LITANIA PARA O NATAL DE 1967
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Tem no ano dois mil a idade de Cristo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos vir pedir contas do nosso tempo
David Mourão-Ferreira
Nem Um Cêntimo Para o Banif!
Escrevo este texto quando tudo parece apontar para
termos três Governos consecutivos a usar fundos públicos para salvar
bancos falidos. O tal dinheiro que "não há" para a educação, a cultura, a
saúde, a ciência, as reformas dos velhos e os subsídios dos
desempregados, aparece sempre, aos largos milhares de milhões, quando se
trata de burgueses encalacrados. Naturalmente, para mais tarde ser
reembolsado ao Estado, com juros, que este mesmo Estado aplica em
protecção social. Ah não, esperem: afinal o Estado nunca mais o vê, e a
protecção social pode esperar, que afinal os pobrezinhos são
desenrascados para sobreviver, ao contrário dos empresários
"empreendedores" que só conseguem empreender montados às costas do
aparelho de Estado.
Nada do que se passou no Banif é
significativamente diferente do que se passou no BPN ou no BES: temos um
banco que serve para financiar negócios de duvidosíssima viabilidade,
onde o Estado já tinha enterrado dinheiro suficiente para ficar com 60%
das acções, e onde o Banco de Portugal - oh surpresa! - não encontrava
nunca nada de alarmante. A coisa podia ter sido resolvida sem que
parecesse muito mal se a participação do Estado tivesse sido vendida a
uma entidade financeira chinesa, a Fosun, que ficaria com a batata
quente. Ocorreu o inesperado: um dirigente de topo da Fosun foi preso
pelas autoridades chinesas, deixando o negócio em águas de bacalhau. O
Banif, que pertence em 60% ao Estado mas onde ao que parece o Estado
deixou a gestão rolar conforme calhasse, ficou incapacitado de
reembolsar esse mesmo Estado dos 125 milhões de euros que vencem no dia
31 deste mês. E o mesmo Estado que já enterrou mais de 800 milhões no
Banif, vai sugar ao bolso do contribuinte ainda mais dinheiro para
resolver esta embrulhada, despedindo cerca de cem trabalhadores do banco
pelo caminho.
Alguns dirão que houve incúria, que houve
incompetência, que houve desleixo aqui. Estão totalmente enganados. O
Estado burguês pode fazer-se de parvo, mas de parvo não tem nada: e o
seu objectivo, no cumprimento estrito de uma regra geral do capitalismo
monopolista de Estado, é colocar a sua máquina ao serviço quer dos
grandes grupos económicos nacionais, quer das burguesias imperialistas
alemã e estadunidense. Como escreveu Lenine "o monopólio, uma vez que
foi constituído e controla milhares de milhões, penetra de maneira
absolutamente inevitável em todos os aspectos da vida social,
independentemente do regime político ou de qualquer outra
particularidade" (1), criando uma oligarquia financeira que circula dos
cargos de Estado para as direcções de grandes grupos económicos e
financeiros e vice-versa. É esta, rigorosamente, a situação portuguesa. A
estruturação do Estado torna praticamente impossível dar um passo em
defesa do "interesse público" sem que isso implique perceber a que ponto
este está estreitamente entrelaçado com o interesse dos monopolistas.
Romper esta junção dos dois interesses só pode ser obra de
transformações revolucionárias que ponham decisivamente em causa quer a
propriedade desses monopólios quer o modo de produção que os criou. Ou
seja: sem nacionalização e socialização dos monopólios a ruptura com o
actual estado de coisas é uma miragem.
Ministro de Sócrates, o homem que salvou o BPN da forma que todos nos lembramos, num Governo onde pontificava Luís Amado, Presidente do Conselho de Administração do Banif, António Costa oferece muito poucas garantias de vir a fazer com o Banif algo de particularmente diferente do que foi feito com o BPN pelos membros do seu partido, ou por Passos Coelho no BES. Só a mobilização determinada de todos nós, rejeitando continuar a financiar bancos falidos com o nosso dinheiro, poderá impor ao Governo a adopção de outras soluções. E só a nacionalização da banca e das principais empresas estratégicas, socializadas, postas ao serviço dos trabalhadores e sob sua gestão, poderá resolver a título definitivo estes sistemáticos problemas de «crises» nos bancos, que não passam do capitalismo a ser igual a si próprio.
(1) Lenine - Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo. Lisboa: Ed. Avante, 2000, p. 62
Maria Eugénia Cunhal
Cantar de amigo*
O tempo passa, amor, correm os diasE as ruas em silêncio à nossa espera
À hora em que as palavras não são ditas
E as mãos entrelaçadas são poemas.
O tempo passa, amor, ventos arrastam
Cada segundo de vida que ofertamos
À luta consciente a que nos damos
E as horas para amar já não nos bastam.
Por cada dia fica em nossos rostos
Mais uma ruga do mapa dos caminhos
Que percorremos juntos, mas distantes
Ombro a ombro, sempre, mas sozinhos.
Quilómetros de noite nos separam
Meu corpo já cansado pede tanto
A ternura de um beijo sempre adiado
Enquanto beijo aqueles p’ra quem canto.
Deixa dizer-te apenas uma vez
Esta saudade enorme que me habita
Mas crê que em cada dia em que me vês
Minha coragem renasce e ressuscita.
Deste sofrer distante, desta ausência
Ficarão as sementes que lhe damos
E no coro das vozes que cantamos
Encontro a tua voz, distintamente.
(Maria Eugénia Cunhal)
*Adriano musicou este poema, mas a obra nunca chegou a ser editada.
Os Factos São Teimosos
O séc. XX e a existência de diversos processos de imposição à burguesia de concessões em matéria de protecção social garantidas pelo seu Estado de classe tornaram algo complicado até mesmo explicar a tese marxista de que o Estado, fundamentalmente, é um aparelho de repressão da classe dominada pelo classe dominante. De imediato surgem resistências, objecções, teses sobre a necessidade manter a luta pelas conquistas obtidas nesse âmbito - tudo afirmações que merecem atenção e até concordância, mas que não iludem o essencial: esse Estado está ao serviço da burguesia. Ela vai utilizá-lo para reprimir o proletariado. Ela vai tentar livrar-se assim que possível das conquistas sociais que o proletariado lhe impôs. E portanto, só uma organização proletária capaz de liquidar o aparelho repressivo do Estado burguês - e não apenas de se apropriar dele, por via eleitoral, por via putschista, ou por outra via qualquer - é garantia de triunfo e de construção do socialismo.
O exemplo venezuelano, de onde chegam hoje notícias de uma derrota pesada para as forças progressistas, é mais um caso a atestar esta teoria geral, que o movimento operário internacional aprendeu ao longo de dezenas de anos, em incontáveis exemplos, com sacrifícios terríveis. Não poderemos nunca deixar de referir a importância do processo bolivariano para a reposição na ordem do dia da luta pelo socialismo, completamente arredada dos projectos de sociedade de praticamente todos os regimes políticos do planeta inteiro desde a implosão da URSS. Mas o processo de transformação da sociedade que é a construção do socialismo, processo incontornavelmente revolucionário dado que nenhuma classe opressora aceita pacificamente perder os seus privilégios, não podia ter sido feito assim, e já havia uma longuíssima experiência acumulada pelo movimento operário que o permitia saber. Erros seríssimos foram cometidos, desde o consentimento de que a burguesia mantivesse intacto o seu império mediático, os seus partidos de classe, uma parte crucial dos meios de produção na sua posse, importantes posições nas forças armadas, relações permanentes e sem entraves com o imperialismo estadunidense e com o Estado terrorista da Colômbia. Naturalmente, apoiada numa tão poderosa estrutura de manipulação das massas, com tantas condições para sabotar e agredir o processo de transformação social, e confrontada com um movimento de massas certamente heróico, seguramente abnegado, mas infelizmente sem os instrumentos materiais que lhe permitiriam garantir a sua liberdade - e que são, é fulcral dizê-lo com todas as letras, os instrumentos da organização popular armada para reprimir a contra-revolução de vencer -, a burguesia demorou, mas inexoravelmente recompôs a sua força e logrou uma vitória importante no campo institucional.
Como Lenine escrevia sobre os críticos de Marx que, relutantemente, acabavam a dar razão a algumas das suas teses sobre a dinâmica do capitalismo quando era impossível deixar de o fazer, «os factos são teimosos». O facto de que o Estado da burguesia não pode e não vai ser usado pelos trabalhadores para se emanciparem, como se viu no Chile, no Brasil, no Irão, nas Honduras, na Grécia de Tsipras, e agora na Venezuela, continua, com a sua teimosia, a desafiar todos os idealismos de sinal contrário. Que o povo venezuelano, o primeiro a erguer a bandeira do socialismo depois da pior derrota do movimento operário internacional em toda a sua história, a implosão do campo socialista, saiba extrair deste revés não um desalento que o paralise, mas um ensinamento que lhe permita agir com mais acerto na luta pela sua libertação do imperialismo e da exploração do homem pelo homem.
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