Há que dizer das memórias o que dizemos das conversas: que são como as cerejas: pegamos numa, e outra e outra se lhe juntam numa por vezes ininterrupta sucessão...
Foi assim que, depois de escrever o post de ontem, a memória da minha velha professora insistiu em ficar - e ficou.
Certamente porque o que aqui deixei escrito sobre ela não apenas estava longe, muito longe, de corresponder ao que ela foi, mas poderia, até, prestar-se a injustíssimas confusões...
Lembrei-me das cartas que trocavamos quando, após ter terminado a instrução primária, vim para Lisboa; das longas conversas que tínhamos sempre que eu me deslocava à aldeia. (conversas em que, a dada altura, eu lhe ensinava o que, entretanto, fora aprendendo: que os comunistas não comiam criancinhas...; que Salazar fora um aliado dos franquistas e dos nazis, etc, etc...)
Depois, a PIDE caçou-me.
A boa Senhora fez todos os esforços para me visitar na prisão, escrevendo a todas as pessoas que ela pensava que poderiam autorizar uma visita...
Naturalmente, não conseguiu autorização.
Então, passou a escrever-me: cartas que, obviamente, nunca me foram entregues...
Entretanto, mandava-me através da minha família aqueles mimos que é uso darmos às pessoas de quem muito gostamos: chocolates, bolos, queijos, paios... cigarros...
E livros! - a prenda de aniversário, todos os anos, e cuja escolha obedecia, obviamente, a um determinado critério que, com o tempo, foi evoluindo.
Foi assim que começou por me oferecer o «Rob Roy», de Walter Scott, a que se seguiu, do mesmo autor, o «Ivanhoe»...
Depois, ao terceiro ano, algo a levou a oferecer-me um livro de poemas: «Obras Poéticas», de Manuel Bandeira e, no ano seguinte, surpreendentemente (ou talvez não...) «A Cabana do Pai Tomás», de Harriet Beecher Stowe (?)...
O penúltimo livro foi «Chiquinho», de Baltazar Lopes e o último «O Diário», de Anne Franck...
Guardo-os ainda hoje, todos, com as suas lindas dedicatórias, cheias de amizade, de carinho, de ternura.
Quando saí da prisão, uma das minhas primeiras visitas foi para ela: reformada, morava, então, em Évora, e lá passei um fim-de-semana. Conversámos sobre tudo, em longas conversas que apenas eram interrompidas para ela fazer as suas orações, que não dispensava...
E, ao longo dos anos, fomo-nos encontrando.
E quando, na sequência dos acontecimentos que levaram ao fim da União Soviética, os jornais e televisões levavam por diante uma feroz, raivosa e ameaçadora campanha anti-comunista, ela deslocou-se a Lisboa, de propósito... e ofereceu-me a sua casa para eu me refugiar, se fosse necessário...
Era linda, a minha professora.