LITANIA PARA O NATAL DE 1967
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Tem no ano dois mil a idade de Cristo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos vir pedir contas do nosso tempo
David Mourão-Ferreira
Nem Um Cêntimo Para o Banif!
Escrevo este texto quando tudo parece apontar para
termos três Governos consecutivos a usar fundos públicos para salvar
bancos falidos. O tal dinheiro que "não há" para a educação, a cultura, a
saúde, a ciência, as reformas dos velhos e os subsídios dos
desempregados, aparece sempre, aos largos milhares de milhões, quando se
trata de burgueses encalacrados. Naturalmente, para mais tarde ser
reembolsado ao Estado, com juros, que este mesmo Estado aplica em
protecção social. Ah não, esperem: afinal o Estado nunca mais o vê, e a
protecção social pode esperar, que afinal os pobrezinhos são
desenrascados para sobreviver, ao contrário dos empresários
"empreendedores" que só conseguem empreender montados às costas do
aparelho de Estado.
Nada do que se passou no Banif é
significativamente diferente do que se passou no BPN ou no BES: temos um
banco que serve para financiar negócios de duvidosíssima viabilidade,
onde o Estado já tinha enterrado dinheiro suficiente para ficar com 60%
das acções, e onde o Banco de Portugal - oh surpresa! - não encontrava
nunca nada de alarmante. A coisa podia ter sido resolvida sem que
parecesse muito mal se a participação do Estado tivesse sido vendida a
uma entidade financeira chinesa, a Fosun, que ficaria com a batata
quente. Ocorreu o inesperado: um dirigente de topo da Fosun foi preso
pelas autoridades chinesas, deixando o negócio em águas de bacalhau. O
Banif, que pertence em 60% ao Estado mas onde ao que parece o Estado
deixou a gestão rolar conforme calhasse, ficou incapacitado de
reembolsar esse mesmo Estado dos 125 milhões de euros que vencem no dia
31 deste mês. E o mesmo Estado que já enterrou mais de 800 milhões no
Banif, vai sugar ao bolso do contribuinte ainda mais dinheiro para
resolver esta embrulhada, despedindo cerca de cem trabalhadores do banco
pelo caminho.
Alguns dirão que houve incúria, que houve
incompetência, que houve desleixo aqui. Estão totalmente enganados. O
Estado burguês pode fazer-se de parvo, mas de parvo não tem nada: e o
seu objectivo, no cumprimento estrito de uma regra geral do capitalismo
monopolista de Estado, é colocar a sua máquina ao serviço quer dos
grandes grupos económicos nacionais, quer das burguesias imperialistas
alemã e estadunidense. Como escreveu Lenine "o monopólio, uma vez que
foi constituído e controla milhares de milhões, penetra de maneira
absolutamente inevitável em todos os aspectos da vida social,
independentemente do regime político ou de qualquer outra
particularidade" (1), criando uma oligarquia financeira que circula dos
cargos de Estado para as direcções de grandes grupos económicos e
financeiros e vice-versa. É esta, rigorosamente, a situação portuguesa. A
estruturação do Estado torna praticamente impossível dar um passo em
defesa do "interesse público" sem que isso implique perceber a que ponto
este está estreitamente entrelaçado com o interesse dos monopolistas.
Romper esta junção dos dois interesses só pode ser obra de
transformações revolucionárias que ponham decisivamente em causa quer a
propriedade desses monopólios quer o modo de produção que os criou. Ou
seja: sem nacionalização e socialização dos monopólios a ruptura com o
actual estado de coisas é uma miragem.
Ministro de Sócrates, o homem que salvou o BPN da forma que todos nos lembramos, num Governo onde pontificava Luís Amado, Presidente do Conselho de Administração do Banif, António Costa oferece muito poucas garantias de vir a fazer com o Banif algo de particularmente diferente do que foi feito com o BPN pelos membros do seu partido, ou por Passos Coelho no BES. Só a mobilização determinada de todos nós, rejeitando continuar a financiar bancos falidos com o nosso dinheiro, poderá impor ao Governo a adopção de outras soluções. E só a nacionalização da banca e das principais empresas estratégicas, socializadas, postas ao serviço dos trabalhadores e sob sua gestão, poderá resolver a título definitivo estes sistemáticos problemas de «crises» nos bancos, que não passam do capitalismo a ser igual a si próprio.
(1) Lenine - Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo. Lisboa: Ed. Avante, 2000, p. 62
Maria Eugénia Cunhal
Cantar de amigo*
O tempo passa, amor, correm os diasE as ruas em silêncio à nossa espera
À hora em que as palavras não são ditas
E as mãos entrelaçadas são poemas.
O tempo passa, amor, ventos arrastam
Cada segundo de vida que ofertamos
À luta consciente a que nos damos
E as horas para amar já não nos bastam.
Por cada dia fica em nossos rostos
Mais uma ruga do mapa dos caminhos
Que percorremos juntos, mas distantes
Ombro a ombro, sempre, mas sozinhos.
Quilómetros de noite nos separam
Meu corpo já cansado pede tanto
A ternura de um beijo sempre adiado
Enquanto beijo aqueles p’ra quem canto.
Deixa dizer-te apenas uma vez
Esta saudade enorme que me habita
Mas crê que em cada dia em que me vês
Minha coragem renasce e ressuscita.
Deste sofrer distante, desta ausência
Ficarão as sementes que lhe damos
E no coro das vozes que cantamos
Encontro a tua voz, distintamente.
(Maria Eugénia Cunhal)
*Adriano musicou este poema, mas a obra nunca chegou a ser editada.
Os Factos São Teimosos
O séc. XX e a existência de diversos processos de imposição à burguesia de concessões em matéria de protecção social garantidas pelo seu Estado de classe tornaram algo complicado até mesmo explicar a tese marxista de que o Estado, fundamentalmente, é um aparelho de repressão da classe dominada pelo classe dominante. De imediato surgem resistências, objecções, teses sobre a necessidade manter a luta pelas conquistas obtidas nesse âmbito - tudo afirmações que merecem atenção e até concordância, mas que não iludem o essencial: esse Estado está ao serviço da burguesia. Ela vai utilizá-lo para reprimir o proletariado. Ela vai tentar livrar-se assim que possível das conquistas sociais que o proletariado lhe impôs. E portanto, só uma organização proletária capaz de liquidar o aparelho repressivo do Estado burguês - e não apenas de se apropriar dele, por via eleitoral, por via putschista, ou por outra via qualquer - é garantia de triunfo e de construção do socialismo.
O exemplo venezuelano, de onde chegam hoje notícias de uma derrota pesada para as forças progressistas, é mais um caso a atestar esta teoria geral, que o movimento operário internacional aprendeu ao longo de dezenas de anos, em incontáveis exemplos, com sacrifícios terríveis. Não poderemos nunca deixar de referir a importância do processo bolivariano para a reposição na ordem do dia da luta pelo socialismo, completamente arredada dos projectos de sociedade de praticamente todos os regimes políticos do planeta inteiro desde a implosão da URSS. Mas o processo de transformação da sociedade que é a construção do socialismo, processo incontornavelmente revolucionário dado que nenhuma classe opressora aceita pacificamente perder os seus privilégios, não podia ter sido feito assim, e já havia uma longuíssima experiência acumulada pelo movimento operário que o permitia saber. Erros seríssimos foram cometidos, desde o consentimento de que a burguesia mantivesse intacto o seu império mediático, os seus partidos de classe, uma parte crucial dos meios de produção na sua posse, importantes posições nas forças armadas, relações permanentes e sem entraves com o imperialismo estadunidense e com o Estado terrorista da Colômbia. Naturalmente, apoiada numa tão poderosa estrutura de manipulação das massas, com tantas condições para sabotar e agredir o processo de transformação social, e confrontada com um movimento de massas certamente heróico, seguramente abnegado, mas infelizmente sem os instrumentos materiais que lhe permitiriam garantir a sua liberdade - e que são, é fulcral dizê-lo com todas as letras, os instrumentos da organização popular armada para reprimir a contra-revolução de vencer -, a burguesia demorou, mas inexoravelmente recompôs a sua força e logrou uma vitória importante no campo institucional.
Como Lenine escrevia sobre os críticos de Marx que, relutantemente, acabavam a dar razão a algumas das suas teses sobre a dinâmica do capitalismo quando era impossível deixar de o fazer, «os factos são teimosos». O facto de que o Estado da burguesia não pode e não vai ser usado pelos trabalhadores para se emanciparem, como se viu no Chile, no Brasil, no Irão, nas Honduras, na Grécia de Tsipras, e agora na Venezuela, continua, com a sua teimosia, a desafiar todos os idealismos de sinal contrário. Que o povo venezuelano, o primeiro a erguer a bandeira do socialismo depois da pior derrota do movimento operário internacional em toda a sua história, a implosão do campo socialista, saiba extrair deste revés não um desalento que o paralise, mas um ensinamento que lhe permita agir com mais acerto na luta pela sua libertação do imperialismo e da exploração do homem pelo homem.
Quando o velho se esconde por detrás do novo:
Retrocesso ideológico de um impulso apenas aparente
Por Ana Saldanha*
Precedentes de um velho impulso mascarado de novo
Para
compreendermos a atual situação sociopolítica portuguesa, de grandes
potencialidades de luta social, mas onde se anteveem grandes perigos no âmbito
ideológico, nomeadamente através da criação de ilusões e de parcialidade na
compreensão da luta de classes, decidimos ter como ponto de partida do presente
ensaio os mais recentes desvios social-democratizantes internos de que foi alvo
o Partido Comunista Português, nomeadamente aquele que se verificou nas
vésperas do XVI Congresso (2000) e que se materializou no documento vulgarmente
conhecido por Novo Impulso (1998).
Para
abordar a problemática que esteve na origem do Novo Impulso , não
recuámos a 1956-1959, quando assistimos a um desvio de direita, reconhecido
pelo PCP na reunião do Comité Central de 1961 (em que Álvaro Cunhal é eleito
secretário-geral), mas consideramos essencial abordar, ainda que brevemente, o
momento em que o grupo dos seis (Vital Moreira, Silva Graça, Veiga de
Oliveira, Sousa Marques, Vítor Louro, Dulce Martins) reclama mudanças internas.
Os
exemplos do percurso político de Vital Moreira ou de Veiga Oliveira facilmente
traduzem os interesses que subjaziam às críticas destes ex-militantes ao PCP.
Vital Moreira foi deputado à Assembleia Constituinte pelo PCP de 1975-1976 e
deputado à Assembleia da República pelo PCP, de 1976 a 1982, tendo sido depois
eleito deputado pelo PS em 1996 e cabeça de lista deste partido ao Parlamento
Europeu em 2009, onde se manteve como deputado europeu até 2014. Veiga Oliveira
foi ministro dos Transportes e Comunicações do IV Governo Provisório
(Primeiro-Ministro: Vasco Gonçalves) e ministro do Equipamento Social e Obras
Públicas do VI Governo Provisório (Primeiro-Ministro: Pinheiro de Azevedo),
deputado à Assembleia da República pelo PCP e vice-presidente do grupo
parlamentar do PCP entre 1976 e 1984. Filia-se no PS em 1999 e apoia, para as
eleições presidenciais de 2006, a candidatura de Cavaco Silva à Presidência,
vindo a afirmar que o comunismo foi "um embuste gigantesco" (cit. por
Paulo Martins, Morreu Veiga de Oliveira, o homem de cara "única",
JN, 28/08/2006).
O grupo
dos seis considerava que "A liberdade de expressão dentro do PCP
continua a estar limitada e condicionada" (cit. por Helena Pereira, Primeiro
comunicado foi a gota de água para onda de demissões, Público, 19/08/2001),
defendendo o voto secreto no XII Congresso (que se realizaria em 1988) e
criticando o facto de, no projeto de teses em discussão para esse mesmo
Congresso, a discussão estar condicionada. O grupo dos seis torna
públicos vários documentos de contestação entre 1987 e 1988. É também na fase
preparatória deste Congresso que surge um outro documento, assinado por Zita
Seabra, e entregue à direção do PCP.
Em ano
de eleições legislativas, o PSD atinge, em 1987, a primeira maioria absoluta [1] , e Cavaco
Silva torna-se então Primeiro-Ministro. Num quadro de fortes ataques internos
por parte de militantes com tarefas institucionais e diretivas, num momento de
descrédito do socialismo no leste da Europa e na URSS (processo iniciado em
1985 com a política da Perestroika, encetada por Mikhaïl Gorbatchev, e que
conduziria à desagregação da URSS) – o PCP, que nas eleições legislativas a 25
de Abril de 1983 [2]
havia alcançado 1.031,609 de eleitores, ou seja, 18% dos votos, e eleito 44
deputados – alcança 689.137 eleitores, 12,14% dos votos, e elege 31 deputados.
É neste contexto que, em 1988, ano de concretização do XII Congresso, surge um
terceiro documento, subscrito pela chamada Terceira Via, a qual
congregava então militantes como Raimundo Narciso (ex-operacional da Acção
Revolucionária Armada. ARA), Pina Moura, Barros Moura ou José Luís Judas, a
grande maioria dos quais membros do Comité Central. Juntando a sua voz
social-democrata àquela outra do grupo dos seis, os subscritores desta Terceira
Via propunham, tal como aquele, a eleição de delegados ao Congresso e a
eleição do Comité Central através de voto secreto, exigindo a aprovação de um
novo programa do PCP.
É neste
ambiente de contestação interna e num quadro internacional em que a grande
burguesia gradualmente fortalece as suas posições – fato que culminaria com a
desagregação da URSS em 1991 –, que é aprovado no XII Congresso o novo programa
do PCP, Para uma Democracia avançada no Limiar do Século XXI, cuja
aprovação, segundo o ex-militante do PCP Raimundo Narciso, depois militante do
PS, ia de encontro às exigências dos integrantes da Terceira Via e seria
o resultado de uma tentativa de estancamento das inevitáveis saídas dos então ainda
militantes do PCP [3]
.
A
realidade é que as exigências e formulações dos posteriores integrantes do PS
não representavam nada de novo no seio de um partido revolucionário. As
constantes influências e imposições da ideologia dominante e as suas tentativas
de alterar o carácter revolucionário do inimigo contam sempre com participação
ativa interna. Como disse. O percurso político dos então militantes evidencia
claramente o oportunismo, carreirismo e deslealdade daqueles:
Álvaro
Cunhal, no período agudo de turbulência interna do PCP de 1987 e 1988, que
culmina no XII Congresso de 1 de Dezembro de 1988, caracterizou a situação
política interna do partido como sendo expressão da "crise da consciência
comunista de alguns militantes", mais do que uma crise do Partido. O
diagnóstico do estado de consciência político-ideológica dos elementos do
chamado "Grupo dos Seis" e dos da designada "Terceira Via"
está, meia dúzia de anos volvidos, perfeitamente confirmado. A atitude
preventiva da direcção do PCP, a vigilância, o controlo e a luta contra a
dissidência, permitiu evitar o pior. Se porventura qualquer dos dois grupos,
aliás muito semelhantes na teoria e na prática, e convergentes nos propósitos,
tivesse levado de vencida as suas teses de reestruturação, renovação e
revitalização do PCP, teríamos a liquidação do Partido. Se os partidários da
proclamada renovação dos finais dos anos 80 se foram meter com armas e bagagens
no PS, que poderíamos esperar de tão encarniçados (como o rabanete!)
militantes, então nominalmente ainda comunistas? (José Manuel Jara, Avante!,
n° 1750, 14/06/2007).
Em
1990, Zita Seabra (que no XII Congresso já não havia sido eleita para o Comité
Central) seria expulsa do Partido Comunista Português. O imediato e fulgurante
ascenso político desta ex-militante comunista evidencia, uma vez mais, os
objetivos políticos daqueles que tão arduamente condenavam o funcionamento
interno do Partido Comunista Português. Convidada pelo então Primeiro-Ministro
Cavaco Silva, coordenou, em 1993, o Secretariado Nacional para o Audiovisual, e
assumiu a presidência do Instituto Português de Cinema. Em 1997, Marcelo Rebelo
de Sousa, na altura líder do PSD, convida-a para ser candidata à Câmara
Municipal de Vila Franca de Xira. Marcelo Rebelo de Sousa é filho de Baltasar
Rebelo de Sousa, comandante do Centro Universitário de Lisboa
da Mocidade Portuguesa enquanto estudante, depois assumindo funções diretivas
de relevo dentro desta mesma instituição, subsecretário de Estado da Educação
entre 1955 e 1961, depois secretário do ministro das Colónias, Marcelo Caetano,
e Governador-geral de Moçambique entre 1968 e 1970 – isto para além da assunção
de outras funções de importância dentro do fascismo. O mesmo Baltasar Rebelo de
Sousa que, assustado com Revolução portuguesa, decide instalar-se no Brasil.
O PSD
não ganhou a Presidência da Câmara Municipal, mas Zita foi eleita vereadora,
tendo o PCP perdido a presidência camarária deste órgão municipal. Em 1998
filia-se no PSD e, em 2005, a convite do então Primeiro-Ministro Santana Lopes,
encabeça a lista de deputados do PSD por Coimbra à Assembleia da República.
Eleita deputada, foi até 2007 vice-presidente do Grupo Parlamentar do PSD.
Editora na Quetzal, foi administradora e diretora editorial da Bertrand
Editora. Atualmente, é diretora editorial da casa de edição que fundou, a
Alêtheia Editores, a qual conta entre as suas edições obras claramente
anti-comunistas, como Foi Assim, da própria Zita Seabra, O Livro
Negro de Cuba, de Repórteres Sem Fronteiras, obras de teor religioso e
conservador, como Teologia do Corpo, de João Paulo II, A Europa de
Bento na crise de culturas, de Joseph Ratzinger, Auto-de-Fé - A Igreja
na Inquisição da Opinião Pública, entrevista da própria Zita Seabra a um
padre, obras de teor sensacionalista e eleitoralista, como Carla [Bruni]
e Nicolas [Sarkozy] : uma ligação perigosa ou Somos o que
queremos ser: uma biografia de Pedro Passos Coelho.
Data do
mesmo ano em que Zita é expulsa do PCP, o INES (Instituto de Estudos Sociais),
instituto que, reunindo o grupo dos seis e a chamada Terceira Via, e
pretendendo-se de reflexão política, fora organizado por militantes cujo
caminho se cruzaria, inelutavelmente, com o do Partido Socialista: "A
semente da discórdia floresceu numa bela rosa social-democrata, e a
"terceira via", conglomerada com os "Seis" (e tutti quanti)
no Instituto Nacional de Estudos Sociais (INES), depois transformada em
gabinete da Plataforma de Esquerda, converteu-se numa via terceira à moda de
Guterres ou à Sócrates, pelo figurino neoliberal do Tio Blair" (José
Manuel Jara, Avante!, n° 1750, 14/06/2007). Lembremo-nos, por exemplo,
de José de Magalhães, antes deputado comunista – e que em 1990, apesar de ter
abandonado a bancada do PCP, não abandonou o lugar na Assembleia da República (ao
contrário do que ética e estatutariamente havia assumido enquanto eleito) –,
eleito em 1991 para a Assembleia da República, onde se manteve até 2005, pelo
Partido Socialista. Filiando-se (oficialmente) no Partido Socialista em 1999, é
nomeado secretário de Estado Adjunto e da Administração Interna, em 2005, no
primeiro governo de José Sócrates, e posteriormente, em 2009, secretário de
Estado da Justiça e da Modernização Judiciária, no segundo governo de José
Sócrates.
Em 1991
[4] , ano da
queda da URSS, vários dos integrantes do grupo dos seis, da Terceira
Via e do INES que ainda não tinham saído do Partido são ou expulsos (Mário
Lino, Raimundo Narciso e Barros Moura) ou abandonam do Partido (como José Luís
Judas).
Goradas
as seguidas tentativas de desestruturar ideológica e politicamente o PCP,
surge, em 1992, a Plataforma de Esquerda, que, depois de reunir
ex-militantes que ativamente haviam combatido os fundamentos que justificam a
atuação política e revolucionária de um Partido Comunista, como Barros Moura,
José Luís Judas, Pina Moura, Miguel Portas, Osvaldo Castro ou Raimundo Narciso,
serviria como porta de entrada de muitos deles ora para o PS (a grande
maioria), ora para pequenas estruturas político-ideológicas que, pretendendo
ocupar o espaço político-social do PCP, apoiadas por uma burguesia que bebe as
suas fontes num anti-comunismo primário e visceral, identificam em lutas
setorializadas e desligadas das massas trabalhadoras o seu limitado oportunismo
de ação.
Sobre
Zita Seabra, Vital Moreira, José Luís Judas, Barros Moura, e tantos outros, as
palavras sobre os respetivos percursos bastariam para compreender os objetivos
e pretensões que os moviam quando militantes empenhados na crítica e combate ao
PCP:
Desses
grupos, num breve sumário, iremos encontrar três secretários de Estado (José
Magalhães, Mário Vieira de Carvalho e Isabel Pires de Lima [5] ) e um ministro (Mário Lino), do
Governo de Sócrates, vários deputados do PS, gestores de grandes empresas (Pina
Moura, depois de vários ministérios), empresários, um presidente de Câmara do
PS (José Ernesto). Vital Moreira, relator principal dos documentos dos
"Seis", tornou-se um defensor oficioso do Governo do PS, depois de
ser um deputado algo "independente" (José Manuel Jara, Avante!, n°
1750, 14 de junho de 2007).
As
sempre presentes tentativas de destruir o PCP, nomeadamente a partir do seu
próprio seio, são históricas. E merecem que sobre elas reflitamos, discutamos,
escrevamos, de forma a compreender o que somos, fomos e não poderemos deixar de
ser.
Não
acrescentaremos mais sobre as experiências de combate ao Partido, a partir do
seu próprio seio, movidas pelos grupos acima citados. Referir-nos-emos, de
seguida, ao ano de 1998. Ano que vê nascer, em 15 de fevereiro, o Comunicado do
Comité Central do PCP Por um novo impulso na organização, intervenção e
afirmação política do Partido, comumente conhecido por Novo Impulso.
De 1998
a 2002, data da Conferência Nacional do PCP (passando pelo XVI Congresso, em
2000), muitos dos então militantes tomariam, pela primeira vez, contacto com a
luta de classes. Não fora, mas dentro da casa Nossa. Aquela que tem paredes de
vidro.
O Novo
Impulso: nova tentativa de subjugação de um partido revolucionário
O Novo
Impulso retomaria as já conhecidas fórmulas do grupo dos seis, da Terceira
Via e do grupo do INES. Já que os ex-militantes se encontravam então
percorrendo alegremente os caminhos política e financeiramente profícuos dos
partidos representativos da classe dominante, outras caras teriam de dar a cara
pela velha tentativa de renúncia a uma prática política revolucionária. Uma vez
mais, dentro de Nós. Os ataques, esses, repetiriam as já velhas fórmulas de
falta de democracia interna, de ataque cerrado ao centralismo democrático, de
tentativas de reverter a estrutura revolucionária do PCP, sobretudo para assim
o aproximar de posições institucionais e de alianças políticas com partidos
representantes da (e representados pela) burguesia.
O
Comunicado do Comité Central (CC) do PCP sai a 15 de fevereiro. A reação não
foi imediata, mas cedo se fez sentir. O PCP estava, uma vez mais, a ser atacado
na sua matriz revolucionária. Haviam-se passado apenas oito anos desde a
formação do INES e da expulsão de Zita Seabra, e sete anos desde o desmoronar
da União Soviética.
O
inimigo não dá tréguas, pelo que as forças da reação logo se (re)organizam.
Para de novo atacar. Internamente, ao mais alto nível de responsabilidade e de
direção política, um comunicado que – indo ao encontro daqueles diversos grupos
de militantes que haviam abandonado as estruturas do Partido para integrar as
forças representativas do inimigo que haviam combatido – emana diretamente do
CC. Nele, definia-se o partido como "firmemente empenhado em impulsionar a
agregação de forças, energias e aspirações democráticas e de esquerda, que é
indispensável para a concretização de uma alternativa progressista à mera
alternância entre PS e PSD na realização da política de direita" (Por
um novo impulso na organização, intervenção e afirmação política do Partido, ponto
I).
Dissimulando
projetos que atacariam as bases mesmas do centralismo democrático, definia-se a
necessidade de "a par do reforço do quadro de funcionários com tarefas de
organização, [a militância] alargue o assumir de responsabilidades por
camaradas não funcionários, libertando assim forças para tarefas mais
exigentes, designadamente em disponibilidade e mobilidade dos quadros" e a
realização de "Assembleias que (...) "devem distribuir tarefas entre
os seus membros". Nessa responsabilização individual, deve incluir-se a
possibilidade da escolha/eleição, no âmbito do organismo, do ou da camarada que
vai coordenar e dinamizar o funcionamento do colectivo, no quadro dos
princípios estatutário" (Por um novo impulso na organização,
intervenção e afirmação política do Partido , ponto I). Pretendia-se, deste
modo, atacar o centralismo democrático, fator fundamental, segundo os próprios
Estatutos do PCP, para "assegurar simultaneamente, como características
básicas, uma profunda democracia interna, uma unica orientação geral e uma
única direccção o central" (Estatutos do PCP, Capítulo III): ou
seja, punha-se em causa a unidade de direção, a unidade de ação, a discussão
interna, a "livre expressão das opiniõ e a sua atenta consideração e
debate" para que "o cumprimento por todos das decisões tomadas por
consenso ou maioria" (Estatutos do PCP, Capítulo III) canalizem as
forças para a luta numa única direção. Buscava-se a descaracterização do
elemento que materializa a própria força do PCP, buscava-se a horizontalidade
das decisões, desacreditando as ferramentas organizativas que haviam permitido
ao PCP permanecer como o referente da luta da classe operária e de todos os
trabalhadores.
Assimilando,
num processo de desmoronamento da estrutura ideológica revolucionária, a democracia
à democracia burguesa, excluindo o fundamental papel da luta de
classes para a transformação revolucionária da sociedade com vista à construção
do socialismo, excluindo a conceção de que o Estado constitui sempre o domínio
de uma classe sobre outra, excluindo a etapa intermédia que permitirá a
praticidade do projeto comunista – o socialismo (o modo de produção mais
democrático para a maioria explorada), o Novo Impulso afirmava que o PCP
deveria ter como bandeira de luta "o descrédito e desvirtuamento do regime
democrático e da acção política, e o abstencionismo cívico e eleitoral" (Por
um novo impulso na organização, intervenção e afirmação política do Partido, ponto
I). Confundindo cidadania e classes sociais, omitindo estas e, portanto,
renegando a própria luta de classes (valorizando, ao invés, as categorias
pós-modernas de cidadania e de civismo ), distanciava-se do papel
de vanguarda da classe operária, propondo um desvirtuamento do projeto
socialista estratégico, encontrando-se já subjacente a influência das
pós-modernas teorias de que territórios ou multidões ou cidadãos
seriam os novos sujeitos de transformação histórica e que a luta pelo poder
político representava um fim em si mesmo.
Aproximação
ao PS: quando a tática e a estratégia se confundem
Uma
orientação estratégica clara e afirmada: um projecto de esquerda e de poder,
para um novo rumo democrático, assim é intitulado o ponto 2. do
documento em questão:
Apesar
da derrota dos partidos da direita nas legislativas de Outubro de 1995, e do
facto de socialistas e comunistas terem passado a dispor da maioria dos lugares
na Assembleia da República, as possibilidades que então podiam ter-se aberto
para a concretização de uma viragem democrática, no sentido da esquerda, da
situação nacional, não tiveram qualquer expressão devido às opções tomadas pelo
PS. A estratégia das forças de direita, protagonizada na primeira linha pelo
PSD, evidencia-se com crescente nitidez. Por um lado, essas forças acompanham
as opções fundamentais do Governo do PS, que correspondem, em grande medida, às
suas. Mas, por outro lado, movem-se de forma activa com o objectivo de
reagrupamento de um bloco à direita e de capitalização por parte da direita do
descontentamento social e da frustração que alastram em amplos sectores
sociais, com correspondência política no eleitorado do centro e da esquerda
(Por um novo impulso na organização, intervenção e afirmação política do
Partido, ponto I).
Com
efeito, a 1 de outubro de 1995, haviam-se realizado eleições legislativas que,
após dez anos de governação do PSD com maioria absoluta, haviam dado a maioria
relativa ao PS (43,76%). O PSD fora o segundo partido mais votado com 34,12%, o
CDS o terceiro, com 9,05%, e a CDU o quarto, com 8,57% (506.157 votantes).
Sejamos capazes de ter uma visão totalizante (na secção abaixo desenvolveremos
sumariamente esta categoria marxista), e compreendamos as similitudes com a
realidade concreta atual.
O PS e
a CDU somavam, apenas os dois, 52,33% dos votos. Seria esta maioria eleitoral
que moveria os defensores do Novo Impulso e que acalentaria as suas
esperanças de construção de uma unidade política na qual o PCP se resumisse a
um mero apêndice gestor de um modo de produção dominado pelos representantes do
seu inimigo de classe (o qual se congrega ora no PSD, ora no PS), num processo
de transformação, de subjugação e de desintegração político-ideológica
realizado, apresentando uma incompleta leitura da realidade atual e a
compreensão desta como uma parte desprovida de totalidade, ou seja, a não
consideração da então situação política de uma forma totalizante, e
consequentemente desvinculada de um processo estratégico de confronto entre o
trabalho e o capital. Não vale a pena referir as consequências que esta
estratégia da burguesia, defendida pelo Novo Impulso, teve na destruição
de históricos partidos revolucionários como o PCE, o PCF ou o PCI.
Em
Dezembro de 1996, mais de 1.600 delegados são eleitos para o XV Congresso do
PCP, no qual se realizou um balanço de um ano de governo PS.
O
balanço teve em conta fatores que, hoje, nos poderiam remeter para similitudes
com a atualidade: após dez anos de governação (com maioria absoluta) PSD, o PS
ganhou com maioria relativa. O PSD e o CDS não tinham uma maioria parlamentar,
mas antes a CDU e o PS. Apesar disso, O PS empenhou-se, no seguimento quer do
anterior governo PSD, quer dos anteriores governos, na destruição de conquistas
e direitos alcançados na Revolução de abril de 1974.
Ora,
tendo em consideração a avaliação do novo quadro parlamentar, o XV Congresso
conclui que o PS, apesar de ter maioria relativa, prosseguiu – como o havia
feito de 1976 a 1978, sob o governo de Mário Soares (I e II governos
constitucionais – o segundo em aliança com o CDS) e de 1983 a 1985 (IX governo
constitucional, em coligação com o PSD) – uma política ao serviço de uma
privilegiada classe dominante:
No
período que decorreu desde o XIV Congresso acentuou-se a política de direita,
prosseguida primeiro pelo Governo do PSD e, mais recentemente, pelo actual
Governo do PS, de reconstituição, restauração e institucionalização do
capitalismo monopolista de Estado como sistema socioeconómico e sua associação
ao capital estrangeiro. Este processo, em desenvolvimento desde 1976,
encontra-se em fase avançada, embora não concluído, e caminha a par de
transformações profundas do regime político, do agravamento da exploração dos
trabalhadores e de atentados contra os seus direitos e liberdades, de
limitações da soberania e independência nacionais (Resolução Política aprovada
no XV Congresso do PCP, II, ponto 2.).
O PCP
caracteriza a prática política do PS – em consonância com o que este sempre
havia posto em prática desde 1976 – como uma "política económica de
direita" (Resolução Política aprovada no XV Congresso do PCP, II, ponto
2.) fraudulenta, ao serviço do grande capital nacional e estrangeiro, no
sentido de uma constante e gradual exploração dos trabalhadores, de uma
submissão do poder político ao poder económico, desmanteladora do sector
público que entrega sectores-chave ao grande capital (nacional e estrangeiro),
prosseguindo com processos de privatização, consolidando novos e velhos
monopólios nacionais "que não só reforçaram o seu poder económico como
recuperaram poder político" e reconstituindo "a propriedade de
extensão latifundiária no Sul do País com a destruição da Reforma Agrária"
(Resolução Política aprovada no XV Congresso do PCP, II, ponto 2.). Em
paralelo, o PS limitava a soberania e independência nacionais no quadro da
União Europeia:
Em vez
de, numa base de firmeza e de fidelidade aos interesses nacionais, enfrentarem
os problemas reais existentes e as debilidades da economia portuguesa para dar
resposta a um quadro de competição alargada, que tem trazido grandes problemas
ao nosso tecido produtivo, nomeadamente à agricultura, às pescas e a
importantes sectores industriais, os sucessivos governos (primeiro os do PSD,
agora o do PS) optaram por uma política de abdicação e subserviência às
orientações e determinações dos poderes dominantes na União Europeia, ao mesmo
tempo que abriram as portas e alimentaram as práticas de favoritismo de
clientelas, de falta de transparência, de corrupção e dilapidação de fundos
comunitários (Resolução Política aprovada no XV Congresso do PCP, II, ponto
1.).
Se,
como afirma a Resolução Política aprovada no XV Congresso, um ano após as
eleições legislativas que haviam levado ao poder o PS, "a análise da
evolução das realidades nacionais nestes últimos anos põe em evidência que as
políticas de direita — antes com os governos do PSD, agora com o Governo do PS
— são incapazes de lançar as bases estáveis e duradouras de um processo de
desenvolvimento económico e social", agravando, ao contrário, "os
problemas de fundo da economia e da estrutura produtiva portuguesas, aumentam o
atraso relativo do País e acentuam as injustiças e desigualdades sociais"
(Resolução Política aprovada no XV Congresso do PCP, II, ponto 1.), a conclusão
é a de que o PS, como partido de poder, está ao serviço da grande burguesia,
nacional e estrangeira, colocando ao dispor desta(s) a sua prática
institucional e política.
O
exercício do poder político e institucional do PS conduziu, portanto, à
aplicação de uma política que beneficiou a classe que colocou as instituições
do Estado ao seu dispor.
Não
poderemos nunca esquecer. Como revolucionários. O Estado constitui sempre o
domínio de uma classe sobre outra, pelo que o Estado capitalista é sempre o
reflexo do domínio da burguesia sobre a grande maioria explorada. Neste
sentido, as instituições que nele funcionam, são (re)organizadas por e para
que o domínio de classe daquela perdurem. O PS
não apenas exerceu e efetivou o seu poder político submetendo-se à classe
económica e politicamente dominante, como o exerceu combatendo as restantes
classes e camadas que aquela subjuga e domina.
Omitir
a natureza de classe de um Estado, como o fizeram os subscritores do Novo
Impulso, negar o papel da luta de classes como um movimento constante de
progresso que permitirá a transição revolucionária para o único modo de
produção onde a grande maioria explorada assumirá a construção de um Estado ao
seu serviço, pensar a luta de um partido revolucionário como limitada à luta
pelo poder institucional ao serviço da classe que aquele deveria combater, é
negar a própria teoria capaz de materializar as transformações socioeconômicas
que dirigem a luta revolucionária. É submeter-se à ideologia e ao poder
político e económico dominante, abdicando da luta transformadora e
emancipatória pela construção de uma outra organização socioeconómica. É
esquecer que, em política, não existem espaços neutros.
Se
temos de remontar à Revolução Francesa de 1789 e à posterior organização da
respetiva Assembleia parlamentar para compreender o porquê da atual
(vulgarização) dos termos esquerda e direita, teremos de assumir
que a ideologia dominante continua logrando os seus objetivos de domínio
ideológico quando incorpora na linguagem termos desprovidos de qualquer
cientificidade como é o caso de centro: mera invenção
linguística-ideológica, tem como objetivo central a manutenção de uma falsa
ideia de alternativa, dentro do quadro parlamentar burguês, a qual, alimentada
constantemente pelos meios de comunicação social que expressam de forma massiva
a ideologia dominante (e, portanto, as suas vulgarizações e (des)construções
linguísticas e simbólicas), permite a sobrevivência do próprio sistema.
O que
guia a ação de um partido revolucionário é a sua organização como vanguarda
política num processo de luta que conduz à conscientização das massas
trabalhadoras, num movimento social e político onde a teoria se transforma em
força material. Neste processo de luta, entram em confronto duas classes
fundamentais, antagónicas (porque antagónicos são os seus interesses de
classe), que constroem os seus instrumentos, num caso de domínio, no outro de
luta pelo derrube desse domínio. Neste processo, existem classes (não
fundamentais) e camadas intermédias que ora se aproximam de uma classe, ora se
aproximam da outra, em função dos interesses que as movem em determinado
contexto socio-histórico. Não existe centro. Como não existe neutralidade.
O
centro é uma construção ideológica de uma minoria que oprime e subjuga, a
neutralidade é um processo de desideologização e de opressão que afasta a
maioria laboriosa explorada da luta por um movimento emancipatório.
Adotar
e assumir conceitos, categorias e elementos linguísticos que, impostos e
criados pela burguesia, nos distanciam da luta de classes, é já assumir o
abandono dos conceitos e categorias que guiam a luta pela libertação do Homem.
Tudo,
no Novo Impulso, se resume à luta institucional. Tudo, no Novo
Impulso, se resume à descaracterização de um partido revolucionário para o
adaptar à mera institucionalidade da luta.
É no
quadro institucional do capitalismo, perdendo a perspetiva emancipatória de
construção de um novo modo de organização socioeconómico, que o Novo Impulso
refere como solução institucional uma aproximação do PCP ao PS - o mesmo PS
que sempre executou uma política ao serviço do inimigo daquela classe cuja
vanguarda de luta se materializa no próprio PCP -, alegando que desta forma o
PS abandonaria a sua "actual política" (Por um novo impulso na
organização, intervenção e afirmação política do Partido, II, 2.) e que uma
"verdadeira alternativa democrática e uma nova política" (Por um
novo impulso na organização, intervenção e afirmação política do Partido, II,
2.) seriam, então, postas em prática.
O PCP
como consciência do PS? O PS como alternativa política? Que alternativa? Dentro
de que quadro institucional? Com que condicionantes?
A
resposta está numa conceção ideológica que tem no poder institucional o seu fim
último, a qual implica que o PCP assuma "particulares responsabilidades e
exigências (...) nas diversas frentes de intervenção e de luta" (Por um
novo impulso na organização, intervenção e afirmação política do Partido ,
II, 3.). E assim se fecharia um alegre ciclo: PS e PCP juntos, "no sentido
da esquerda" (Por um novo impulso na organização, intervenção e
afirmação política do Partido , II, 3.), numa convergência "de uma
esquerda e de um projecto que suporte a perspectiva, a possibilidade e a luta
pela concretização de um novo rumo democrático para Portugal" (Por um
novo impulso na organização, intervenção e afirmação política do Partido ,
II, 1ª).
A
organização da luta, nos locais de trabalho, nos bairros, nas escolas, nas
universidades, numa perspetiva de elevar a consciência de classe dos
trabalhadores, de permitir o processo de aquisição de uma consciência de classe
para si, a qual, através da luta e da organização daqueles, sob a
vanguarda do proletariado, teria como estratégia a construção do socialismo,
rumo ao comunismo, não constituiria, segundo o Novo Impulso, o objetivo
primordial de um Partido Comunista. O Partido Comunista Português passaria, ao
contrário, a ter como objetivo central a luta por um quadro institucional
preciso, de forma a "participar num alargado e genuíno processo de diálogo
e de debate, à esquerda, susceptível de estabelecer pontes e de construir
convergências que contribuam para viabilizar um projecto de poder" (Por
um novo impulso na organização, intervenção e afirmação política do Partido ,
II, 1ª).
Neste contexto, o Partido Comunista teria, portanto, de
abandonar o projeto revolucionário que constitui a sua própria essência, a sua
razão de ser, a sua matriz, que justifica a sua organicidade interna e permite
a elevação qualitativa e quantitativa dos padrões de luta.
O XVI
Congresso em 2000, depois a Conferência Nacional em 2002, reafirmariam o
projeto de emancipação humana que justifica a existência do Partido Comunista
Português, que marca a sua diferenciação relativamente às restantes
organizações políticas que atuam no quadro hegemónico da democracia burguesa;
partido que, apropriando-se de uma teoria emancipatória, tem como visão
estratégica a superação das desigualdades e da barbárie crescente imposta pelo
capitalismo.
Os
instigadores e defensores do projeto político, social e económico que
representou o Novo Impulso engrossariam, à imagem dos seus antecessores,
as fileiras do PS, escondidos ou assumidos, ou contribuiriam ora para a
concretização, ora para o engrossamento, mais uma vez, de mais um projeto de
falsa alternativa, destituído de uma perspetiva revolucionária, confinado aos meios
intelectuais e urbanos, afastado de qualquer estrutura de organização de
massas, setorializando a luta e desvinculando-a de um processo de
transformação, numa tentativa conciliatória classista e de abrandamento do
projeto capitalista monopolista de Estado, no fundo revelando um velho projeto
da burguesia de criar estruturas que, aparentando diferença e projetos
inovadores, mais não são do que uma tentativa de destruição de projetos
revolucionários cimentados.
Esquerda,
Democracia e Liberdade: a dominação ideológico-linguística e a totalidade
marxista
No
artigo Da dominação ideológica através dos conceitos aos graus transitórios
de um processo revolucionário (2014), escrevemos sobre a forma como a
dominação ideológica da atual classe dominante se efetua através de diferentes
meios e em diferentes disciplinas, materializando-se, igualmente, no plano
linguístico.
Com
efeito, atendendo ao facto de que a realidade determina as ideias e conceções,
consideramos, como marxistas, que a linguagem e a consciência são determinadas
pela forma como o nosso ser exprime a sua vida produtiva. Neste sentido, a
consciência e a linguagem constituem um fenómeno social, baseando-se nas
relações reais que os indivíduos estabelecem entre si: "serão antes os
homens que, desenvolvendo a sua produção material e as suas relações materiais,
transformam, com esta realidade que lhes é própria, o seu pensamento e os
produtos desse pensamento" (K. Marx e F. Engels, 1845, A Ideologia Alemã).
A
linguagem não pode, desta forma, ser desligada da ideologia, pelo que a
dominação ideológica de uma classe abrange, como acima afirmamos, o plano
linguístico. Esta dominação manifesta-se ora na criação, ora na modificação e
alteração de conceitos ou de categorias, de forma a que o seu domínio perdure,
através da construção e imposição da ideologia que subjaz a esse domínio.
Assim, a propósito da vulgarização de conceitos como esquerda, democracia ou
liberdade, relembramos:
(...)
há que compreender tais expressões (e, consequentemente, os conceitos que as
formam) num determinado quadro de imposição ideológica e, portanto, num
determinado quadro de dominação de classe. Neste sentido, a compreensão do
conceito de democracia ou de liberdade depende da leitura de classe que lhe
está subjacente. (...) Num sistema estruturalmente desigual, mantido através do
domínio de uma minoria, exploradora, por um maioria, explorada, baseado na
exploração do Homem e dos recursos naturais do planeta, nunca pode haver
liberdade, ainda menos democrática, pelo que é fundamental (re)pensar conceitos
globalmente vulgarizados. Assim sendo, para um revolucionário capaz de entender
e ler cientificamente a sociedade que o rodeia, a democracia burguesa é "a
democracia para uma ínfima minoria, a democracia para os ricos - tal é a
democracia da sociedade capitalista" (Lénine, 1917, O Estado e a
Revolução). Este conceito não pode, consequentemente, ser desligado (tal como o
exercício do poder) da natureza de classe de um Estado (Da dominação
ideológica através dos conceitos aos graus transitórios de um processo
revolucionário, 2014).
É,
assim, fundamental não perder de vista quer a teoria que se transforma em força
material, quer a capacidade de análise crítica nos vários domínios de
conhecimento, de modo a que possamos desmontar, rebater e denunciar o discurso
da burguesia, a sua linguagem, a sua manipulação, a sua tentativa de imposição
ideológica que se manifesta no pensar, no ser, no agir.
A luta
de classes é um movimento contínuo. E trava-se em todas as frentes.
Outra
categoria fundamental marxista diz respeito à conceção de totalidade. Com
efeito, considerando que os homens são produtos e produtores da História, a
análise de Marx aplica o ponto de vista da totalidade, afirmando que a
compreensão de uma qualquer totalidade implica a compreensão da cadeia de
relações que a constitui.
No
plano teórico e metodológico, Marx considera que uma totalidade é sempre uma
unidade de totalidades concretas. Neste sentido, a totalidade é sempre uma
unidade interatuante de dois níveis distintos de totalidade: no primeiro nível,
encontramos as totalidades sobredeterminantes, conquanto no segundo,
encontramos as totalidades subordinadas. Aplicando esta teoria à sociedade,
Marx conclui que cada nível histórico inclui ambas as totalidades, sendo que as
determinações econômicas sempre participam da totalidade sobredeterminante (ou
seja, quando de uma leitura científica dos diferentes modos de produção que
acompanharam a história da humanidade, nenhum fenômeno pode ser considerado sem
a sobredeterminante econômica).
Sem
compreender ontológica e intrinsecamente o valor da categoria totalidade,
"qualquer interpretação teórica do mundo fica reduzida a um amontoado
incoerente, amorfo e desarticulado de fragmentos, do qual não pode resultar
qualquer processo de efetiva produção do conhecimento" (Edmilson Costa, A
totalidade como categoria central na dialética marxista ). Para a
constituição desta categoria e para a sua consequente aplicação científica, é
portanto necessário recorrer ao método dialético.
Tendo
em conta que um fato é sempre determinado e composto por um conjunto de partes,
de relações em constante movimento, a sua fragmentação, a fragmentação da
totalidade que é, do todo, do seu conjunto, faz com que o mesmo seja
incorretamente apreendido, impossibilitando-nos, por conseguinte, a sua
compreensão como totalidade. Assim sendo, o mero conhecimento de partes
constitutivas de um todo, não só não nos permitem a identificação das leis que
regem o seu funcionamento, como não permitem o conhecimento das partes
fragmentadas, já que são as relações dialéticas que se estabelecem entre estas
que permitem o conhecimento do todo, e, portanto, que permitem a análise e
identificação das suas determinações ontológicas: as "determinações (...)
só podem ser apreendidas se a análise percorre a transversalidade essencial do
todo" (Edmilson Costa, A totalidade como categoria central na dialética
marxista ).
É neste
sentido que as leis que regem o modo de produção capitalista apenas podem ser
compreendidas numa relação de movimento dialético que possibilite a sua
identificação para posterior compreensão do funcionamento da totalidade que
constitui o modelo imposto pela burguesia.
Nas
relações que se estabelecem entre as partes de uma totalidade, exercem um papel
fundamental as relações de contradição ou de antagonismo. Apesar de nem todas
as relações entre as partes de uma totalidade serem contraditórias, elas
implicam necessariamente antagonismos, os quais são decisivos historicamente
para a constituição quer de unidades, quer de ruturas. É neste sentido que se
considera que o capitalismo relaciona duas categorias fundamentais, capital e
trabalho , as quais, ao mesmo tempo que funcionam como uma unidade
dentro do capitalismo, operam, em simultâneo, um processo de rutura [6] a partir do
seu próprio seio.
Como
marxistas, como leninistas, cabe-nos compreender o atual contexto
socio-histórico através da compreensão da categoria totalidade.
Cabe-nos,
por exemplo, analisar o historial das dissidências e sua posterior integração
em movimentos e partidos ao serviço da burguesia, como um fenómeno não isolado,
mas antes inserido num projeto mais amplo, histórico, de destruição de
organizações que possam pôr em causa as estruturas políticas e económicas de
uma classe minoritária, opressora, que aquelas controla. Cabe-nos, por exemplo,
analisar a atualidade histórica tendo em conta o passado, as relações entre os
momentos socio-históricos, as lutas, as unidades, as ruturas. Cabe-nos, por
exemplo, ler os atuais desenvolvimentos eleitorais num espaço para além do
presente, compreendendo o passado como um feixe de relações dialéticas nas
quais se opõem as contradições emanantes do capitalismo. Cabe-nos, por exemplo,
pensar as políticas de alianças como parte de um todo, como uma tática com
vista ao reforço de uma estratégia que vai além do presente eleitoral, e não
como um ato tático isolado sem relação dialética com a contradição fundamental
que opõe capital e trabalho. Cabe-nos, por exemplo, encontrar
semelhanças com períodos passados, mais ou menos recentes, e a partir deles
retirar ensinamentos para a utilidade, ou perigo, de alianças eventualmente
concretizadas, as quais, para além de expressar a realidade concreta a partir
de uma leitura totalizante, não devem contribuir para um processo conciliatório
das contradições fundamentais, mas, ao contrário, para um acirramento destas,
de modo a que no processo de agudização da luta de classes o trabalho possa,
finalmente, vencer o capital.
Cabe-nos,
concreta e cientificamente, para uma pertinente, capaz e totalizante análise da
realidade concreta, identificar os objetivos da fundação do PS, ainda antes da
Revolução de abril, em 1973. Cabe-nos, concreta e cientificamente, para uma
pertinente, capaz e totalizante análise da realidade concreta, identificar o
seu papel na luta entre capital e trabalho. Cabe-nos, concreta e
cientificamente, para uma pertinente, capaz e totalizante análise da realidade
concreta, identificar o papel que teve na contrarrevolução de 25 de novembro de
1975, cujo desencadear e desenvolvimentos, para além de uma íntima e crucial
atuação do PS, tiveram na sua base uma forte intervenção estrangeira,
nomeadamente da CIA (através do seu representante Frank Carlucci). Cabe-nos,
concreta e cientificamente, para uma pertinente, capaz e totalizante análise da
realidade concreta, identificar o seu papel no desagregar das conquistas
alcançadas com o 25 de abril de 1974. Cabe-nos, concreta e cientificamente,
para uma pertinente, capaz e totalizante análise da realidade concreta,
identificar o seu papel na destruição do aparelho produtivo nacional, na
imposição de uma legislação que sempre combateu os interesses e conquistas dos
trabalhadores, que sempre defendeu fiscalmente as grandes empresas, na
destruição do SNS, na acentuação da precariedade e na imposição de uma
legislação que conduziu à vulgarização de contratos precários, no ataque à
negociação coletiva, no caminho de declínio, de injustiça, de exploração e de
empobrecimento (cujo presente não pode nunca ser desligado do passado)
nacionais, na imposição legislativa de políticas que se traduziram no
empobrecimento das classes e camadas trabalhadoras, numa estratégia de
subjugação ao grande capital baseada, não apenas no empobrecimento de uma
maioria, mas também no ataque aos serviços públicos, no ataque ao setor
empresarial do estado e aos seus trabalhadores.
Cabe-nos,
concreta e cientificamente, para uma pertinente, capaz e totalizante análise da
realidade concreta, identificar o seu papel no ataque que desde 1976 efetua
à Constituição da República Portuguesa.
Tudo
isto nos cabe, como comunistas, como marxistas, como leninistas, como homens e
mulheres que levam avante o mais belo projeto de transformação da humanidade.
[1] O
PSD será igualmente eleito com maioria absoluta nas eleições legislativas de
1991.
[2] A 6
de Outubro de 1985, o PCP alcança 898.281 votos, 15,49% dos votos, elegendo 38
deputados.
[3] Cf.
Paulo Martins, PCP de Cunhal espiou dissidentes, JN , 16/05/2007.
[4] No
XIII Congresso extraordinário do PCP, em 1990, Carlos Carvalhas é eleito
secretário-geral adjunto de Cunhal e é candidato à presidência da República.
Mário Soares (com o apoio de muitos ex-militantes) é reeleito para a
presidência.
[5]
Adenda à citação de José Manuel Jara: Isabel Pires de Lima foi ministra da
Cultura, e não secretária de Estado.
[6]
Edmilson Costa, A totalidade como categoria central na dialética marxista: "Essa
contradição, presente no topo da totalidade abrangente modo de produção, também
está presente na outra ponta - a da categoria mais simples (molecular), a
mercadoria - desse modo de produção. Também a mercadoria é uma totalidade e,
como tal, encerra, na sua objetivação, através da produção capitalista,
conexões de outras categorias que se revelam como relações de oposição, tais
como: valor e mais-valia, visibilidade e fetiche etc.".
Da mesma autora:
[*] Professora do Ensino
Superior. Pós-doutoramento em sociologia da literatura a decorrer na
Universidade Estadual de São Paulo.
Este artigo encontra-se
em http://resistir.info/
.
O Cravo de Abril agradece à Ana Saldanha a autorização para publicar o artigo.
O Cravo de Abril agradece à Ana Saldanha a autorização para publicar o artigo.
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