"Duas semanas depois tem um encontro com Fernando nas imediações da Estação Sul e Sueste e chega à hora marcada, apesar da chuva forte e do temporal que fustigam a cidade e obrigaram à suspensão das viagens dos cacilheiros.
O Camilo foi suspenso do partido, deves cortar imediatamente todos os contactos com ele – dispara Fernando em voz cortante.
Aturdido, fixa no outro um olhar interrogativo, depois consegue balbuciar: Não percebo.
No entanto, é fácil perceber – diz Fernando acentuando o seu jeito arrogante e mordaz – Acabo de transmitir-te uma informação concreta e uma orientação igualmente concreta, Preciso de mais explicações – exige crispado, Dar-te-ei as informações possíveis, mas talvez te baste saber que há suspeitas de ele ser informador da PIDE, um infiltrado, portanto.
Solta um grito que desperta a atenção das pessoas que, não muito longe deles, se abrigam da chuva debaixo das arcadas do Terreiro do Paço. Fernando prende-lhe fortemente um braço e arrasta-o na direcção da Rua Augusta, furioso, acusando-o de irresponsabilidade. Francisco, apesar de irritado consigo próprio por achar que o outro tem razão, repele com firmeza a acusação de que o amigo é alvo. Travam uma discussão sussurrada, sob a chuva que continua a cair forte, Fernando abrigado pelo guarda-chuva, Francisco sem parecer apercebe-se de que, porque se afastou do outro no decorrer da discussão, está completamente encharcado, Sei que essa informação é falsa, conheço o Eugénio, somos amigos, Seres amigo dele não conta para o caso, ou antes, conta, és amigo de um inimigo, de um infiltrado, com a agravante de ele ter vindo ao partido através de ti.
Domina, com dificuldade, a vontade de se atirar ao outro e o espancar e, com voz rouca, pergunta: O Eugénio já sabe, Já, a decisão deve ter-lhe sido comunicada ontem.
Não consegue imaginar qual terá sido a reacção de Eugénio: amargura e tristeza?, uma das suas estrondosas gargalhadas?....
Menos agitado, diz, procurando dar serenidade à voz: Quero falar com alguém do partido, Alguém responsável, Estás a falar com alguém do partido, Alguém responsável, Estás a falar com alguém responsável – observa Fernando com ostensiva insolência.
Francisco vira-lhe as costas e afasta-se a correr.
No Rossio tenta, inutilmente, apanhar um autocarro ou um eléctrico. Sob a chuva que continua a cair forte e tocada por um vento ciclónico, vêem-se longas filas de carros, muitos deles apitando, parados, imóveis.
Prossegue a marcha a pé, Avenida acima, em passo acelerado e, meia hora mais tarde, pressiona com força a campainha da porta de Luís.
O amigo recebe-o inquieto, tenta convencê-lo a mudar a roupa encharcada, a enxugar-se. Desiste, contudo, quando à luz da sala lhe vê o rosto sofredor, os olhos cheios de lágrimas, que, misturadas com a água que lhe cai dos cabelos, lhe correm pelas faces.
E compreende o que se passou.
Tu sabias – mais do que uma pergunta é uma afirmação sofrida, um gemido gritado. E quando Luís, afectuoso, pondo-lhe a mão no ombro, lhe diz: Há-de esclarecer-se tudo, por agora faz o que te disseram, corta contactos com o Eugénio e mantém-te na casa onde estás – ele afasta-se bruscamente, sai batendo a porta com força, puxa e fecha com ainda maior força a porta da rua, e, sem hesitar, dirige-se para casa da dona Lucrécia, para a sua casa."

(Casanova, José; 2012:248-250, in O Caminho das Aves)


2 comentários:

cid simoes disse...

Livro a reler e recomendar.

Catarina Casanova disse...

Obrigada Cid Simões!
Abraço fraterno.