte grande da prosa de RAP é a repetição - humorística - do que, sobre o candidato comunista, tem sido dito pelos analistas de serviço: estes - falando a sério - dizem que «Francisco Lopes só é conhecido no PCP»; RAP - fazendo humor - diz que Francisco Lopes é «um candidato que nem os militantes comunistas sabem exactamente quem é»...
(pergunto: das duas espécies expostas, quem é que é analista e quem é que é humorista?...)


Mas onde RAP revela toda a sua incomensurável criatividade humorística é quando (repetindo o que, sobre o PCP, o tenente-coronel reformado diz - falando a sério), escreve - fazendo humor - que «Francisco Lopes é o candidato do PCUS, o Partido Comunista da União Soviética».
A tirada é forte e cheia de humor, como se vê.
Mas RAP acha pouco, quer ser ainda mais engraçado, ter ainda mais piada, elevar ainda mais o elevado humor que o possui - e acrescenta: «Francisco Lopes parece uma escolha de Brejnev, embora um pouco mais conservadora».
(pergunto: das duas espécies expostas, quem é que é tenente-coronel reformado e quem é que é humorista?...)

Lendo o fedorento texto, há que reconhecer, no entanto, que nem os analistas de serviço nem o o tenente-coronel reformado diriam melhor.
E Salazar havia de gostar de ler...

POEMA

COMBOIO


XIX


(No túnel antes de chegar à estação de S. Bento, no Porto.)


Ousaram
fechar um homem na treva
promovê-lo ao silêncio
impor-lhe muros de sede.

E agora?

Ei-lo sozinho,
terror de olhos secos
com uma lâmpada de lágrimas no coração
a furar um túnel de névoa na parede.

Ousaran
iluminar a treva com homens.


José Gomes Ferreira

Se um dia a juventude voltasse


"se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vida

sulcaria com as unhas o medo de te perder... eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amor

depois... mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpo

mas se a juventude viesse novamente do fundo de mim
com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco... eu
humilde e cansado piloto
que só de te sonhar me morro de aflição"


Al Berto - Se um dia a juventude voltasse

MEMÓRIAS DE SETEMBRO

Ainda a propósito de datas «esquecidas» pelos média dominantes - e ainda a propósito de Setembro.

Lembremos o Campo de Concentração do Tarrafal - «espelho do regime fascista».
Lembremos as palavras do director, Manuel dos Reis:
- «Quem vem para o Tarrafal vem para morrer» -

e do médico, Esmeraldo Pais Prata:
- «Eu não estou aqui para curar doentes, mas para passar certidões de óbito».

Lembremos Setembro, no Tarrafal, quando o director e o médico passam das palavras aos actos:

1937:
20 de Setembro: Francisco José Pereira e Pedro de Matos Filipe.
22 de Setembro: Francisco Domingos Quintas, Rafael Tobias e Augusto da Costa.
24 de Setembro: Cândido Alves Barja.
(Os primeiros camaradas assassinados no Campo da Morte Lenta)

1941:
24 de Setembro: Casimiro Ferreira.

E também no Tarrafal houve um 11 de Setembro: foi nesse dia, em 1942, que Bento Gonçalves, secretário-geral do PCP, foi assassinado.

Datas e nomes que - apesar do silenciamento a que são votados pelos média dominantes - ficarão na memória de todos os que, hoje e no futuro, prosseguirão a luta pelos objectivos pelos quais os mártires do Tarrafal deram as suas vidas: a construção do socialismo e do comunismo.

E para que fascismo nunca mais!

POEMA

COMBOIO


XVIII


(Ao compasso de ferro da locomotiva a minha obsessão persiste.)


Um filho preso
excede as razões do frio,
vinagre no Sol,
destino fora da lei
- ó pedras da morta violada
porque gritais?

Um filho preso,
desentendimento com as flores,
cumplicidade dos poços
- e tu, ó pequenina mão de lágrimas,
a embalar meninos de névoa
nos berços desiguais.

Um filho preso,
- lua com algemas,
voo tornado muro.

E toda esta gente à minha roda
a falar, a falar, a falar, a falar.
A apodrecer sombras...

Eh! calai-vos!
- cemitério futuro.


José Gomes Ferreira

DO OUTRO LADO DOS MÉDIA

É assim todos os anos: o 11 de Setembro de 2001 invade o tempo e o espaço dos média dominantes e transforma-se na «notícia do dia».
Só um exemplo: o Diário de Notícias de hoje dedica 20 páginas ao «dia que ninguém esquece» e em que «morreram quase três mil pessoas»...

É claro que este acto terrorista - pela brutalidade de que se revestiu e pelas consequências trágicas que teve em vidas humanas - não deve nem pode ser esquecido.
Da mesma forma que não devem nem podem ser esquecidos todos os actos terroristas com carácter e consequências semelhantes.

Ora, o que acontece é que os mesmos média que nunca se esquecem do 11 de Setembro de 2001 e das suas vítimas, esquecem-se sempre de todos os 11 de Setembro ocorridos e das suas vítimas.

Será porque, para esses média, a morte de um cidadão norte-americano é mais grave do que a morte de um cidadão de qualquer outro país?
Estou em crer que sim.
Será porque, para esses média, a morte dos 2996 norte-americanos vítimas inocentes do brutal atentado terrorista, é mais grave do que a morte das centenas de milhares de iraquianos, vítimas inocentes do brutal atentado terrorista que foi a invasão e ocupação do Iraque?
Estou em crer que sim.

E será que, para esses média, o atentado terrorista de 11 de Setembro de 2001 - cujas verdadeiras origens continuam por desvendar - é para nunca esquecer, enquanto o golpe fascista de 11 de Setembro de 1973 no Chile - cujas verdadeiras origens estão perfeitamente desvendadas - é para nunca lembrar?
Estou em crer que sim.

Felizmente, do outro lado dos média dominantes, todos os anos há quem recorde o 11 de Setembro de 1973, dia em que um golpe militar fascista, organizado e apoiado pelos EUA, instalou o terror no Chile, com o assassinato de milhares de pessoas.
Lembraram-no, hoje, por exemplo - e tanto quanto me foi dado ver - «O Cheiro da Ilha», o «Cantigueiro» e o «anónimo século xxi».
Para eles, o meu abraço.

POEMA

COMBOIO


XI


(Rápido para o Porto.)


Comboio.

E ninguém repara
que não trago os olhos de ontem.

Mas armas de febre,
ocultação de motim
e esta Caveira
que um Desconhecido
me escondeu na cara
com mãos de treva
- e de súbito desatou a chorar por mim
num riso de lágrimas de pedra.


José Gomes Ferreira

EM NOME DA DEMOCRACIA...

A poderosa operação de branqueamento do fascismo, levada a cabo pelos estoriadores do sistema e amplamente difundida pelos média dominantes, tem vindo a ser complementada, nos últimos tempos, por uma vaga de referências a Salazar - referências simpáticas, cheias de simpática compreensão e, até, de simpática admiração.
Sucedem-se os artigos sobre a vida privada e pública do ditador, as biografias do ditador, as entrevistas aos biógrafos do ditador - numa cadência que, a prosseguir, conduzirá a uma presença mediática do biografado tão frequente (e não menos elogiativa) como nos tempos em que ele era ditador...

Como é sabido, todos os autores destes extensos textos e destas extensas biografias, desconhecem a palavra fascismo, ou a expressão regime fascista.
O que se compreende se tivermos em conta que, para eles, em Portugal o fascismo não existiu, existiu. sim, aquilo que o próprio Salazar designou por «Estado Novo» - designação produzida pelo ditador enquanto promulgava, inspirado pela Carta del Lavoro da Itália fascista, o Estatuto do Trabalho Nacional; ou enquanto criava, instruído pela Alemanha nazi, o Campo de Concentração do Tarrafal; ou enquanto contemplava, enlevado, o retrato de Mussolini exposto destacadamente na sua mesa de trabalho; ou enquanto, cheio de pesar, decretava três dias de luto nacional, com a bandeira portuguesa a meia haste, pela morte de Hitler...

Agora, parece que tudo se encaminha para que os admiradores e os saudosistas do ditador dêem um passo em frente na expressão dessa admiração e dessa saudade.
Há dias, o Cantigueiro referia - e comentava, pertinente - o facto de o ministro Santos Silva ter recorrido a uma lei de Salazar para não cumprir uma lei actual que obriga à aprovação, pelo Tribunal de Contas, de obras de determinado montante - a confirmar a existência iniludível de traços fascizantes na política de direita e contra Abril que PS, PSD e CDS-PP levam a cabo há 34 anos.

Hoje, o Diário de Notícias publica um artigo -assinado por Brandão Ferreira, tenente-coronel na reforma - intitulado «Deve uma democracia aceitar sociedades secretas?»
À pergunta que faz, o articulista, aliás, no seu pleno direito, responde que não.
Atente-se, no entanto, no argumento que utiliza para explicar o seu «não»:
começando por relembrar a lei que, «durante o Estado Novo», obrigava todos os funcionários públicos a assinar uma declaração de repúdio do comunismo (e, acrescento eu, a denunciar à polícia política fascista todos os militantes ou simpatizantes comunistas de que tivessem conhecimento...), Brandão Ferreira observa que essa lei «foi muito criticada antes e depois do 25 de Abril», mas criticada «sem razão».
Porquê?: porque era uma lei boa, obviamente...

E delicado, atencioso e didático, o tenente-coronel reformado, escreve: «Permitam que lhes diga porquê» - e passa a explicar a razão das bondades da lei fascista:
«O PCP defendia uma doutrina totalitária, internacionalista, auto-exclusiva e fundamentalista, que recebia directivas, quando não ordens, do PC da União Soviética. Não era um partido livre nem nacional, mas apenas uma correia de transmissão de terceiros», pelo que, excluir os comunistas era «límpido e razoável».

Salazar o disse, Brandão Ferreira o repetiu décadas depois.
Ambos em nome da democracia...

POEMA

COMBOIO


VIII


(Obsessão de todos os instantes.)


«O teu filho está preso.»

Saí.

Um velho no eléctrico
com nuvens nos olhos
de chuva parada
- sorriu-me.

Percebeu talvez
que na minha dor
ardia o gozo de mostrá-la oculta
neste mundo de cães caídos.

Eh velho do eléctrico!
A nossa morte cabe bem na Terra.
Não precisa de abismos.


José Gomes Ferreira

Os putos, os putos


"Porque os meninos inventaram coisas novas
E até já dizem que as estrelas são do povo"

Rui Monteiro - Os meninos de Huambo

HÁ CRISE OU NÃO HÁ CRISE?

Há blogs que não visito nunca - entre eles o de Vital Moreira.
Porquê?: porque, sabendo quem lá escreve sei o que lá vou encontrar, que é aquilo que, por dever de ofício, sou obrigado a ler todos os dias nos jornais do grande capital - e basta o que basta...

Acontece que, segundo os jornais, um dia destes Vital Moreira produziu no seu blog a seguinte sensacional afirmação: «A crise económica é coisa do passado. Felizmente» - afirmação que não posso deixar sem comentário.

Estou em crer que, escrevendo o que escreveu, o eurodeputado do PS, quis apenas mostrar serviço ao chefe: mostrar ao chefe que é capaz de superar o optimismo crónico deste; que, em matéria de propaganda ao governo e aos milagres provocados pela sua política, é capaz de ser mais papista do que o papa Sócrates...

Todavia, talvez Vital não tenha reflectido o suficiente sobre as consequências imediatas da conclusão que proclamou.
Senão vejamos: a acreditar em Vital - e se «a crise» já passou - acabaram todos aqueles males que, segundo Sócrates, só existem porque existe a «crise»: o desemprego, o emprego precário, os salários em atraso, os despedimentos, as escolas fechadas, os golpes no SNS, a pobreza, a miséria, a fome...
E se assim for, os portugueses estão a viver no melhor dos mundos.
Mas estarão?
Bom, se considerarmos como «portugueses» apenas os chefes dos grandes grupos económicos e financeiros, é verdade que estão nas suas sete quintas - mas essa é uma verdade de antes da crise, de durante a crise e de depois da crise...

No entanto - e sempre dando como certa a conclusão de Vital - há que tirar uma outra conclusão, essa sim, fundamental:
se a «crise» já passou, o Governo deve revogar imediatamente todas as medidas com as quais, invocando a «crise», tem vindo a tramar a vida da imensa maioria dos portugueses:
o PEC não tem mais razão de existir; nem o PEC2; nem os aumentos dos preços dos bens de consumo; nem o roubo nos salários...

Então, em que ficamos?: há crise ou não há crise?...

POEMA

COMBOIO


V


(De um lado para o outro sempre a ouvir este clamor:)


«O teu filho está preso.»

Ah! mas peço-te que não chores, poeta.
Lembra-te de que só tens direito aos gritos dos espelhos dos outros.
À dor fora de ti.
Às insónias caídas dos relógios dos corações alheios.
Aos cardos com sangue de pés de pobres por dentro.

Sim. Abaixo a propriedade privada das lágrimas!


José Gomes Ferreira