As portas que Abril abriu


 Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra.

Onde entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.

Era uma vez um país
onde o pão era contado
onde quem tinha a raiz
tinha o fruto arrecadado
onde quem tinha o dinheiro
tinha o operário algemado
onde suava o ceifeiro
que dormia com o gado
onde tossia o mineiro
em Aljustrel ajustado
onde morria primeiro
quem nascia desgraçado.

Era uma vez um país
de tal maneira explorado
pelos consórcios fabris
pelo mando acumulado
pelas ideias nazis
pelo dinheiro estragado
pelo dobrar da cerviz
pelo trabalho amarrado
que até hoje já se diz
que nos tempos do passado
se chamava esse país
Portugal suicidado.

Ali nas vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
vivia um povo tão pobre
que partia para a guerra
para encher quem estava podre
de comer a sua terra.

Um povo que era levado
para Angola nos porões
um povo que era tratado
como a arma dos patrões
um povo que era obrigado
a matar por suas mãos
sem saber que um bom soldado
nunca fere os seus irmãos.

Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.

Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade.

Era já uma promessa
era a força da razão
do coração à cabeça
da cabeça ao coração.
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

Esses que tinham lutado
a defender um irmão
esses que tinham passado
o horror da solidão
esses que tinham jurado
sobre uma côdea de pão
ver o povo libertado
do terror da opressão.

Não tinham armas é certo
mas tinham toda a razão
quando um homem morre perto
tem de haver distanciação
uma pistola guardada
nas dobras da sua opção
uma bala disparada
contra a sua própria mão
e uma força perseguida
que na escolha do mais forte
faz com que a força da vida
seja maior do que a morte.

Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

Posta a semente do cravo
começou a floração
do capitão ao soldado
do soldado ao capitão.

Foi então que o povo armado
percebeu qual a razão
porque o povo despojado
lhe punha as armas na mão.

Pois também ele humilhado
em sua própria grandeza
era soldado forçado
contra a pátria portuguesa.

Era preso e exilado
e no seu próprio país
muitas vezes estrangulado
pelos generais senis.

Capitão que não comanda
não pode ficar calado
é o povo que lhe manda
ser capitão revoltado
é o povo que lhe diz
que não ceda e não hesite
– pode nascer um país
do ventre duma chaimite.

Porque a força bem empregue
contra a posição contrária
nunca oprime nem persegue
– é força revolucionária!

Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.

Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena.

E então por vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
desceram homens sem medo
marujos soldados «páras»
que não queriam o degredo
dum povo que se separa.

E chegaram à cidade
onde os monstros se acoitavam
era a hora da verdade
para as hienas que mandavam
a hora da claridade
para os sóis que despontavam
e a hora da vontade
para os homens que lutavam.

Em idas vindas esperas
encontros esquinas e praças
não se pouparam as feras
arrancaram-se as mordaças
e o povo saiu à rua
com sete pedras na mão
e uma pedra de lua
no lugar do coração.

Dizia soldado amigo
meu camarada e irmão
este povo está contigo
nascemos do mesmo chão
trazemos a mesma chama
temos a mesma ração
dormimos na mesma cama
comendo do mesmo pão.
Camarada e meu amigo
soldadinho ou capitão
este povo está contigo
a malta dá-te razão.

Foi esta força sem tiros
de antes quebrar que torcer
esta ausência de suspiros
esta fúria de viver
este mar de vozes livres
sempre a crescer a crescer
que das espingardas fez livros
para aprendermos a ler
que dos canhões fez enxadas
para lavrarmos a terra
e das balas disparadas
apenas o fim da guerra.

Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco de Abril
fez Portugal renascer.

E em Lisboa capital
dos novos mestres de Aviz
o povo de Portugal
deu o poder a quem quis.

Mesmo que tenha passado
às vezes por mãos estranhas
o poder que ali foi dado
saiu das nossas entranhas.
Saiu das vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
onde um povo se curvava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.

E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe.
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu.

Essas portas que em Caxias
se escancararam de vez
essas janelas vazias
que se encheram outra vez
e essas celas tão frias
tão cheias de sordidez
que espreitavam como espias
todo o povo português.

Agora que já floriu
a esperança na nossa terra
as portas que Abril abriu
nunca mais ninguém as cerra.

Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.

Quando o povo desfilou
nas ruas em procissão
de novo se processou
a própria revolução.

Mas eram olhos as balas
abraços punhais e lanças
enamoradas as alas
dos soldados e crianças.

E o grito que foi ouvido
tantas vezes repetido
dizia que o povo unido
jamais seria vencido.

Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.

E então operários mineiros
pescadores e ganhões
marçanos e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
souberam que o seu dinheiro
era presa dos patrões.

A seu lado também estavam
jornalistas que escreviam
actores que se desdobravam
cientistas que aprendiam
poetas que estrebuchavam
cantores que não se vendiam
mas enquanto estes lutavam
é certo que não sentiam
a fome com que apertavam
os cintos dos que os ouviam.

Porém cantar é ternura
escrever constrói liberdade
e não há coisa mais pura
do que dizer a verdade.

E uns e outros irmanados
na mesma luta de ideais
ambos sectores explorados
ficaram partes iguais.

Entretanto não descansavam
entre pragas e perjúrios
agulhas que se espetavam
silêncios boatos murmúrios
risinhos que se calavam
palácios contra tugúrios
fortunas que levantavam
promessas de maus augúrios
os que em vida se enterravam
por serem falsos e espúrios
maiorais da minoria
que diziam silenciosa
e que em silêncio fazia
a coisa mais horrorosa:
minar como um sinapismo
e com ordenados régios
o alvor do socialismo
e o fim dos privilégios.

Foi então se bem vos lembro
que sucedeu a vindima
quando pisámos Setembro
a verdade veio acima.

E foi um mosto tão forte
que sabia tanto a Abril
que nem o medo da morte
nos fez voltar ao redil.

Ali ficámos de pé
juntos soldados e povo
para mostrarmos como é
que se faz um país novo.

Ali dissemos não passa!
E a reacção não passou.
Quem já viveu a desgraça
odeia a quem desgraçou.

Foi a força do Outono
mais forte que a Primavera
que trouxe os homens sem dono
de que o povo estava à espera.

Foi a força dos mineiros
pescadores e ganhões
operários e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
que deu o poder cimeiro
a quem não queria patrões.

Desde esse dia em que todos
nós repartimos o pão
é que acabaram os bodos
— cumpriu-se a revolução.

Porém em quintas vivendas
palácios e palacetes
os generais com prebendas
caciques e cacetetes
os que montavam cavalos
para caçarem veados
os que davam dois estalos
na cara dos empregados
os que tinham bons amigos
no consórcio dos sabões
e coçavam os umbigos
como quem coça os galões
os generais subalternos
que aceitavam os patrões
os generais inimigos
os generais garanhões
teciam teias de aranha
e eram mais camaleões
que a lombriga que se amanha
com os próprios cagalhões.
Com generais desta apanha
já não há revoluções.

Por isso o onze de Março
foi um baile de Tartufos
uma alternância de terços
entre ricaços e bufos.

E tivemos de pagar
com o sangue de um soldado
o preço de já não estar
Portugal suicidado.

Fugiram como cobardes
e para terras de Espanha
os que faziam alardes
dos combates em campanha.

E aqui ficaram de pé
capitães de pedra e cal
os homens que na Guiné
aprenderam Portugal.

Os tais homens que sentiram
que um animal racional
opõe àqueles que o firam
consciência nacional.

Os tais homens que souberam
fazer a revolução
porque na guerra entenderam
o que era a libertação.

Os que viram claramente
e com os cinco sentidos
morrer tanta tanta gente
que todos ficaram vivos.

Os tais homens feitos de aço
temperado com a tristeza
que envolveram num abraço
toda a história portuguesa.

Essa história tão bonita
e depois tão maltratada
por quem herdou a desdita
da história colonizada.

Dai ao povo o que é do povo
pois o mar não tem patrões.
– Não havia estado novo
nos poemas de Camões!

Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada
para levar a ternura
à distância imaginada.

Foi este lado da história
que os capitães descobriram
que ficará na memória
das naus que de Abril partiram

das naves que transportaram
o nosso abraço profundo
aos povos que agora deram
novos países ao mundo.

Por saberem como é
ficaram de pedra e cal
capitães que na Guiné
descobriram Portugal.

E em sua pátria fizeram
o que deviam fazer:
ao seu povo devolveram
o que o povo tinha a haver:
Bancos seguros petróleos
que ficarão a render
ao invés dos monopólios
para o trabalho crescer.
Guindastes portos navios
e outras coisas para erguer
antenas centrais e fios
dum país que vai nascer.

Mesmo que seja com frio
é preciso é aquecer
pensar que somos um rio
que vai dar onde quiser

pensar que somos um mar
que nunca mais tem fronteiras
e havemos de navegar
de muitíssimas maneiras.

No Minho com pés de linho
no Alentejo com pão
no Ribatejo com vinho
na Beira com requeijão
e trocando agora as voltas
ao vira da produção
no Alentejo bolotas
no Algarve maçapão
vindimas no Alto Douro
tomates em Azeitão
azeite da cor do ouro
que é verde ao pé do Fundão
e fica amarelo puro
nos campos do Baleizão.
Quando a terra for do povo
o povo deita-lhe a mão!

É isto a reforma agrária
em sua própria expressão:
a maneira mais primária
de que nós temos um quinhão
da semente proletária
da nossa revolução.

Quem a fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.

De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um menino que sorriu
uma porta que se abrisse
um fruto que se expandiu
um pão que se repartisse
um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse
e entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo que levantava
sobre um rio de pobreza
a bandeira em que ondulava
a sua própria grandeza!
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse.
Só nos faltava que os cães
viessem ferrar o dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.

Na frente de todos nós
povo soberano e total
que ao mesmo tempo é a voz
e o braço de Portugal.

Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!

(Ary dos Santos)
Lisboa, Julho-Agosto de 1975



PARA ALÉM DOS VALORES DE ABRIL


É com o 25 de Abril de 74 que se liquida a ditadura fascista abrindo caminho para a materialização das reivindicações populares que há muito se exigiam. No contexto de então foi possível aos trabalhadores imporem um conjunto de cedências à burguesia criando um espaço onde o desequilíbrio favorecia de facto trabalhadores e não o capital. As cedências então feitas, foram recuperadas pelo capital. Entre alguns dos valores de Abril alcançados destacamos o início da Reforma Agrária, a liberdade de reunião, associação e manifestação, a liberdade de organização política, o fim da guerra colonial, entre outras conquistas (ver quadro).
Contudo, o Estado da burguesia não foi inteiramente desmantelado, e não houve alterações no modo de produção vigente. Mesmo as nacionalizações não resolveram o problema do poder (1).
Mais de quarenta anos volvidos do 25 de Abril, colocam-se 2 pontos essenciais aos comunistas: por um lado a caracterização do regime em que vivemos, claramente reconstituído como capitalismo monopolista de Estado e por outro, qual o papel de um partido comunista, marxista-leninista, perante tal regime.
Os marxista-leninistas e os seus partidos comunistas visam criar condições revolucionárias, condições que levem a uma situação revolucionária. Não será seguramente mitigando o capitalismo que os comunistas vão criar essas condições. Não será igualmente através da chamada paz social e da conciliação de classes  - que implicam o silêncio e engano dos explorados e oprimidos - que os comunistas exercem o seu papel. Tais soluções seriam “contra o código genético” de qualquer marxista-leninista. Aproveitando todos os espaços para actuar sobre a realidade, os comunistas usam o parlamento para desmascarar a democracia burguesa e a ditadura do capital mas sem quaisquer ilusões sobre o mesmo.
Os comunistas não têm qualquer reverência pelas instituições da democracia burguesa, que querem desacreditar e fazer ruir, erguendo a democracia socialista. Os marxistas-leninistas não confiam nelas, não têm quaisquer ilusões sobre elas. A justiça é sempre de uma classe. A democracia é sempre de uma classe. O poder é sempre de uma classe sobre a outra. A nossa relação com as instituições do poder burguês deve ser de combate permanente, sem levar para dentro delas uma solução das contradições entre capital e trabalho que de lá nunca sairá.
Em mais um aniversário da Revolução de Abril, cabe aos comunistas continuar a criar condições revolucionárias: pondo a nu a conflitualidade com a classe dominante, dinamizando a luta de massas, mobilizando a classe, parando a produção como forma de luta, desestabilizando as instituições burguesas quando há condições para tal, dirigindo os operários e trabalhadores num processo crescente de radicalização até à Revolução Socialista.
Não aceitamos a tese trotskista do programa de transição (Trotsky 1938c), definindo um conjunto de reformas intermédias, estágios e fases, que numa “escada” muito certinha caminham até ao socialismo. Estas teses são estranhas a um movimento comunista que quer ir à raiz dos problemas sociais.
Os programas dos partidos comunistas e o socialismo vão muito para além dos valores de Abril porque implicam de facto a ruptura com este sistema. Somos e seremos comunistas. E o objectivo dos comunistas não é mitigar os abusos do capitalismo: é destrui-lo.

Com Abril em mente, na senda do socialismo e do comunismo.


(1) Como diz o Programa do nosso Partido, “A revolução portuguesa apresenta como valiosa experiência o facto de, numa situação revolucionária, mesmo não dispondo do poder político, as massas populares em movimento e em aliança com o MFA terem podido transformar profundamente a sociedade, empreender e realizar profundas reformas das estruturas socioeconómicas, influenciar e condicionar o comportamento do poder político e contribuir para a consagração legal dos avanços revolucionários.
Os anos ulteriores mostram também a extraordinária capacidade das massas para resistir à contra-revolução mesmo quando desencadeada e desenvolvida pelo poder político.
Mas a experiência confirma também que a questão do poder acaba por determinar o curso da política nacional.”

(2) “A tarefa estratégica da IV Internacional não consiste em reformar o capitalismo, mas em derrubá-lo. Seu objetivo político é a conquista do poder pelo proletariado para realizar a expropriação da burguesia. Entretanto, o cumprimento desta tarefa estratégica é inconcebível sem a mais atenta atitude em todas as questões de tática, mesmo as pequenas e parciais.
Todas as frações do proletariado, todas as camadas, profissões e grupos devem ser levados ao movimento revolucionário. O que distingue a época atual não é o fato de ela liberar o partido revolucionário do trabalho prosaico diário, mas o de permitir conduzir esta luta em união indissolúvel com as tarefas da revolução.
A IV Internacional não rejeita as reivindicações do velho programa mínimo", à medida que elas conservaram alguma força vital. Defende incansavelmente os direitos democráticos dos operários e suas conquistas sociais. Mas conduz este trabalho diário ao quadro de uma perspectiva correta, real, ou seja, revolucionária. A medida que as velhas reivindicações parciais mínimas" das massas se chocam com as tendências destrutivas e degradantes do capitalismo decadente - e isto ocorre a cada passo -, a IV Internacional avança um sistema de REIVINDICAÇÕES TRANSITÓRIAS, cujo sentido é dirigir-se, cada vez mais aberta e resolutamente, contra as próprias bases do regime burguês. O velho programa mínimo" é contentemente ultrapassado pelo PROGRAMA DE TRANSIÇÃO, cuja tarefa consiste numa mobilização sistemática das massas em direção à revolução proletária” (Trostky, L. 1938, in O Programa de Transição)

(As letras maiúsculas correspondem ao documento como está na internet)


OS VALORES DE ABRIL*
Liberdade de expressão e de pensamento sob qualquer forma
Liberdade de manifestação
Liberdade de reunião e associação
Liberdade de organização política
Liberdade sindical
Salário mínimo nacional
Igualdade de direitos
Eleições livres
Direito de votar com mais de 18 anos
Direito à justiça
Independência e dignificação do poder judicial
Direito à educação
Direito à cultura
Direito à habitação
Direito ao trabalho
Direito à reforma
Direito à saúde
Direito à greve
Controlo operário
Nacionalizações
Reforma agrária
Poder local democrático
Política económica democrática e estratégia antimonopolista
Política social essencialmente na defesa dos interesses da classe trabalhadora
Aumento da qualidade da vida de todos os portugueses
Lei do arrendamento rural e dos baldios
Fim da guerra colonial
Política externa orientada pelos princípios da independência e da igualdade entre os estados, na não ingerência nos assuntos internos dos outros países e da defesa da paz
Participação dos portugueses na vida pública nacional garantindo, pelo seu trabalho e convivência pacifica, qualquer que seja a posição social que ocupem, as condições necessárias à definição, de uma política que conduza à solução dos problemas nacionais e à harmonia, progresso e justiça social indispensáveis ao saneamento da vida pública e à obtenção do lugar a que Portugal tem direito entre as nações
*da intervenção de José Casanova no aniversário de Vasco Gonçalves.

Materialismo Contra o Moralismo

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Poucas terão sido as vezes, nos últimos tempos, em que um texto me deixou tão entusiasmado como este artigo de Eliane Brum. Um dos principais aspectos, quanto a mim, da extrema debilidade a que foram reduzidas as forças progressistas desde  derrocada do bloco socialista está identificada com enorme precisão, e as suas consequências enunciadas praticamente uma por uma. Falo da sentimentalização idealista da luta política, substituindo-se a fundamentação ideológica, teórica, histórica, dos posicionamentos políticos e das decisões tomadas pelas organizações de esquerda, por uma série de «próteses» idealistas que vão desde os valores da esquerda, à ética da esquerda, passando por outras moralices do género. Reduzindo as consequências do capitalismo a uma questão de carácter dos dirigentes políticos de turno, esta concepção insolitamente cristã da política não tem coisa nenhuma que ver com a tradição do pensamento marxista e (por isso) obstaculiza qualquer acção revolucionária digna de nota.

Marx e Engels não eram especialmente crítico do capitalismo no plano ético. Naturalmente, não lhe era indiferente o destino que o capitalismo reserva ao proletariado, ajuizaram sobre ele, pronunciaram-se contra ele, definiram-no como vergonhoso, foram críticos do que há de mesquinho e abjecto na voragem da acumulação e do lucro. Mas como escreveu Engels sobre os socialistas utópicos no Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico «para todos eles, o socialismo é a expressão da verdade absoluta, da razão e da justiça, e é bastante revelá-lo para, graças à sua virtude, conquistar o mundo», logo acrescentando que «para converter o socialismo em ciência era necessário, antes de tudo, situá-lo no terreno da realidade». Sublinha-se a referência à transformação do socialismo em ciência (deixando o campo da razão, da justiça, da verdade,e das concepções ético-morais dessa natureza) porque, literalmente, é esta transformação que faz o socialismo descer à terra: todas as ideias políticas que se reclamam a concretização de um conjunto de valores, de ideais, de sonhos, de contos de fadas e castelos de nuvens de seja que ordem for, são estranhas ao marxismo. O marxismo não quer corporizar valores inventados por Deus Nosso Senhor ou concebidos por um qualquer génio da política e da moralidade: quer actuar sobre a realidade material existente, modificá-la, transformá-la, fazer dela a realidade do socialismo (apetece dizer, fazer dela o socialismo real). É acção de pessoas concretas, de uma classe concreta, sobre uma realidade social que existe, mexe, vive. A tese dos valores forjados na cabeça de um sábio ou de um colectivo deles (como se a cabeça dos sábios não fosse, desde logo, a cabeça de gente, e gente de uma determinada classe) e feitos matéria na realidade social, é o mais absurdo dos fetichismos.

Eliane Brum percebe distintamente e apresenta o principal risco que o moralismo, isto é, a redução da política à ética e à batalha das crenças entre comunidades de crentes (em muito parecida a uma discussão entre padres de seitas distintas, ou a uma discussão sobre amigos imaginários), pode constituir para a política brasileira, numa formulação que se aplica a muitos outros lugares: «[h]á uma enorme descrença nos políticos e nos partidos tradicionais, este já é um lugar comum. Mas é importante perceber que a esta descrença se contrapõe não mais razão, mas uma vontade feroz de crença. Quando os dias, as vozes e as imagens soam falsas, e a isso ainda se soma um cotidiano corroído, há que se agarrar em algo. Quando se elege um culpado, um que simboliza todo o mal, também se elege um salvador, um que simboliza todo o bem. A adesão pela fé, manifeste-se ela pelo ódio ou pelo amor, elimina complexidade e nuances, reduz tudo a uma luta do bem contra o mal. E isso, que me parece ser o que o Brasil vive hoje, pode ser perigoso. Não só para uma ditadura, como é o medo de alguns, mas para que se instale uma democracia de fachada». Esvaziar a política de racionalidade, enchê-la de emotividade e irracionalismo (quem esqueceu que Marcelo Rebelo de Sousa dizia, há poucos meses, querer fazer «uma campanha de afectos»?), afastá-la da concretização de projectos de sociedade e reduzi-la a uma espécie de jogo de futebol em que os partidários de cada um dos lados são apenas uma claque em fúria, é um projecto velho de muitos anos. No qual, é lastimável, já caiu alguma esquerda.

A autora apresenta-nos um caminho que muito me agrada, e que muito tem a ver com as minhas reflexões a este respeito: «talvez o mais importante, neste momento tão delicado, seja resistir. Resistir a aderir pela fé ao que pertence ao mundo da política. Fincar-se na razão, no pensamento, no conhecimento que se revela pelo exercício persistente da dúvida. É mais difícil, é mais lento, é menos certo e sem garantias. Mas é o que pode permitir a construção de um projecto para o Brasil que não seja o da destruição. Quem sofre primeiro e sofre mais com a dissolução em curso são os mais pobres e os mais frágeis». É uma grande e sábia proposta: num tempo em que o irracionalismo tomou conta da discussão política, em que esta se permitiu ser rebaixada à disputa passional e clubística, em que a serenidade tomou sumiço e a passagem em revista dos erros e acertos para a definição de um novo projecto transformador que nos guie à revolução e ao socialismo choca com o sem-número de pruridos e sensibilidadezinhas que sempre são antepostos à discussão racional, à discussão científica, do caminho a trilhar, defender a razão, defender o materialismo dialéctico, defender a ciência do proletariado, não soçobrar à publicitarização nem à sentimentalização da política, é já um acto de coragem bem revelador da combatividade de quem o faz. E sem esta resistência, se apenas tivermos o moralismo e a famigerada confiança nos valores da esquerda e na ética de esquerda, teremos talvez uma enorme Igreja Universal do Reino Vermelho - mas não teremos, nunca teremos, a sociedade em que queremos viver.